As Setenta Semanas de Daniel 9
“Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para cessar a transgressão, e para dar fim aos pecados, e para expiar a iniqüidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o Santíssimo.” – Daniel 9.24
Daniel 9 lida com um problema teológico muito complexo: Deus havia prometido por Jeremias que em 70 anos Israel seria restaurado do Exílio Babilônico, mas o povo ainda não havia se arrependido, condição sine qua non para que a promessa se cumprisse. Por isso, embora o povo fosse retornar para a sua terra, a restauração completa de Israel – e o reinado glorioso do Messias – demoraria sete vezes mais, 490 (70 x 7) anos. A multiplicação por sete tem precedente bíblico, como em Levítico 26, em que quatro versículos (vs. 18, 21, 24 e 28) o Senhor promete punir sete vezes mais o povo caso não se arrependessem dos seus pecados.
Isso ensina, nas palavras de Pratt Jr. (2005), que Daniel se difere de outros profetas de sua época que indicavam um cumprimento iminente das expectativas escatológicas. Em Daniel 9, foi revelado ao profeta que o eschaton tinha sido adiado por falta de arrependimento. A complexidade do assunto e os diferentes aspectos dessa profecia tornam esse capítulo um dos mais debatido da Bíblia.
Para começar a destrinchar as setenta semanas de Daniel, o primeiro passo é entender o ponto de partida da contagem, “a saída da ordem para restaurar” (9.25). Parece-me que a melhor interpretação dessa ordem, seguindo Mauro (2015), é o decreto de Ciro, o Grande, registrado em II Crônicas 36.22-23 e Esdras 1.1-4. Isso é reforçado por Isaías 44-45, que afirma que Jerusalém deveria ser reconstruída e seus cativos restaurados ao seu lar por Ciro. “Que digo de Ciro: É meu pastor, e cumprirá tudo o que me apraz, dizendo também a Jerusalém: Tu serás edificada; e ao templo: Tu serás fundado.” (Isaías 44.28).
Uma das coisas que deveria acontecer nessas setenta semanas é “cessar a transgressão”. O termo “transgressão” (pesha) aparece duas vezes em Daniel 8.12-13. Nessa passagem é dito que alguém denominado “chifre muito pequeno” faria cessar o sacrifício contínuo e lançaria por terra o santuário, “e um exército foi dado contra o sacrifício contínuo, por causa da transgressão” (v.12), que no versículo 13 é chamada de “transgressão assoladora”.
Conforme Mauro, a transgressão de que fala Daniel 9.24 é o pecado de Israel, de modo que, seguindo essa interpretação, o significado da transgressão de 8.12-13, se tratar do mesmo assunto, significa também que todo o mal que sobreviria contra Israel era consequência direta do pecado deles, como o próprio Daniel afirma claramente na oração do início do capítulo 9. Mas o Senhor promete cessar a transgressão, o que acabaria também com o motivo do povo ser castigado. Sentido semelhante teriam as expressões “dar fim aos pecados”, “expiar a iniquidade” e “trazer a justiça eterna” que também se referem às setenta semanas.
Quanto à expressão “selar a visão e a profecia”, ela pode ser entendia no sentido de que a visão e profecia de Daniel especificamente, ou as visões e profecias do Antigo Testamento em geral, seriam cumpridas. Finalmente, a expressão “ungir o Santíssimo” deve se referir ao Ungido (Messias/Cristo) a quem o texto se refere nos versículos 25-26, significando que o Cristo seria consagrado como o verdadeiro Santo dos Santos, a morada de Deus no mundo. Sendo assim, os seis eventos mencionados em Daniel 9.24 se cumprem na morte e ressurreição de Jesus Cristo, quando o Ungido foi “cortado” (9.26).
Conforme o mesmo versículo 26, as setenta semanas são divididas em três períodos, de sete, sessenta e dois, e mais uma semana. O segundo período, que completa sessenta e nove semanas, dura “até ao Messias, o Príncipe”. Segundo Mauro, o momento em que Jesus é oficialmente ungido como o Cristo foi em Seu Batismo, em que desce sobre ele, não óleo, como outros ungidos, mas o próprio Espírito Santo na forma de uma pomba.
Considerando que o decreto de reedificar a cidade ocorreu "no primeiro ano de Ciro, Rei da Pérsia" (Esdras 1.1) e o batismo de Jesus ocorreu “no ano quinze do império de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos presidente da Judéia, e Herodes tetrarca da Galiléia, e seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da província de Traconites, e Lisânias tetrarca de Abilene, sendo Anás e Caifás sumos sacerdotes” (Lucas 4.1-2), se a interpretação de Mauro estiver correta, a própria Bíblia nos fornece o início e o fim das sessenta e nove primeiras semanas da profecia de Daniel 9.
Quanto à última semana, o texto ainda a divide em duas meias semanas no versículo 27. O fato do ministério de Jesus – ou seja, o período entre o Seu batismo e a Ascensão aos céus – ter durado cerca de três anos e meio tem levado muitos intérpretes a entenderem que a primeira metade dessa semana (lembrando que as semanas aqui referidas são semanas de anos) se refere a esse período da vida de Jesus, o que me parece bastante coerente com os pontos levantados até aqui. É no final dessa primeira metade da semana que o Ungido faz “cessar o sacrifício e a oblação”, pois com a morte e ressurreição de Jesus nenhum sacrifício ou ritual é necessário, já que pelo Seu sangue Ele “firmará aliança com muitos” (9.27).
As setenta semanas começam com a ordem de reconstrução da cidade e terminam com uma nova destruição dela: “o povo do príncipe, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário” (9.26). O problema que se levanta é que parece haver um período de tempo entre a primeira metade da semana e a segunda, já que não ocorreu nenhuma destruição de Jerusalém logo após a morte e ressurreição de Jesus. Por isso alguns intérpretes entendem que os três anos e meio que restavam para completar as setenta semanas de anos se referem à destruição de Jerusalém em 70 d.C., enquanto outros entendem que esse período ainda não aconteceu.
A dificuldade para qualquer interpretação é que o texto não parece mostrar algum indício de que há um hiato em algum momento das setenta semanas. Assumindo a primeira interpretação, porém, Mauro entende que o príncipe que haveria de vir é Tito César, que comandou a destruição de Jerusalém e se tornou, poucos anos depois, o imperador romano. Essa interpretação faz sentido, se considerarmos que o hiato de cerca de quarenta anos foi uma oportunidade para aquela geração se arrepender de seus pecados, o que, assim como a multiplicação do castigo, também tem precedente bíblico.
MAURO, Philip. The Seventy Weeks and the Great Tribulation. Ravenio Books, 2015. Disponível em: <https://www.huiskerk.co.za/wp-content/uploads/2014/07/The-Seventy-Weeks-and-the-Great-Tribulation-1923.pdf>.
PRATT JR, Richard L. Hyper-Preterism and Unfolding Biblical Eschatology. When Shall These Things Be?: A Reformed Response to Hyper-Preterism. Reformed Perspectives Magazine, Volume 7, Number 46, 2005.