A literatura, sem dúvida, é uma rica fonte de conhecimento. A forma mítica de narrar eventos, desde os tempos mais antigos é um recurso para dizer verdades que dão sentido à existência. O uso de mitos é mais conhecido no campo da filosofia, principalmente platônica, esta foi a forma como o filósofo ergueu o edifício de seu pensamento. No entanto, o uso do mito não é uma prerrogativa simplesmente de filosofia, podemos também fazer seu uso na teologia. Tomamos nesta série das Crônicas de Nárnia, a crônica intitulada Príncipe Caspian para uma análise de sentido teológico, o nosso convite é para que encontremos Deus através da narrativa de C.S.Lewis. E justamente o encontro com Deus, o reconhecimento de sua presença é o ponto central da crônica.
Resumidamente: a crônica Príncipe Caspian conta o retorno dos grandes reis e rainhas, Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia, a Nárnia. Este retorno se dá em um momento crítico para os narnianos, que foram submetidos e quase instintos por telmarinos. Aslam, o grande Leão, uma metáfora do próprio Cristo, está visivelmente ausente. Obviamente não vamos dar um ‘spoiler’ aqui caso ainda não tenha lido a crônica, mas nosso foco é mostrar aqui a necessidade de uma sensibilidade com relação à presença de Deus, sua atuação ainda que silenciosa ao longo de toda a nossa história.
O primeiro elemento que destacamos é a forma como Deus chama a cada um, como nos transporta para sua realidade, e de forma irresistível, se dá a conhecer. Caspian, o príncipe das crônicas de Lewis, no meio de uma fuga, faz uma dolorosa experiência que vai mudar toda a sua concepção da realidade, pela dor da queda ele descobre sua missão: “Destro corria em disparada; Caspian ainda que bom cavaleiro, não tinha força para dominá-lo. A custo consegui manter-se na sela, certo de que sua vida estava presa por um fio naquela louca cavalgada. Eis que, de súbito, quase sem tempo para sentir a dor, alguma coisa lhe bateu na fronte e ele perdeu os sentidos.” (LEWIS, 2009, p. 322). Esta experiência de Caspian, a partir de um agir ‘invisível’ de Aslam o Grande Leão, na verdade é como que um ‘método’ antigo de Deus para chamar aqueles a quem quer designar uma missão: “Estando ele em viagem e aproximando-se de Damasco, subitamente uma luz vinda do céu o envolveu de claridade. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saul, Saul, por que me persegues?’ Ele perguntou: ‘Quem és Senhor?’ E a resposta: ‘Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te, entra na cidade, e te dirão o que deves fazer.’” (At 9, 3-6). É preciso, ao longo do tempo, perceber a forma como Deus nos chama. Às vezes somos tão cabeça dura que é necessária uma pancada, um tombo, um ‘cair do cavalo’ para poder reconhecer a presença de Deus.
Outro elemento interessante está no ativismo, elemento que inibe a presença de Deus em nossa vida. Os grandes reis de Nárnia, no ímpeto de salvar o mundo do perigo em que estava, se esqueceu daquele que outrora fora o Salvador, e mesmo com sua contínua e sutil presença, não o reconheceram, não compreenderam seu mistério. “Olhem, olhem! – gritou Lúcia. – O quê? Onde? – disseram todos. – O Leão! – disse Lúcia. – Aslam! Vocês não viram? – Estava transfigurada, com os olhos em fogo.” (LEWIS, 2009, p.351). No cristianismo nascente, também foi assim: “ Ao voltarem do túmulo, anunciaram tudo isso aos Onze, bem como a todos os outros. Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. As outras mulheres, que estavam com elas, disseram-no também aos apóstolos; essas palavras, porém, lhes pareceram desvario, e não lhes deram crédito.” (Lc 24, 9-11). Muitas vezes, mesmo com a presença do Cristo, principalmente nos momentos de sofrimento, não o reconhecemos: “Ora, enquanto conversavam e discutiam entre si, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles; seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhece-lo.” (Lc 24, 15-16) O ímpeto de agir pelo bem que experimentamos em Deus, pode nos afastar dEle, à medida em que deixamos de confiar em Sua força, e optamos por depender apenas de nós mesmos.
No entanto, não basta apenas ver o Cristo, ou, no caso das crônicas, ver o Leão, é preciso, pelo testemunho e pela verdade, busca-lo de coração. Lúcia, a destemida, via Aslam, mas não teve, por muito tempo, forças para estar com Ele. “Aslam! Querido Aslam! – soluçou. – Até que enfim! [...] – Foi bom ter vindo – disse ele. – Aslam, como você está grande! – É porque você está crescida, meu bem. – E você não? – Eu não. Mas à medida que você for crescendo, eu parecerei maior a seus olhos.” [...]“Oh, Aslam, acha que eu errei? Como é que eu... podia deixar os outros e vir sozinha encontrar-me com você? Não olhe para mim desse jeito... bem... de fato... talvez eu pudesse. Sei que com você não estaria sozinha. Mas ia adiantar alguma coisa? [...] – Mesmo assim teria sido melhor? – perguntou Lúcia, com a voz sumida. – Mas, como? Aslam, por favor, diga-me. – Dizer o que teria acontecido? Não a ninguém jamais se diz isso.” (LEWIS, 2009, p. 358). Muitas vezes o que nos impede de perceber a presença de Deus é o fato de esperarmos dEle um agir friamente calculado, uma intervenção óbvia na história. A forma como Deus já agiu em nossa vida deve estar em nossa memória, é preciso, no entanto, saber reconhece-lo pela essência do amor. “Pensei que você viria rugindo e que os inimigos fugiriam de medo... como da outra vez. Afinal, vai ser horrível. – Será difícil para você, querida, mas as coisas nunca acontecem duas vezes da mesma maneira. Todos nós já passamos momentos difíceis em Nárnia.” (LEWIS, 2009, p.359). Na perspectiva bíblica o encontro do Senhor com os discípulos gira em torno justamente desse amor, cuja prova maior é o mistério pascal da paixão, morte e ressurreição: “E, uma vez à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o e deu-o a eles. Então seus olhos se abriram e o reconheceram; ele, porém, ficou invisível diante deles. E disseram um ao outro: ‘Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?’” (Lc 25, 30-32). É preciso fazer a experiência de encontro com Cristo, mais do que isso, é preciso permanecer com Ele para que nEle encontremos a força necessária para enfrentar as adversidades e caminhar. Cristo em nossa vida é, ao mesmo tempo, nossa fonte de força e o objetivo do nosso caminho, com Ele caminhamos e para Ele caminhamos. “Lúcia escondeu o rosto na juba. Mas devia haver algum poder mágico, pois ela se sentiu invadida pela força do Leão. Sentando-se de repente, disse: - Desculpe, Aslam. Estou pronta. – Agora você é uma leoa – disse ele. – Nárnia inteira será renovada. Venha, não temos tempo a perder. (LEWIS, 2009, p.359). O verdadeiro encontro com o Grande Leão, com Cristo faz de nós participantes do seu múnus, estar verdadeiramente na presença de Cristo é encontrar as forças necessárias para lutar neste mundo.
Por fim, a presença de Deus, ou, no caso das crônicas, a presença de Aslam, só pode ser percebida quando assumimos o nosso ser, com limites e possibilidades. Em suma, para perceber a presença de Deus é preciso humildade, saber que nada fizemos para merecer o seu amor, que nada ‘paga’ o que Ele fez por nós, mas ainda assim, Ele nos ama. E foi assim que Caspian assumiu, na Crônica, o seu lugar como Rei de Nárnia, quando finalmente pôde compreender quem ele era diante de Aslam: “Descende de Adão e Eva – tornou Aslam. – É honra suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de cabeça erguida, e também vergonha suficientemente grande para fazer vergar os ombros do maior imperador da Terra. Dê-se assim por satisfeito. (LEWIS, 2009, p. 394). Sejamos, pois, humildes e corajosos: humildes para assumir a nossa humanidade, corajosos para suplicar a presença e permanência de Deus junto de nós, e saibamos por fim, que Ele está no meio de nós!
REFERÊNCIAS
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1ª Ed. 9ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2002.
LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. Trad. Silêda Steuernagel Paulo Mendes Campos. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
Resumidamente: a crônica Príncipe Caspian conta o retorno dos grandes reis e rainhas, Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia, a Nárnia. Este retorno se dá em um momento crítico para os narnianos, que foram submetidos e quase instintos por telmarinos. Aslam, o grande Leão, uma metáfora do próprio Cristo, está visivelmente ausente. Obviamente não vamos dar um ‘spoiler’ aqui caso ainda não tenha lido a crônica, mas nosso foco é mostrar aqui a necessidade de uma sensibilidade com relação à presença de Deus, sua atuação ainda que silenciosa ao longo de toda a nossa história.
O primeiro elemento que destacamos é a forma como Deus chama a cada um, como nos transporta para sua realidade, e de forma irresistível, se dá a conhecer. Caspian, o príncipe das crônicas de Lewis, no meio de uma fuga, faz uma dolorosa experiência que vai mudar toda a sua concepção da realidade, pela dor da queda ele descobre sua missão: “Destro corria em disparada; Caspian ainda que bom cavaleiro, não tinha força para dominá-lo. A custo consegui manter-se na sela, certo de que sua vida estava presa por um fio naquela louca cavalgada. Eis que, de súbito, quase sem tempo para sentir a dor, alguma coisa lhe bateu na fronte e ele perdeu os sentidos.” (LEWIS, 2009, p. 322). Esta experiência de Caspian, a partir de um agir ‘invisível’ de Aslam o Grande Leão, na verdade é como que um ‘método’ antigo de Deus para chamar aqueles a quem quer designar uma missão: “Estando ele em viagem e aproximando-se de Damasco, subitamente uma luz vinda do céu o envolveu de claridade. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saul, Saul, por que me persegues?’ Ele perguntou: ‘Quem és Senhor?’ E a resposta: ‘Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te, entra na cidade, e te dirão o que deves fazer.’” (At 9, 3-6). É preciso, ao longo do tempo, perceber a forma como Deus nos chama. Às vezes somos tão cabeça dura que é necessária uma pancada, um tombo, um ‘cair do cavalo’ para poder reconhecer a presença de Deus.
Outro elemento interessante está no ativismo, elemento que inibe a presença de Deus em nossa vida. Os grandes reis de Nárnia, no ímpeto de salvar o mundo do perigo em que estava, se esqueceu daquele que outrora fora o Salvador, e mesmo com sua contínua e sutil presença, não o reconheceram, não compreenderam seu mistério. “Olhem, olhem! – gritou Lúcia. – O quê? Onde? – disseram todos. – O Leão! – disse Lúcia. – Aslam! Vocês não viram? – Estava transfigurada, com os olhos em fogo.” (LEWIS, 2009, p.351). No cristianismo nascente, também foi assim: “ Ao voltarem do túmulo, anunciaram tudo isso aos Onze, bem como a todos os outros. Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. As outras mulheres, que estavam com elas, disseram-no também aos apóstolos; essas palavras, porém, lhes pareceram desvario, e não lhes deram crédito.” (Lc 24, 9-11). Muitas vezes, mesmo com a presença do Cristo, principalmente nos momentos de sofrimento, não o reconhecemos: “Ora, enquanto conversavam e discutiam entre si, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles; seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhece-lo.” (Lc 24, 15-16) O ímpeto de agir pelo bem que experimentamos em Deus, pode nos afastar dEle, à medida em que deixamos de confiar em Sua força, e optamos por depender apenas de nós mesmos.
No entanto, não basta apenas ver o Cristo, ou, no caso das crônicas, ver o Leão, é preciso, pelo testemunho e pela verdade, busca-lo de coração. Lúcia, a destemida, via Aslam, mas não teve, por muito tempo, forças para estar com Ele. “Aslam! Querido Aslam! – soluçou. – Até que enfim! [...] – Foi bom ter vindo – disse ele. – Aslam, como você está grande! – É porque você está crescida, meu bem. – E você não? – Eu não. Mas à medida que você for crescendo, eu parecerei maior a seus olhos.” [...]“Oh, Aslam, acha que eu errei? Como é que eu... podia deixar os outros e vir sozinha encontrar-me com você? Não olhe para mim desse jeito... bem... de fato... talvez eu pudesse. Sei que com você não estaria sozinha. Mas ia adiantar alguma coisa? [...] – Mesmo assim teria sido melhor? – perguntou Lúcia, com a voz sumida. – Mas, como? Aslam, por favor, diga-me. – Dizer o que teria acontecido? Não a ninguém jamais se diz isso.” (LEWIS, 2009, p. 358). Muitas vezes o que nos impede de perceber a presença de Deus é o fato de esperarmos dEle um agir friamente calculado, uma intervenção óbvia na história. A forma como Deus já agiu em nossa vida deve estar em nossa memória, é preciso, no entanto, saber reconhece-lo pela essência do amor. “Pensei que você viria rugindo e que os inimigos fugiriam de medo... como da outra vez. Afinal, vai ser horrível. – Será difícil para você, querida, mas as coisas nunca acontecem duas vezes da mesma maneira. Todos nós já passamos momentos difíceis em Nárnia.” (LEWIS, 2009, p.359). Na perspectiva bíblica o encontro do Senhor com os discípulos gira em torno justamente desse amor, cuja prova maior é o mistério pascal da paixão, morte e ressurreição: “E, uma vez à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o e deu-o a eles. Então seus olhos se abriram e o reconheceram; ele, porém, ficou invisível diante deles. E disseram um ao outro: ‘Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?’” (Lc 25, 30-32). É preciso fazer a experiência de encontro com Cristo, mais do que isso, é preciso permanecer com Ele para que nEle encontremos a força necessária para enfrentar as adversidades e caminhar. Cristo em nossa vida é, ao mesmo tempo, nossa fonte de força e o objetivo do nosso caminho, com Ele caminhamos e para Ele caminhamos. “Lúcia escondeu o rosto na juba. Mas devia haver algum poder mágico, pois ela se sentiu invadida pela força do Leão. Sentando-se de repente, disse: - Desculpe, Aslam. Estou pronta. – Agora você é uma leoa – disse ele. – Nárnia inteira será renovada. Venha, não temos tempo a perder. (LEWIS, 2009, p.359). O verdadeiro encontro com o Grande Leão, com Cristo faz de nós participantes do seu múnus, estar verdadeiramente na presença de Cristo é encontrar as forças necessárias para lutar neste mundo.
Por fim, a presença de Deus, ou, no caso das crônicas, a presença de Aslam, só pode ser percebida quando assumimos o nosso ser, com limites e possibilidades. Em suma, para perceber a presença de Deus é preciso humildade, saber que nada fizemos para merecer o seu amor, que nada ‘paga’ o que Ele fez por nós, mas ainda assim, Ele nos ama. E foi assim que Caspian assumiu, na Crônica, o seu lugar como Rei de Nárnia, quando finalmente pôde compreender quem ele era diante de Aslam: “Descende de Adão e Eva – tornou Aslam. – É honra suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de cabeça erguida, e também vergonha suficientemente grande para fazer vergar os ombros do maior imperador da Terra. Dê-se assim por satisfeito. (LEWIS, 2009, p. 394). Sejamos, pois, humildes e corajosos: humildes para assumir a nossa humanidade, corajosos para suplicar a presença e permanência de Deus junto de nós, e saibamos por fim, que Ele está no meio de nós!
REFERÊNCIAS
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1ª Ed. 9ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2002.
LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. Trad. Silêda Steuernagel Paulo Mendes Campos. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.