Tzaraat, Inclusão e Quarentena
“Também as vestes do leproso, em quem está a praga, serão rasgadas, e a sua cabeça será descoberta, e cobrirá o lábio superior, e clamará: Imundo, imundo” – Levítico 13.45
Conforme Louise Gosbell (2018), a "lepra" (tzaraat) descrita no Pentateuco é uma doença muito específica, e tentativas de classificá-la na terminologia biomédica contemporânea não foram capazes de chegar a um consenso (OLANISEBE, 2014). Não tem nada a ver com a hanseníase, nem com nenhuma doença conhecida, e não é necessariamente a mesma "lepra" do Novo Testamento. O relato bíblico, entretanto, é suficiente para nos fazer entender um pouco o seu impacto biológico e social.
A tzaraat é frequentemente associada no Antigo Testamento a uma forma de punição. Por exemplo, em Números 12.10-15 e II Crônicas 26.16-21, Miriã e Uzias, respectivamente, são castigados com a doença. Alguns estudiosos apontam que nem sempre tzaraat está ligada a alguma forma de culpa moral ou religiosa, mas é difícil afirmar isso categoricamente a partir do texto bíblico.
Curiosamente, alguns psicanalistas, independentemente das Escrituras, afirmam que muitos problemas de pele estão associados com desordens psicológicas, o que leva à interpretação de alguns de que a tzaraat seria possivelmente um problema psicossomático (MIEL, 1990).
O mais óbvio impacto social do tzaraat era a exclusão completa do sujeito que tinha essa doença da comunidade. Conforme Lv 13.45, não apenas a pessoa precisava ficar afastada, como também deveria comunicar a todo aquele que se aproximasse dela de sua imundície. Cristo, entretanto, nos dá uma nova perspectiva sobre o assunto. Se a lepra está de alguma forma associada ao pecado, e em Cristo nós encontramos o perdão de todos os pecados, Nele podemos encontrar também aceitação e inclusão. Nesse sentido, a Igreja, como corpo de Cristo, deve superar o mundo em uma defesa bíblica e consistente, imitando Jesus, do acolhimento de todos os rejeitados.
Gosbell, em outro texto (2019), conta a história de John, o irmão mais novo do seu marido. Portador de Síndrome de Down, ele foi abandonado pelos pais biológicos e adotados pelos sogros dela. Por vários anos John ficava na porta da igreja recepcionando as pessoas, sendo um rosto amado por todos, mas quando um novo pastor assumiu a congregação ele decidiu que não era apropriado que o rapaz representasse a igreja de forma alguma, mesmo para dar boas-vindas, porque ele não era capaz de entender o Evangelho e, portanto, não era um cristão propriamente dito.
Gosbell, a princípio, tentou considerar que essa exclusão foi uma ocorrência única, mas rapidamente percebeu, conversando com familiares e cuidadores de pessoas com deficiência, que esse tipo de atitude era muito frequente. Por exemplo, era considerado “pedir muito” fazer mudanças na liturgia para ajudar pessoas com deficiência auditiva ou visual, até mesmo a produção de boletins com letras grandes. Assim, muitas igrejas, em vez de serem comunidades da graça, permanecem como muralhas da lei.
Não, servo de Jesus Cristo, nosso Senhor nos diz: “sai pelos caminhos e valados” (Lucas 14.23), vai pelas vielas e pega todo aquele que está excluído, “sai depressa pelas ruas e bairros da cidade, e traze aqui os pobres, e aleijados, e mancos e cegos” (Lc 14.21). Chame os leprosos, os imundos, toque neles e eles serão curados e limpos. Há espaço para todos na Ceia do Senhor. O leproso clama “imundo, imundo”, mas Cristo declara “limpo, limpo”.
Em algumas situações, entretanto, a aproximação física se torna impossível. O afastamento do leproso em Levítico 13-14 era um ato de amor pela comunidade, já que a doença poderia se espalhar. Na atual pandemia de Covid-19, da mesma forma, quarentena e distância física – pelo menos daquelas pessoas mais vulneráveis – também se tornam fundamentais. Mas também levam ao perigo de solidão ou mesmo depressão.
A distância física não deve se tornar uma distância social (STEINER 2020). De Gênesis a Apocalipse, a Bíblia ensina que o povo de Deus deve se manter unido para poder se relacionar com o mundo sem se contaminar. Agora nós andamos isolados e distantes uns dos outros, e isso não tem nada a ver com a pandemia. Somos leprosos voluntários, caminhando à margem do arraial. Não deve ser assim, entretanto. Podemos usar os meios de comunicação para fortalecer os laços de fraternidade, ainda que seja necessário um distanciamento físico. Podemos praticar a inclusão mesmo na quarentena.
GOSBELL, Louise A. "The poor, the crippled, the blind, and the lame": physical and sensory disability in the Gospels of the New Testament. Mohr Siebeck, 2018.
GOSBELL, Louise. Embodied worship: reflecting on the inclusion of people with disabilities in church communities. Practical Theology, v. 12, n. 3, p. 250-252, 2019.
MIEL, D. K. ’Psychological interpretation’. In Coggins & JL Mouldon, A dicfionary of biblical interpretafion, p. 571-572, 1990.
OLANISEBE, Samson O. Laws of tzara'at in Leviticus 13-14 and medical leprosy compared'. Jewish Bible Quarterly, v. 42, n. 2, p. 121, 2014.
STEINER, Till M. Quarantäne, Einsamkeit und Psalmen. HTS: Theological Studies, v. 76, n. 1, p. 1-4, 2020.