Ser ou Não Ser Menino?

“(…) e vossos filhos, que hoje não conhecem nem o bem nem o mal (...)” – Deuteronômio 1.39

É curioso como no caso da rebeldia de Israel que culminou no castigo do povo passar 40 anos no deserto, Deus determina punir de morte apenas os de 20 anos para cima. É como se os mais jovens não tivessem a mesma obrigação de obediência ao Senhor, pois, conforme o versículo acima, eles não atingiram a maturidade plena. Temos aqui um precedente bíblico de punição mais leve para crimes cometidos por menores de idade. Ainda que alguns dos adolescentes hebreus tenham participado ativamente da rebelião descrita em Números 13-14, eles não são castigados com a morte, e lhes é permitido entrar na Terra Prometida após os 40 anos de peregrinação.

É claro que essa maturidade é muito relativa. Algumas pessoas são capazes de distinguir entre o bem e o mal antes dos 20 anos, e outras demoram mais. Essas que são lentas para amadurecer, entretanto, também são responsáveis, porque 20 anos é tempo suficiente para se tornar um adulto apto a fazer julgamentos morais. Conforme Joseph Fleishman (1992), a idade de 20 anos como maturidade legal aparece em outras fontes antigas, como os Manuscritos do Mar Morto, que inclusive afirma que uma pessoa não deve casar, testemunhar ou ser julgada antes dessa idade.

Segundo Fransman (2020), não há em Deuteronômio a noção de um período de transição entre infância e idade adulta, embora os filhos recebam atenção especial nesse livro, especialmente em relação a como eles deveriam ser educados. De fato, a Bíblia sempre assume uma dicotomia criança/adulto ao lidar com a maturidade, não existindo algo como uma “adolescência”. Em I Coríntios 3, por exemplo, Paulo separa os crentes em duas categorias: os “espirituais” e os “meninos em Cristo” (v.1). A característica do menino é ser carnal, levado por “inveja, contendas e dissensões” (v.3). Os coríntios estavam chorando como crianças birrentas envolvidas em disputas tolas, o que, nas palavras de Grobbelaar (2020), nos mostra que eles não entendiam o que é realmente importante na vida cristã; eles não sabiam distinguir o bem e o mal. O triste é que eles tiveram tempo para amadurecer, tanto em termos de idade terrena quanto na experiência espiritual. Eles já deviam ser adultos em Cristo, mas ainda eram meninos.

Mais adiante (1Co 13.11), Paulo afirma que quando era “menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino”, mas quando chegou a ser homem, acabou com as “coisas de menino”. Muitas pessoas se tornam adultas, mas continuam agindo como crianças. Ele ainda vai dizer categoricamente: “Irmãos, não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento” (1Co 14.20).

Essa visão negativa da infância no Antigo e no Novo Testamento fornecem um contexto interessante para a afirmação de Jesus de que nós devemos ser como crianças. Em Mateus 18.1-5, os discípulos se aproximaram Dele perguntando: “quem é o maior no reino dos céus?”. E o Senhor, chamando um menino, o pôs no meio deles, e disse: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus. E qualquer que receber em meu nome um menino, tal como este, a mim me recebe”.

Em Marcos 9.33-37, Jesus acrescenta: “Se alguém quiser ser o primeiro, será o derradeiro de todos e o servo de todos”. E: “Qualquer que receber um destes meninos em meu nome, a mim me recebe; e qualquer que a mim me receber, recebe, não a mim, mas ao que me enviou”. Em Lucas 9.46-48 lemos ainda a mesma história, que termina com a frase: “aquele que entre vós todos for o menor, esse mesmo será grande”.

Nas palavras de Fransman, isso é absolutamente contracultural. Jesus foi pioneiro nesse tipo de valorização das crianças. Os infantes não são respeitados, já que são limitados em muitos aspectos; mas os cristãos devem ser humildes como eles, identificando-se como alguém sem status, um ninguém, fraco e vulnerável. Paradoxalmente, ser espiritualmente maduro, para Jesus, é ser como uma criança.

A metáfora da infância é usada de maneiras totalmente diferentes pelo apóstolo Paulo e pelos autores dos Evangelhos Sinópticos. Somos, portanto, confrontados com duas afirmações contrárias das Escrituras: devemos ser como crianças e não devemos ser como crianças. Na linguagem de Deuteronômio 1, essa dialética se exprime no fato de que devemos conhecer o bem e o mal (v.39), mas devemos nos deixar ser carregados por Deus “como um homem leva seu filho” (v.31).

FLEISHMAN, Joseph. The age of legal maturity in biblical law. Journal of the Ancient Near Eastern Society, v. 21, n. 1, p. 2370, 1992.

FRANSMAN, V. J. The role of Christian Mentoring in Positive Youth Development Programs in the Hex River Valley. 2020. Tese de Doutorado. North-West University (South Africa). Disponível em: <http://repository.nwu.ac.za/handle/10394/36401>.

GROBBELAAR, Jan. Doing theology with children: A childist reading of the childhood metaphor in 1 Corinthians and the Synoptic Gospels. HTS Theological Studies, v. 76, n. 4, p. 1-9, 2020.