Os extremos da intolerância religiosa

“Se existe algum tipo de religiosidade que pode nos salvar a todos, ela se resume ao amor pelo planeta e pela humanidade.”

Ricardo Kelmer

Somos um país marcado pela diversidade racial e pelo sincretismo religioso. Mesmo assim, é lamentável que haja tanto racismo e tanta intolerância religiosa. Embora a miscigenação racial seja um fator preponderante em nossa sociedade, o racismo ainda é um grave problema sociocultural. A cultura africana contribuiu grandemente para a riqueza do nosso folclore brasileiro, enriquecendo a nossa culinária, vocabulário e tantos outros costumes, mas é vista como se fosse inferior. Tendo os povos africanos sido trazidos aqui para trabalhar como escravos e fazer todos os serviços rudes que os senhores não queriam fazer, pois o trabalho braçal era visto como inferior, não é de estranhar que eles fossem tratados como gente de baixa categoria, sendo menosprezados em todas as suas características.

Até hoje, as religiões de matriz africana são malvistas pelo resto da sociedade brasileira. São vistas como religiões primitivas, de povos de cultura inferior. Não é incomum que se diga de quem é umbandista ou do candomblé que é “macumbeiro”, “bruxo” ou que “serve ao diabo”. E esses extremos da intolerância religiosa têm se refletido em todos os aspectos. Nas escolas, crianças adeptas da umbanda ou candomblé são perseguidas pelos colegas e até pelos professores e funcionários e, em favelas, traficantes evangélicos têm atacado terreiros “em nome de Jesus” a ponto de proibirem pessoas de usar roupas brancas, visto que os adeptos das religiões de matriz africana costumam se vestir de branco.

O preconceito contra quem segue umbanda ou candomblé deriva da crença geral de que as entidades –os orixás e exus- seriam demônios. Essas crenças são mais propagadas no meio protestante. Não é incomum que evangélicos xinguem umbandistas e candomblecistas e depredem terreiros, segundo uma jovem adepta do candomblé que sofreu bullying na universidade ao raspar a cabeça (raspar a cabeça faz parte de um rito, segundo sua explicação). Porém, esse preconceito não existe somente entre os protestantes.Católicos também possuem essas ideias de que as religiões de origem africana são demoníacas. Um senhor apologeta católico, Felipe Aquino, que é conhecido por ser radialista e apresentador das emissoras católicas Rádio Canção Nova e TV Canção Nova e faz parte da Renovação Carismática Católica no Brasil, ataca as religiões de origem africana em seu livro Falsas Doutrinas, chamando-as de demoníacas. Tal atitude apenas ajuda a alimentar o preconceito já existente.

Nas escolas, crianças adeptas de religiões africanas estão sujeitas a sofrer bullying com xingamentos e até agressão física por parte de outras crianças. Uma menina, cuja família segue a umbanda, era perseguida pelas colegas por ser da umbanda. As outras crianças diziam que ela era da “macumba” e nenhum professor ou funcionário a defendeu das perseguições. A menina chegou a ser chutada e bateu a cabeça contra a parede, passando a se recusar a ir à escola. De acordo com a mãe da criança, esta não seria a primeira vez que a família havia sofrido perseguição pois, uma vez, um carro em que os ocupantes usavam em suas camisas o slogan “Exército de Jesus”, havia andado atrás deles.

Apesar de sermos oficialmente um Estado laico e o ensino religioso não ser obrigatório, não são poucas as escolas que ministram aulas de religião – especialmente em colégios católicos ou evangélicos- e sempre se favorece o ensino do cristianismo, o que torna difícil a vida de crianças e adolescentes que seguem outras religiões. Os próprios professores e funcionários discriminam alunos que são adeptos de umbanda ou candomblé. Houve o caso de uma professora (evangélica) que propôs aos alunos fazer trabalhos em grupo sobre religiões mas, quando um grupo disse que queria fazer um trabalho sobre uma religião de matriz africana – não se sabe se sobre umbanda ou candomblé – ela disse em voz alta que tais religiões eram do demônio.

Vale lembrar que, em um passado não muito distante, o Estado brasileiro, que já era republicano, através da aplicação do Código Penal de 1890, proibia a prática de ritos afro-brasileiros, qualificando-os como xamanismo e magia negra. As autoridades chegavam a invadir terreiros e confiscar seus objetos. Atualmente, embora, pela Constituição Federal de 1988 – art. 5.º, inciso VI – seja garantido o Estado laico e secular, em que se prega a liberdade de culto, na prática vemos que ainda temos muito que avançar para podermos dizer que somos na prática um Estado laico e secular, em que todas as pessoas podem professar livremente suas crenças.

Tudo isto nos mostra como os extremos da intolerância religiosa podem causar danos e dificultar a vida de muitas pessoas. Alguns indivíduos, por crer que a religião que seguem é a verdadeira e a única que conduz à salvação de suas almas, pensam que podem perseguir impunemente quem segue outros credos, como se fossem melhores do que eles. Temos visto isso quando se fala sobre traficantes evangélicos atacando terreiros de umbanda ou candomblé. E o que são traficantes? Pessoas que ganham seu sustento em cima de destruir as vidas alheias e da violência, por serem evangélicos, creem que são melhores do que os seguidores de religiões como umbanda ou candomblé. Ou seja, apenas porque “aceitaram Jesus”, oram e buscam ao “Deus único e verdadeiro”, eles se acreditam salvos, podendo atacar outras pessoas que muitas vezes não fazem mal a ninguém, apenas querem seguir em paz sua religião. Isso deveria nos ensinar que não podemos mais usar a crença religiosa como parâmetro para dizer se uma pessoa é boa e decente. Quantos religiosos, que se comportam de maneira exemplar quando estão assistindo a uma missa ou culto, não fazem verdadeiras barbaridades em outros lugares? Esses traficantes que “seguem a Jesus” são um bom exemplo disso. Precisamos avaliar uma pessoa como um todo, observando suas atitudes, deixando de considerar o seu credo, que é um assunto individual que só diz respeito à própria pessoa.

Aliás, seguidores de religiões africanas também são vítimas de preconceitos até por parte dos espíritas. Diz-se da umbanda que ela não é mais que o “baixo espiritismo”, isto é, um espiritismo inferior e que o espiritismo verdadeiro é o kardecista, o que segue as doutrinas de Allan Kardec. Muitos são os espíritas que se sentem ofendidos se alguém lhes pergunta se são umbandistas, pais ou mães-de santo. Em sessões espíritas, aliás, fala-se que tem que se ter compreensão com os seguidores do “baixo espiritismo”, porque eles ainda não encontraram a verdade. Muitos críticos do kardecismo, por sinal, alegam que as obras escritas por Allan Kardec são claramente racistas, pois seguiriam o positivismo e o darwinismo social, o que significaria que os brancos são inegavelmente superiores aos negros. Logo, tudo associado aos negros seria inferior.

Todos estes preconceitos contra as religiões de matriz africana mostram que somos um Estado laico apenas na lei e no papel. No cotidiano, predominam o preconceito e a ignorância, reforçados por ideias erradas acerca de uma cultura que tanto contribuiu para a riqueza e a diversidade cultural no Brasil. As escolas, que são um lugar onde deveria haver esclarecimento, acabam sendo palco de mais preconceito. Seria bom que os educadores se incumbissem da missão de educar os alunos para que tivessem respeito pelas religiões de raiz africana, ainda mais porque somos um país multicultural. O nosso vocabulário, nossas crenças religiosas e tantos outros costumes sofreram influências dos negros, índios e brancos. Não há uma cultura nem uma religião superior ou inferior. Entretanto, ainda existe a crença infundada de que há culturas e religiões primitivas ou civilizadas e que estas últimas seriam superiores.

Ensinar religião nas escolas acaba contribuindo para disseminar esse preconceito infundado contra as religiões africanas, pois ajuda a reforçar a ideia de que há religiões melhores que as outras. Porém, todos os educadores deveriam ter em mente que a religião de um povo é intrinsecamente ligada à sua cultura e história. A escola deve ser um lugar para se convidar à reflexão e para ensinar o respeito às diferenças. São poucos os professores que se dispõem a fazer trabalhos de esclarecimento sobre as religiões africanas. Na grande maioria, são casos isolados.

As escolas deveriam ser um lugar de esclarecimento e, pelo fato da nossa cultura ser influenciada pelos povos africanos que vieram ao solo brasileiro, seria justo que as escolas –principalmente porque somos um Estado laico – abrissem espaço para debates e informações acerca da cultura africana, explicando sobre o sincretismo religioso, a umbanda, o candomblé e tantos outros fatores desta cultura para ajuda a combater o preconceito e a desinformação. Lamentavelmente, não é o que temos visto. Geralmente, quando se fala nas culturas indígena e africana e seu papel na formação do Brasil, é sempre de forma superficial, sem se aprofundar. Os próprios livros de História e Geografia – Geral ou do Brasil- dão mais ênfase a uma perspectiva europeizada e se fala das culturas ameríndias e africanas de maneira periférica e superficial. Os alunos acabam ficando com a impressão de que, enquanto os brancos eram superiores e civilizados, os povos africanos, ameríndios, maoris(Nova Zelândia) e aborígenes (Austrália), eram povos de cultura inferior.

Como diz Sam Harris, a religião pode acabar se tornando um fator que, em vez de unir as pessoas, divide-as. Cada um pensa que a sua religião é a certa e tende a ver a dos outros como errada. Um fato que comprova a afirmação do filósofo norte-americano é vermos crianças e funcionários de escolas perseguindo crianças da umbanda ou candomblé, qualificando-as como “macumbeiras” ou “bruxas”. Outro fato que nos ensina como a ignorância sobre essas religiões só alimenta o preconceito é a ideia de que a pomba-gira –uma entidade que os seguidores das religiões africanas qualificam como símbolo da liberdade feminina, é chamada de espírito de prostituição, ou seja, de destruidor da família.

Lutar contra o preconceito em relação a determinadas religiões é uma tarefa árdua e longa. Faz-se necessário que os grupos das religiões de matriz africana se unam e lutem por seus direitos, que são garantidos pela Constituição e que os educadores, além de agir para que crianças adeptas da umbanda ou candomblé não sofram bullying, comecem a pensar seriamente em desenvolver trabalhos no sentido de esclarecer sobre a contribuição dos povos africanos no desenvolvimento cultural do Brasil. Entretanto, temos de admitir que, no caso da educação, é muito difícil encontrar um(a) professor(a) que tenha um olhar imparcial sobre religiões.

Claro que isso não deve nos desanimar, mas fazer com que reflitamos e pensemos em todas as soluções possíveis para que nos tornemos um verdadeiro Estado laico. As religiões, sejam quais forem, devem ser respeitadas e nunca usadas como pretexto para se discriminar alguém.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Felipe_Aquino

https://www.geledes.org.br/o-povo-o-kardecismo-e-o-racismo/

https://www.geledes.org.br/religioes-de-matriz-africana-e-o-racismo-no-brasil/

https://www.politize.com.br/artigo-5/liberdade-religiosa/