Lei dos Ciúmes: Submissão Feminina e Violência de Gênero
Conforme Números 5.11-31, quando um homem hebreu desconfiasse que sua esposa havia sido infiel, deveria trazê-la ao sacerdote para que ela bebesse um tipo de poção que a amaldiçoaria se ela realmente tivesse cometido adultério. Era certamente um ritual degradante e desigual, já que a mulher não tinha direito de fazer o mesmo caso desconfiasse do marido. E conforme Pieter Botha (2000), alguns rabinos ensinaram que se ela não aceitasse passar pelo ritual, sua boca deveria ser aberta com pinças de ferro para que bebesse o líquido amaldiçoante.
Alguns estudiosos entendem que essa “lei dos ciúmes” (Nm 5.29) nunca foi aplicada de fato, pois não há nenhum registro que indique isso. Entretanto, a simples existência dela já indica que a Bíblia pressupõe uma relação de dominação entre homem e mulher. O marido tinha direitos de autoridade sobre a esposa que ela não tinha sobre ele, beirando à objetificação. Nesse ponto a Bíblia não se distancia da mentalidade da Antiguidade sobre a relação homem-mulher.
Alguns poderiam argumentar que isso é uma realidade presente apenas no Antigo Testamento, mas o Novo não escapa da lógica de desigualdade entre homens e mulheres, que pode ser claramente atestada em passagens como I Coríntios 11 e 14 e I Timóteo 2. Embora em Cristo não haja “macho nem fêmea” (Gálatas 3.28), isso não significa que os papéis sociais de homens e mulheres amplamente aceitos no mundo antigo e no AT tivessem que ser alterados. Embora o relacionamento entre homem e mulher não devesse ser mais inerentemente violento (como, conforme Botha, eram as relações maritais na época em que o NT foi escrito), ainda era fundamentalmente hierárquico.
Esse é um lembrete de que não devemos tentar enxergar nas Escrituras nossas próprias concepções – ou as concepções da nossa época – para no fim encontrarmos nossas opiniões como preceitos bíblicos carregados de autoridade divina. Não basta caçarmos um ou outro texto que pareça indicar uma igualdade social entre homens e mulheres quando essa é uma noção totalmente alheia à cosmovisão bíblica, que ensina categoricamente a submissão feminina ao seu marido (MARX, 2014).
Por outro lado, podemos entender Números 5 como uma forma de prevenir violência contra a mulher. Naqueles tempos era muito mais fácil para um homem ferir ou matar sua esposa sem ser pego. Esse ritual seria uma forma de acalmar o “espírito de ciúmes” do marido, e proteger a mulher, que poderia provar sua inocência de modo sobrenaturalmente inquestionável. Não havia necessidade de garantir a mesma proteção para os homens, já que para a mulher era muito mais difícil praticar violência contra seu marido.
Isso nos ensina que a Igreja deve estar na vanguarda na luta pela proteção de mulheres da violência doméstica. A Igreja reconhece, doutrinariamente, que embora homens e mulheres sejam desiguais por natureza e, consequentemente, em funções sociais, eles são igualmente importantes para Deus; entretanto, muitas vezes cristãos praticam violência de gênero de diferentes maneiras, ou pelo menos são omissos em relação a ela.
A liderança dos maridos sobre suas esposas não deve ser para degradá-las, mas para cuidar delas e protegê-las – e se um homem usa sua autoridade contra sua família, outras pessoas devem intervir para protegê-la dele. Essa intervenção vai desde um ensino bíblico sistemático para mudar mentes e corações a fim de levar a mudanças estruturais da sociedade até o uso da força – civil e estatal – em casos extremos para salvar vidas.
O problema que Números 5.11-31 tenta solucionar não é o adultério, é o ciúme. O conflito não é provocado pela mulher, mas pelo homem. Às vezes pode ser um ciúme justificado, quando de fato a mulher traiu seu marido, mas às vezes não. Prevenir a violência do homem é uma necessidade, “porque os ciúmes enfurecerão o marido; de maneira nenhuma perdoará no dia da vingança. Não aceitará nenhum resgate, nem se conformará por mais que aumentes os presentes” (Provérbios 6.34-35).
Para um leitor contemporâneo, esses rituais de provação podem parecer estranhos, mas a Bíblia possui outros deles – como a Páscoa, que se não fosse adequadamente celebrada resultaria na morte de primogênitos hebreus (Êxodo 12), e a Ceia do Senhor, que se for tomada indignamente pode resultar em condenação e morte (I Coríntios 11.27-30). Essas refeições provatórias eram não apenas atos de julgamento, mas atos de redenção (ANDERSON, 2014). A inocência da mulher suspeita seria provada, e as acusações silenciadas – como a mulher adúltera de João 8, que não teve sua inocência provada, mas foi justificada por Jesus. Sim, a água amarga era a justificação da acusada.
ANDERSON, Douglas William. The Origin and Purpose of Matthew 27: 51b-53. 2014. Tese de Doutorado. University of Otago. Disponível em: <https://ourarchive.otago.ac.nz/bitstream/handle/10523/4962/AndersonDouglasW2014PhD.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.
BOTHA, Pieter JJ. Submission and violence: Exploring gender relations in the first-century world. Neotestamentica, v. 34, n. 1, p. 1-38, 2000.
BRIGGS, Richard. Reading the Sotah Text (Numbers 5: 11-31): Holiness and a Hermeneutic Fit for Suspicion. Biblical interpretation, v. 17, n. 3, p. 288-319, 2009.
MARX, Benjamin. The Submission of Wives and Its Implications for Daily Life: A Comparative Study of Plutarch's MORALIA and the CORPUS PAULINUM. 2014. Tese de Doutorado. Evangelische Theologische Faculteit, Leuven.
MANZANGA, P. A public pastoral assessment of Church response to Gender Based Violence (GBV) within the United Baptist Church of Zimbabwe. 2020. Tese de Doutorado. North-West University (South-Africa). Disponível em: <http://repository.nwu.ac.za/bitstream/handle/10394/36490/12403768%20Manzanga%20P.pdf?sequence=1>.
PUNT, Jeremy. Paul, body theology, and morality: Parameters for a discussion. Neotestamentica, v. 39, n. 2, p. 359-388, 2005.