Inquisição: uma mancha na história da humanidade

“Busco essa região essencial da alma em que o mal absoluto se opõe à fraternidade.” (André Malraux)

Podemos considerar a Inquisição como um dos mais terríveis períodos da História da Humanidade. Se estudarmos com afinco os arquivos históricos, documentos e livros sobre o imenso número de seres humanos mortos – a grande maioria na fogueira, em nome da misericórdia divina - podemos também imaginar como as pessoas daquela época deviam viver em estado de terror permanente, com medo de serem denunciadas, mesmo que inocentes.

Tudo iniciou quando, em 1252, papa Inocêncio V emanou uma bula que deu início à carnificina, envolvendo o mundo cristão na sua globalidade, da Itália à Espanha, da Escócia a Portugal passando, em seguida, nas colônias europeias nas Américas e até na Índia, sendo o último auto-de-fé realizado no México em 1850. Se na Idade Média foram exterminadas inteiros grupos (Albigenses, Cátaros, Valdenses), muitas vezes apenas suspeitos de praticar a heresia (até com base em acusações anônimas ou inventadas); a partir de 1484, papa Inocêncio VIII endossou oficialmente a delirante superstição segundo a qual o demônio, de noite, se unia carnalmente com as mulheres. Essa atitude papal reforçou a psicose segundo a qual o mundo estava sendo invadido por espíritos imundos que se acoplavam com as virgens para procriar monstrengos, espalhar pestilências, dizimar o gado, poluir as águas, e assim por diante. A Igreja, que na época detinha o monopólio do saber e da instrução, em vez de civilizar e amansar o povo desmentindo essas superstições, fez-se promotora e guia da irracionalidade das massas, chegando ao ponto de castigar duramente aquelas poucas mentes racionais que se recusavam a aceitar a bruxaria, considerando-a apenas como alucinação de indivíduos tresloucados. Essa triste realidade deveria fazer refletir aquelas pessoas, tanto soberbas quanto ignorantes e fanáticas, que teimam em afirmar que a Igreja cristã foi uma instituição iluminada protetora da Ciência e da razão. Essas mesmas pessoas, que não perdem a oportunidade para lembrar que na Antiguidade o povo adorava assistir aos cruentos jogos gladiatórios, esquecem que o povo da Idade das Trevas e Moderna se apresentava em massa aos autos-de-fé, chegando a levar lenha para queimar os condenados, recebendo, em troca, a indulgência para seus pecados.

Em Portugal, assim como em qualquer país europeu, a Inquisição funcionou durante séculos, tendo como objetivo perseguir os que representavam uma ameaça à ortodoxia da Igreja Católica. Para isso, criou-se o Tribunal da Santa Inquisição, que propalava ter como principal objetivo investigar supostos crimes de heresia. Era frequente que pessoas fossem denunciadas e presas sem nem mesmo haver provas; muitas vezes sendo submetidas a torturas insuportáveis. A legitimidade das torturas havia sido ratificada repetidamente por vários Papas e tinha como justificativa conceitos teológicos estabelecidos já nos primeiros séculos do cristianismo quando, por exemplo, Santo Agostinho admitia que, para o bem das almas, os inimigos da fé podiam e deviam sofrer justas perseguições.

Não elencaremos aqui os inúmeros tipos de tortura praticados pelos inquisidores, métodos que causam horror ao leitor moderno; iremos todavia salientar que, com uma hipocrisia nunca atingida antes na história da humanidade, foram tidos pela Igreja como justos e necessários para a salvação da alma de quem se afastava dos dogmas do catolicismo. Destarte, com a desculpa de salvar as almas, queimavam-se os corpos!

Entre os muitos horrores da Inquisição, lembramos que, sempre a partir do século XIII, foram aperfeiçoados os instrumentos jurídicos que tornaram a Inquisição algo bastante semelhante às polícias secretas do século XX, isto é, a Gestapo nazista e a NKDV do regime stalinista. Os presos não tinham direitos, sendo já considerados culpados de antemão, e os inquisidores só tinham como função extorquir confissões e arrancar os nomes de supostos cúmplices para tornar permanente o poder absoluto baseado no medo generalizado. Desse ponto de vista, a Igreja encarnou um regime do tipo teocrático, tendo poder de vida e de morte sobre a totalidade da população europeia, sem distinção de classe social, de sexo ou de idade. Assim como na União Soviética, onde tanto os membros do Partido Comunista como os funcionários da NKDV podiam ser perseguidos em qualquer momento, nem os próprios eclesiásticos estavam a salvo. A realização do terror de massa desencadeado contra pessoas totalmente inocentes representa a ferramenta mais significativa do totalitarismo, conforme os estudos da filósofa Hannah Arendt.

Assim como a Alemanha Nazista teve a sua “Bíblia” representada pelo Mein Kampf de Adolf Hitler, a Inquisição utilizou um livro de suma importância, escrito em 1487, por dois monges dominicanos, Johann Sprenger e Heinrich Kraemer, que elaboraram um manual de investigação, o Malleus Maleficarum (o martelo das bruxas), cujos preceitos eram os seguintes: afirmar a existência de bruxas era conforme ao magistério católico, enquanto afirmar o oposto era tido como uma heresia. Mesmo que o Malleus não faça em princípio distinção entre homens e mulheres, as mulheres foram as maiores vítimas desse livro. O Malleus teve 28 reedições e podemos afirmar que foi um manual bastante sofisticado de tortura e de como arrancar confissões. A situação se tornou pior quando a Reforma Protestante entrou em confronto com a Contrarreforma católica e, na segunda metade do século XVI, tanto católicos quanto protestantes intensificaram a caça às bruxas. Essa violenta perseguição atingiu seu ápice com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) que causou oito milhões de mortes sendo, em proporção com a população da época, mais sangrenta que a Primeira e a Segunda Guerra Mundial juntas.

A Igreja Católica, temerosa que elementos dissidentes pudessem surgir de dentro do próprio Clero; instituiu, em 1500, a Congregação do Santo Ofício, mantendo as informações oficiais em sigilo e tendo autorização para julgar os crimes de heresia, bruxaria, magia e abandono da fé. Não há dúvidas de que as práticas de investigação e julgamento se degeneraram em um verdadeiro terror. O processo de Giordano Bruno, queimado vivo em Roma em 1600, é um exemplo de como não era necessário que um suspeito tivesse cometido crimes reais, bastando ter uma opinião diferente da ortodoxia católica. Lembramos que Giordano Bruno não era ateu, mas panteísta, como se acreditar num espírito divino e bondoso espalhado pelo Universo fosse um crime hediondo!

Embora uns historiadores exagerem o número de vítimas da Caça às Bruxas, dizendo que na Europa dos séculos XV-XVII foram queimadas nove milhões de mulheres, a própria Igreja Católica admite que os processos foram em torno de cem mil, tendo resultado em pelo menos cinquenta mil mortes na fogueira. Observamos, porém, que esse número foi subestimado, pois não foram levadas em consideração as vítimas massacradas sem processo, principalmente nas pequenas aldeias da Europa Central. Essas não foram poucas, tanto que em muitos vilarejos não havia mais mulheres, nem as meninas, todas queimadas na estaca.

Depois de séculos de silêncio total, aos 12 de março de 2000, o papa João Paulo II pediu desculpas pelos crimes da Igreja, mas o fez de forma insatisfatória pelos seguintes motivos:

1) o perdão foi pedido a Deus e não às vítimas;

2) não foi pronunciado o nome de nenhum culpado falando apenas na “Igreja” mas, como essa instituição é composta por todos os batizados, a culpa foi distribuída entre milhões de crentes;

3) os crimes foram todos colocados no segundo milênio, como se os muitíssimos pagãos massacrados no primeiro não contassem nada;

4) o Papa falou que, se os Cristãos tiveram suas culpas, os outros foram piores; um teorema realmente alucinante! Seria como dizer: “Eu matei cinco mil pessoas, você matou vinte mil, portanto eu, comparado a você, sou um anjo”.

Entre as vozes independente do Vaticano que dissentiram das “desculpas” de papa Joa Paulo II, vale a pena salientar as seguintes:

Domenico Tomasetto (Presidente da Federação das Igrejas Evangélicas Italianas): «Um pedido de perdão que […] representa apenas um excelente espetáculo midiático, mas totalmente despido de relevância teológica».

Amos Luzzatto (Comunidades Hebraicas Italianas): «Não há contradição entre o arrependimento expresso pela Igreja pelos crimes perpetrados contra os judeus no passado e a beatificação de Pio IX, que foi um dos autores? […] Eu esperava um reconhecimento das responsabilidades políticas da Igreja pelas perseguições antijudaicas: por exemplo, sobre o estabelecimento de guetos pelos quais a Igreja praticamente nunca disse nada».

Leonardo Boff (Teólogo da Libertação): «O primeiro perdão que a Igreja deveria pedir seria dirigido aos pobres defraudados. Por ser uma Igreja rica, e por que, quando outros apoiaram os pobres, eles foram condenados como falsos profetas». Provavelmente Boff estava se referindo ao caso de Pedro Valdo, fundador de um grupo ascético caracterizado por fazer voto de pobreza e desapego às coisas materiais, cujos membros acabaram sendo excomungados, perseguidos e assassinados.

No entanto, ainda hoje há quem defenda a Inquisição, minimizando as atrocidades por ela cometidas. Mas mesmo que, em vez de ter massacrado centenas de milhares de pessoas, tivesse queimado na fogueira apenas umas centenas, isso serviria para tornar uma instituição monstruosa uma obra de caridade cristã? Uns reacionários pensam que sim, entre eles o Prof. Felipe Aquino, um simples radialista que, em seu livro “Para entender a Inquisição” de 2009, afirma que a crítica contra a Inquisição seria apenas uma ferramenta usada pelos inimigos da Igreja. O historiador Igor Tadeu Camilo Rocha, Doutor em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais, a respeito do livro de Aquino, diz:

«Tal obra de Aquino se configura como atualização de uma escrita negacionista e apologética da história inquisitorial, afiliada a vertentes mais conservadoras da doutrina católica, o que conecta o autor a uma tradição de escrita da história dos ditos tribunais que existe desde o século XIX. Trata-se de narrativas que consistem em produzir negações, feitas sob o pretexto de contextualizar fatos considerados infamantes sobre oasInquisições, como a violência – sobretudo os autos de fé e torturas – e seu obscurantismo – censura de livros e da ciência, além das perseguições a grandes pensadores. A negação e/ou minimização se estende ao envolvimento da Igreja Católica na fundação, funcionamento e procedimentos da Inquisição. O argumento de “Para entender a Inquisição”, também, conflui com a construção de um regime de verdade no qual tais tribunais teriam sido uma espécie de imperativo civilizatório, de um lado, e uma invenção anticatólica da modernidade, de outro, não se excluindo mutuamente ou se contradizendo. Assim, confere-se sentido histórico a um tradicionalismo católico atrelado à ideia de um Ocidente idealizado, exaltando-se valores antimodernos, conservadores e refratários a ideais como o pluralismo religioso e às liberdades democráticas em geral».

O Dr. Rocha prossegue com outra consideração histórica: «Assim, a negação de qualquer culpa da Igreja quanto a violências e crimes que as Inquisições tenham cometido mistura-se no “Para entender à Inquisição” com uma exaltação dos tribunais religiosos como meios necessários à construção da civilização e evitar-se o retorno ao barbarismo. O negacionismo e o fatalismo histórico, assim, encontram-se».

Enfim, é decididamente ante-histórica e antiética a comparação feita por Aquino entre a Inquisição católica e aquelas que ele define de “Inquisições modernas”, como se os crimes cometidos por Hitler ou Stalin justificassem os perpetrados pela Igreja. Em definitiva, Felipe Aquino, que não é um historiador, revela uma profunda atitude antidemocrática e um asco generalizado contra o livre pensamento. Inclusive, igual a outros autores ligados à Renovação Carismática Católica, no livro Falsas Doutrinas (de 2010), Aquino ataca as religiões afro-brasileiras, acusando-as de demoníacas e promovendo assim a violência e o preconceito contra estas religiões.

NOTA: Maiores esclarecimentos sobre a época da caça às bruxas podem ser encontrados no artigo do Richard Foxe intitulado: “Bruxas e fogueiras nos séculos XV-XVII”, publicado aos 089/05/20.

https://expresso.pt/cultura/os-horrores-da-inquisicao=f783739

https://www.historiadomundo.com.br/idade-media/as-torturas-da-inquisicao.htm

https://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2004/06/15/ult34u98109.jhtm