*Contém Spoilers
Adoro histórias de conversões. Eu me sinto como uma criança ouvindo uma história fantástica. Aguardando os melhores momentos, imitando as expressões, os movimentos, os sons… Meus olhos brilham por saber dos diversos caminhos pelos quais nos encontramos com Deus e somos transformados por ele. Vez ou outra me pego procurando isso nos filmes, nas séries, na literatura, ou mesmo nas conversas com amigos.
Em: “A viagem do Peregrino da Alvorada”, esse é um dos pontos que mais me encantam. Nele, Lúcia e Edmundo voltam ao país encantado através de um quadro na parede da casa de seu primo, Eustáquio, que acidentalmente, mas não por acaso, também vai para Nárnia. Lá encontram o rei Caspian (que antes era príncipe), no navio Peregrino, em busca dos sete fidalgos que haviam sido enviados por seu tio para ilhas diferentes. Juntos, eles vão explorar cada ilha e nelas viver histórias cheias de aventura e emoção. Contudo, por trás de tantas situações inusitadas, é possível perceber em seus personagens uma aventura maior, pela qual muitos de nós passamos ou vamos passar.
O PRIMEIRO PASSO
Diante disso, quero atentar primeiro para um dos protagonistas da história: Eustáquio Clarêncio Mísero. Logo no início do livro, o menino demonstra ser uma pessoa bastante desagradável. Com um comportamento desonesto, sempre se fazendo de vítima, facilmente conquistou o desprezo de toda a tripulação do navio peregrino e o meu também. Suas atitudes mesquinhas e seu discurso crítico e materialista fazem a escolha de seu último nome, como é dito no livro, parecer merecida. Entretanto, o pequeno teve uma lição que o mudou para sempre.
Quando desembarcam em uma das ilhas, depois de muitos dias viajando, o primo de Lúcia decide sair sozinho para descansar enquanto os outros procuram alimentos. No caminho decide entrar em uma caverna para esconder-se da chuva e nela encontra um dragão que estava morrendo. Lá ele também descobre um enorme tesouro. Após encher os bolsos com ele, e imaginar sua vida abastada a partir dali, exausto, cai no sono. Após acordar com muita dor no braço, pois havia colocado um bracelete que agora lhe apertava, vai até uma lagoa para beber água. Ao ver nela o seu reflexo, entra em desespero, pois, ao invés de sua face, vê um dragão. Quando vai ao encontro dos primos e da tripulação, com lágrimas, explica-lhes através de gestos o que aconteceu. Sua arrogância e egoísmo são substituídos por vergonha, tristeza, e humildade. Passando a ajudar os outros da forma que pode, Eustáquio, na forma de dragão, começa a mudar enquanto menino.
Esse trecho do livro faz parecer como se o interior do personagem se revelasse por fora. É como se fosse necessário tal evento para que ele pudesse enxergar quem realmente era. Tal cena me faz lembrar certa vez, quando, ainda adolescente, dei o primeiro passo consistente em direção à fé. A pessoa que ministrava deu-nos um espelho e perguntou: “Quem é você?”. Acredito que esta pergunta pode (como fez comigo) fazer ecoar diversos questionamentos: “Somos quem pensamos ser?” Ou ainda: “Somos quem deveríamos ser?”. Como Eustáquio no lago, ao dedicar um olhar atento para dentro de nós, percebemos que nossa humanidade fora desfigurada pelo pecado. Como o Apóstolo Paulo declarou, não fazemos o bem que queremos, mas o mal que não queremos. Mais do que a resposta para essas perguntas, teremos a mesma percepção do apóstolo romano: “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?”.
O ENCONTRO
Em uma das passagens que, na minha opinião, é uma das mais bonitas de todas as Crônicas, seu autor nos aponta a solução. Certo dia, caminhando sozinho e ainda muito triste com sua forma de dragão, Eustáquio encontrou Aslam, que lhe disse que o seguisse. O leão levou-o para uma nascente de água pura, pediu-lhe que tirasse suas roupas e se banhasse naquela nascente. Entendendo que com “roupas” o leão se referia às muitas camadas de escamas de pele que um dragão tem, embora tentasse, esfregando-se com todas as forças, Eustáquio não conseguia retirá-la sozinho. Cada vez que ele tirava uma camada de pele, percebia que por baixo havia outra. Aslam então, com suas garras, tirou-a por completo. Segundo o menino, foi um processo tão doloroso, que ele só suportou porque queria livrar-se dela. Ao olhar suas escamas, depois de retiradas, surpreendeu-se em como elas eram mais escuras e duras do que ele imaginava. Feliz por estar livre, banhou-se nas águas, e quando saiu foi vestido com roupas novas.
Em um outro livro, chamado “Cristianismo Puro e Simples”, C.S. Lewis, o autor das Crônicas de Nárnia diz que o cristianismo “não tem nada a dizer às pessoas que não têm a consciência de ter feito algo de que devem se arrepender e que não sentem a urgência de ser perdoadas”. Por outro lado, uma vez que reconhecemo- nos como pecadores, Lewis prossegue dizendo que as exigências da lei que “nem eu nem você conseguimos cumprir, foram cumpridas por Alguém, para o nosso bem; que Deus mesmo se fez homem para salvar os homens de sua própria ira”. Assim, do mesmo modo que o menino precisou enxergar e entristecer-se com sua natureza desfigurada, encontrar-se com Aslam, que, segundo o Autor, é o redentor de Nárnia, e submeter-se a ele, para livrar-se dela, nós precisamos encontrar a Cristo, nosso Redentor. Ao caminhar com Ele, conhecê-lO, e sujeitarmo-nos a Ele, somos transformados dia após dia em quem realmente devemos ser.
O trecho termina falando que Eustáquio, às vezes, tinha algumas recaídas de chatice, mas que a mudança havia começado. Do mesmo modo que começou em mim, há algum tempo, e em muitos outros que tiveram “um encontro com o leão”, que lhes mostrou quem eram, também. Assim, pela graça, tal transformação se estende a todos aqueles enxergam em seu reflexo as escamas de um caráter desconstruído. A todos os que se submetem àquele que, tendo dado a vida em nosso lugar, pode livrar- nos delas.
PEREGRINOS DA ALVORADA
Para escrever esse texto, pedi para que alguns amigos compartilhassem sua história de fé. Me encantou como, assim como muitos personagens das crônicas, cada um foi encontrado e perdoado de um modo diferente, mas com o mesmo amor. Uns pelo medo, outros pela dor. Alguns cresceram e foram aprendendo com muita simplicidade o caminho, outros perceberam em tudo o que viveram o vazio existencial da vida sem Deus. Cada um, a seu tempo, reconhecendo-se pecador e dependente de Cristo, iniciou sua história com Ele. E desde então, os corações peregrinos, sendo transformados, permanecem navegando ansiosos em direção à Alvorada de Cristo.