Bal Tashchit - Não Destruirás
“Quando sitiares uma cidade por muitos dias, pelejando contra ela para a tomar, não destruirás o seu arvoredo, colocando nele o machado, porque dele comerás; pois que não o cortarás (pois o arvoredo do campo é mantimento para o homem), para empregar no cerco. Mas as árvores que souberes que não são árvores de alimento, destruí-las-ás e cortá-las-ás; e contra a cidade que guerrear contra ti edificarás baluartes, até que esta seja vencida.” – Deuteronômio 20.19-20
Conforme Jacob Wright (2008), muitos estudiosos afirmam que esse texto bíblico é uma resposta direta às táticas militares do Império Neoassírio, assumindo que a versão final de Deuteronômio foi escrita depois do século X a.C. De fato, era muito comum no mundo antigo, sem os muitos tratados internacionais sobre a guerra que nós temos hoje, um espírito de barbárie selvagem e brutalidade exagerada nos conflitos militares – é duvidoso se os tratados contemporâneos realmente são tão eficazes assim, mas isso é outra história. Mesmo na guerra a clemência deve imperar.
Antes do advento da artilharia pesada e explosivos era muito mais difícil invadir cidades fortificadas. Os cercos podiam durar um longo tempo, e eram muito custosos, mais ainda para os atacantes do que para os sitiados – que geralmente venciam esse jogo de espera. Nessa dinâmica, destruir árvores frutíferas podia ser uma forma de atrair os defensores para uma batalha campal – por exemplo, usando as árvores como “reféns”, ameaçando destruí-las gradualmente se a cidade sitiada não se envolvesse logo na batalha.
Wright argumenta, ao contrário da interpretação mais comum, que não há provas suficientes de que esse texto está relacionado aos métodos neoassírios, o que faz sentido se considerarmos ser verdade que Moisés disse as palavras registradas nessa passagem. Não há nada especificamente neoassírio no capítulo 20 de Deuteronômio, mas ele lida com práticas comuns no mundo antigo.
Uma questão que esse texto levanta é se a proibição de derrubar árvores frutíferas é específica de situações de cerco ou se a Bíblia está ensinando aqui uma atitude ecológica positiva em geral. Wright argumenta que Deuteronômio 20 usa situações específicas para ilustrar princípios gerais, inclusive nesses versículos. Além disso, a preocupação ecológica aparece em outras passagens de Deuteronômio, como no mandamento de não tomar uma mãe passarinho com seus filhotes (22.6-7), e a estrutura de usar exemplos específicos para ilustrar princípios gerais aparece em toda a Bíblia.
Nesse caso específico, a lei pode estar censurando uma prática menos drástica para forçar uma rendição rápida durante um cerco para proibir também práticas piores no mesmo contexto. O princípio mais geral é que amar os seus inimigos significa, às vezes, não continuar batendo (metaforicamente falando, ou não) depois que ele já estiver derrotado. Às vezes, significa deixar que eles vençam. Ou, ainda, pode ser apenas garantir uma batalha justa. Mas não significa que você nunca vai ter adversários. Se não tem ninguém se opondo a você, você não está fazendo nada.
Don Benjamin (2017) chama o contexto dessa passagem (Dt 20.10-20) de “instruções sobre cidades”, pois explica quais cidades distantes podem ser dominadas e, portanto, se tornar parte do Reino de Israel, enquanto os povos nativos de Canaã deveriam ser exterminados. Nessa lógica de incorporar cidades distantes ao Reino faz todo sentido proibir a destruição de árvores frutíferas, não apenas porque elas seriam necessárias durante o cerco, mas também porque faria aquela região permanecer útil para Israel, seja pela ocupação propriamente dita, seja para que aquele povo pudesse permanecer ali e pagar tributos, o que é muito melhor, para todos, do que simplesmente transformar a região em ruínas.
Daniel Bediako (2019) lê no versículo 19 uma estrutura quiástica:
A. Quando sitiares uma cidade por muitos dias, pelejando contra ela para a tomar
B. não destruirás o seu arvoredo, colocando nele o machado,
C. porque dele comerás;
B1. pois que não o cortarás
C1. (pois o arvoredo do campo é mantimento para o homem),
A1. para empregar no cerco.
A e A1 apresenta o contexto, B e B1 apresenta a proibição, C e C1 apresenta a justificativa. É uma bela forma de apresentar o mandamento de uma maneira em que B1, C1 e A1 são objetivamente desnecessários, mas dão um toque poético ao texto. O versículo 20 conclui o pensamento permitindo que se cortasse árvores que não são frutíferas, mas unicamente com o propósito de usar sua madeira na batalha. Isso significa que a preocupação do texto não é apenas com as árvores frutíferas, mas tem implicações ecológicas e humanitárias, que podem ser resumidas no seguinte princípio: Deus não aprova a destruição gratuita da natureza.
Note que o texto assume que o homem é mais importante do que a natureza, e que ela existe para servi-lo, mas isso não implica um uso abusivo. Pelo contrário, como mordomo da Terra, os filhos de Adão devem cuidar dela, para o seu próprio bem. Conforme Walton et al. (2004), tanto nesse caso quanto no da proteção dos pássaros (22.6-7), garante-se as futuras fontes de alimento enquanto oferece-se uma alternativa para as necessidades presentes. Nisso inferimos um princípio mais amplo: devemos evitar solucionar problemas imediatos de maneiras que gerem problemas futuros.
Alguém pode achar curioso que o texto bíblico que protege as árvores frutíferas, ordene a morte de todos os homens de uma cidade que resistisse ao exército hebreu em uma guerra contra um povo distante (Dt 20.13) e a destruição de tudo o que respira, mesmo de crianças e velhos, no caso das cidades de Canaã (16-17). A razão disso é que as árvores não oferecem nenhum perigo para o homem – ao contrário, elas podem ser fontes de alimento –, mas outros seres humanos sim. O versículo 18 aponta especificamente para o perigo de deixar os cananeus vivos: “Para que não vos ensinem a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o Senhor vosso Deus”. Mais uma vez, matar pessoas nesse caso seria uma forma de evitar problemas posteriores.
Se não devemos solucionar problemas imediatos com prejuízos futuros, muito menos devemos ter uma disposição destrutiva. Abraham Shemesh (2020) cita Maimônides que defendeu que quem quebra utensílios, rasga roupas, destrói edifícios, bloqueia uma fonte ou estraga alimentos com uma intenção destrutiva transgride o comando “não destruirás” (bal tashchit). Nada deve ser prejudicado desnecessária ou injustificadamente.
Jann Reinhardt (2014) afirma que, no judaísmo, o princípio bal tashchit foi entendido como a proibição de desperdiçar coisas que podem ser úteis para os humanos. Essa é uma implicação do conceito de que somos responsáveis por cuidar desse mundo, e deve ser aplicado tanto às pequenas coisas quanto às grandes questões ambientais. Uma das formas que esse princípio se apresenta é a colocada por Brett e Kate McKay (2010): crie mais, consuma menos. Eles assumem que isso é a verdadeira maturidade. Crianças desperdiçam, consomem e destroem; adultos preservam, produzem e criam.
BEDIAKO, Daniel K. Deuteronomy 20: 19-20 and Its Implications for Ecology in African Societies. Valley View University, Ghana, 2019.
BENJAMIN, Don C. The Social World o f Deuteronomy: a new feminist commentary. ISD LLC, 2017. Disponível em: <http://www.doncbenjamin.com/pav/docs/dfc_updates_master.pdf>.
MCKAY, Brett; MCKAY, Kate. Modern Maturity: Create More, Consume Less. 6 de abril de 2010. Disponível em: <https://www.artofmanliness.com/articles/modern-maturity-create-more-consume-less/>.
REINHARDT, Jann. An Ethics of Sustainability and Jewish Law? De Ethica, v. 1, n. 1, p. 17-35, 2014.
SHEMESH, Abraham O. 'He passed away because of cutting down a fig tree': The similarity between people and trees in Jewish symbolism, mysticism and halakhic practice. HTS Theological Studies, v. 76, n. 4, p. 1-10, 2020.
WALTON, John H.; MATTHEWS, Victor H.; CHAVALAS, Mark W. The IVP bible background commentary: Old Testament. 6th edition. Downers Grove: InterVarsity Press, 2004.
WRIGHT, Jacob L. Warfare and Wanton Destruction: A Reexamination of Deuteronomy 20: 19-20 in Relation to Ancient Siegecraft. Journal of Biblical Literature, v. 127, n. 3, p. 423-458, 2008.