Santa Bakhita, herança espiritual
Padre Geovane Saraiva*
Na dinâmica rígida e inflexível da vida, Deus julga cada pessoa humana a partir do seu interior. Por essa razão, pelos seus propósitos salvíficos, Ele não faz discriminação de pessoas, no entanto, os ideais consequentes do seu Evangelho ainda persistem e resistem a duras penas, num elevado preço e custo de renúncia, sacrifício e generosidade, ideais esses que precisam, sempre mais, ser transformados em realidade na história humana.
Pensei no ideal de uma grande santa de origem africana, Josefina Bakhita, ao viver uma vida mergulhada em Deus, num heroísmo inigualável como nenhuma outra pessoa. Nascida no Sudão, em 1869, Josefina foi sequestrada ainda jovem e vendida como escrava. Treze anos depois, foi libertada e migrou para a Itália, onde se converteu ao catolicismo e se tornou freira, religiosa. Viveu uma vida exemplar e foi canonizada santa no ano 2000. Eis um belo exemplo de como a nossa diversidade cultural e racial é possível: viver com Cristo a morrer por qualquer vantagem!
Mulher exemplar e referencial, de escrava a santa, Josefina Bakhita revelou generosidade e coragem de uma alma irrepreensível, pela sua trajetória, deslumbrante e fascinante, do ponto vista da fé cristã. Sem o misterioso dom da graça de Deus, teria sido fácil desistir, buscar vingança ou permitir que o ódio contagiasse toda a sua vida, mas ela se recusou a permitir que as feridas do passado destruíssem seu futuro. Josefina apoiou-se, simplesmente, como mulher, como ser humano, admirável e incomparável, como santa, um exemplo na diversidade e vastidão, na busca da perfeição.
Aqui no Bairro Parquelândia, na Paróquia de Santo Afonso, Fortaleza, lembro-me muito da amiga Iraneide Freire, com sua incansável devoção, ao falar do ardor e da docilidade de Santa Bakhita, despertando-me interesse e curiosidade. João Ubaldo Ribeiro, um grande brasileiro, cultor das nossas letras, romancista e ensaísta da melhor estirpe, membro da Academia Brasileira de Letras, não media palavras, no sentido de elevar e colocar bem alto o nome de Santa Bakhita, sendo ela um despertar espiritual, desmedida e descomunal, na busca de sua fé sólida e segura.
Que Santa Bakhita ajude as pessoas de boa vontade a buscarem um cristianismo mais verdadeiro e solidário, que no passado foi contaminado por atitudes ou ideias raciais, sobretudo no contexto das missões do “novo mundo”, ao se deparar com as culturas, na dificuldade de se perceber um Evangelho encarnado e inculturado. Os missionários deixavam-se levar pelo que diziam os colonizadores, faltando-lhes sensibilidade e sabedoria, mesmo no contexto deletério da escravidão, a qual deveria ter sido considerada nefasta e intolerante quanto preconceituosa, no sentido de anunciar a boa-nova da salvação na sua plenitude, incomparável a qualquer outro conteúdo.
No contexto bíblico, Santa Bakhita nos desafia, embora o Evangelho não fale expressamente da realidade racial, e propõe a conversão do coração, de um modo claro e contundente, no que diz respeito ao racismo, quando se afirma a igualdade como indispensável e essencial aos seguidores de Jesus de Nazaré, assegurando-nos não haver distinção entre judeus e gentios, gregos e bárbaros, homens e mulheres (cf. Cl 3, 9-11). Assim seja!
*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).