A história da bíblia
A Bíblia é certamente o mais controvertido dos livros e por isso mesmo aquele que se propor a ler e interpretar o seu conteúdo, terá pela frente uma espinhosa tarefa. Mais espinhosa ainda será a tarefa daquele que tentar explicar certas passagens, pelo que, muitas vezes, terá que inventar respostas de acordo com a sua interpretação pessoal.
Como a bíblia é considerada, por muitos, um livro sagrado, que foi escrito por homens inspirados e que, portanto, ela é a palavra de Deus, as pessoas de fé buscam nela informações para nortear suas vidas, incentivo para a labuta diária ou uma ligação mais direta com Deus.
Outros, apenas por curiosidade ou para ampliar seus conhecimentos, lá fazem pesquisas ou procuram respostas. Mas de acordo com os especialistas, a forma mais segura de se estudar a bíblia é através da exegese, que se entende como a análise dos fatos no tempo e no contexto histórico, seguida da hermenêutica, que é a interpretação dos textos através do sentido das palavras.
A partir daí, sempre obedecendo à classificação de cada livro, se distinguir os que são históricos, proféticos, canônicos, poéticos, sapienciais, etc.
Sabemos que a maioria das pessoas que lê a bíblia não entende da classificação dos livros, nem de exegese e muito menos de hermenêutica. Logo, o Antigo Testamento é, para elas, apenas um emaranhado de histórias de antigos povos de costumes bárbaros e com tradição guerreira, para quem os anjos apareciam a qualquer momento indicando caminhos ou soluções e muitas vezes instruindo-os para a guerra.
Procurando dar maiores informações para quem busca cultura geral, elaboramos a presente síntese da história da bíblia que, inclusive, para ser fiel a sua origem está despojada de qualquer interpretação doutrinária ou tendência religiosa.
Para começar, temos que dizer que o Antigo Testamento ou a Tanakh, que é a bíblia dos judeus, e aceita, com reservas, pelos cristãos, nada tem a ver com o Novo Testamento ou os Evangelhos.
O que queremos dizer é que o Antigo Testamento é uma coisa e o Novo Testamento é outra coisa, visto que o Antigo Testamento começa com o livro do Gênesis e termina com o livro de Malaquias e o Novo Testamento começa com o Evangelho de São Mateus e termina com o Apocalipse.
Diante dessas explicações, podemos dizer que não existe bíblia cristã, porque o que existe de cristão nas bíblias é só o Novo Testamento, que foi enxertado, pela igreja católica, na bíblia hebraica por São Jerônimo, ha pelo menos, mil e duzentos anos depois que os hebreus escreveram seu ultimo livro o de Malaquias, conforme explicaremos mais adiante.
Considerando que o Velho Testamento é a história do judaísmo e o Novo Testamento é a história do cristianismo, o correto seria denominar apenas o Novo Testamento como a bíblia cristã.
Mas, vamos ver o que diz a história. O Velho Testamento descreve a vida dos primitivos povos da Mesopotâmia, principalmente a origem do povo hebreu, sua saga religiosa, seu atraso cultural, a submissão aos egípcios, a Terra Prometida, o cativeiro babilônico, o retorno e a reconstrução do templo.
A genealogia ocupa-se tão somente com a dinastia que vai desembocar no povo judeu, visto que ao longo dos textos, os escritores vão abandonando personagens como os da linhagem de Caim, e as que não sejam importantes para justificar a direta descendência do povo “eleito”.
Tanto é que os outros ramos da árvore de Noé, como os filhos de Cam, de Jafé, e dos muitos outros filhos de Abrahão, praticamente desaparecem dos escritos, ou quando necessários, são ali esporadicamente mencionados.
Embora o Velho Testamento apresente um conteúdo, histórico, doutrinário e filosófico que merece o maior respeito, é bom lembrar que de nenhum de seus livros, se possui o original, o que existe são fragmentos de antigos escritos em hebraico e aramaico, que como os demais fatos, foram escritos muito tempo depois de acontecidos. Além disso, cada povo e em cada época escreveu uma parte da história e de acordo com a sua língua e seus costumes.
Assim como muita coisa foi perdida, muita coisa também pode ter sido inventada. Além disso, os relatos não fazem qualquer referência de como surgiram às outras raças, como os povos que antes de Adão, já habitavam a região de Nod, para onde Caim fugiu, e se uniu a uma mulher que não era da linhagem de Adão. Gn 4-16,24.
Dentro desse contexto bastante polêmico e das divergentes interpretações que continuam gerando celeumas em todo o mundo, os teólogos mais sensatos, se mostram prudentes sobre algumas afirmações, mesmo porque, como disse o filósofo, a leitura pura e simples dos textos sagrados se compara ao homem que colhe o trigo, come a palha e joga os grãos fora.
No inicio do cristianismo um grupo de judeus e romanos denominado gnóstico, escreveu a história da vida e da morte de Jesus, bem como a doutrina por Ele deixada produzindo-se ao todo mais de oitenta textos aos quais denominaram de evangelhos ou boa nova.
Desses mais de oitenta evangelhos, o Concilio de Niceia de 325 escolheu apenas quatro o de Marcos, Lucas, Mateus e João para compor o Novo Testamento.
Ficaram de fora e considerados apócrifos os evangelhos de Pedro, Madalena, Tiago, Felipe, Tomé e um evangelho árabe que falava da infância de Jesus.
Além de suprimir todos os textos que falavam da vida de Jesus dos 12 aos 29 anos, mudaram a antiga interpretação de nova vida na carne por ressurreição da carne, trocaram a palavra espírito por diabo e ainda transformaram Maria Madalena em uma prostituta.
Uma vez encerrado o Concilio o imperador Constantino mandou fazer uma nova versão do Novo Testamento que omitia os evangelhos que faziam referencia a Jesus como ser humano normal e ordenou a destruição de todos os outros escritos antigos que fossem contrários ao que foi decidido pelo Concilio.
Voltando ao Velho Testamento é bom dizer que desde os tempos de Salomão, a interpretação dos antigos escritos dos hebreus já suscitava divergências teológicas entre eles.
O motivo dessa divergência é que, naquele tempo, existiam duas versões do livro sagrado, uma que contemplava o deus Eloin dos cananeus e por isso, chamada eloísta e outra que contemplava o deus Javé dos babilônicos e por isso denominada javista.
A origem dessa discussão não estava apenas na diferente denominação de Deus, mas principalmente na história e nos conteúdos do Gênesis em que os deuses dizem “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança Gn, 1-26”. Isso quer dizer que esses deuses eram iguais a nós, de carne e osso, e não seres etéreos que estão em todos os lugares ao mesmo tempo e se fosse um só deus, teria dito “Faço o homem a minha imagem e semelhança”.
Lá em Êxodo, 23-25 um dos deuses diz, “Ele abençoará o vosso pão e a vossa água e Eu tirarei de ti as enfermidades”. Ou seja, são dois deuses cada um com uma habilidade.
No primeiro capítulo do Gênesis vrs. 27 Um Deus cria um homem e uma mulher, mulher esta que alguns livros apócrifos dizem ser a Lilith ou a primeira mulher de Adão.
Já no capitulo 2, vrs. 21 a 23 outro Deus faz uma segunda mulher a quem Adão disse “Esta sim, desta vez, é carne da minha carne e osso dos meus ossos”.
Mas deixemos essas intrigantes passagens do Gênesis e continuemos a viagem pela história. Com a morte de Salomão no ano 930 a.C, os hebreus se dividiram e cada reino ou facção seguiu um Livro.
O reino de Judá com capital em Jerusalém, no sul, ficou com a versão javista e o reino de Israel com capital na Samaria, ao norte, seguiu a orientação eloísta.
Embora no exílio babilônico alguns hebreus houvessem juntado as duas versões em uma só, que denominaram de Sacerdotal, essa versão unificada, logo, caiu no esquecimento e as duas versões a javista e a eloísta continuaram a rodar pelo mundo.
Por volta do século III a.C, vivia no Egito, mais especificadamente em Alexandria uma importante colônia judaica que falava a língua grega e se pautava pela versão eloísta.
Nessa época esses judeus de Alexandria escreveram os livros de Tobias, Judite, Macabeus 1, Macabeus 2, Baruc, Eclesiástico e Sabedoria, que por haverem sidos escritos em grego e ainda produzidos fora do solo pátrio, esses livros, foram considerados, pelos judeus da Palestina, como apócrifos ou não inspirados por Deus.
Tentando apaziguar a comunidade de Alexandria, o sumo sacerdote Eleazar, enviou para lá, setenta e dois sábios judeus, sendo seis de cada uma das doze tribos de Israel, para traduzirem os antigos escritos, do hebraico para o grego.
A lenda conta que a nova versão foi completada em setenta e dois dias, e por razões cabalísticas denominou-se versão dos “Setenta” (LXX). Nessa versão o grupo de sábios incluiu os sete livros apócrifos.
Assim, a versão dos “Setenta”, ou septuaginta, eloísta, passou a ter 46 livros, e a versão javista ficou com apenas 39 livros. A falta desses livros, em uma das versões da Tanakh, viria bem mais tarde alimentar o cisma protestante e originar a principal diferença entre as bíblias católicas e evangélicas que gera polêmica até hoje.
Uma das primeiras traduções da Septuaginta feita pelos cristãos foi a controvertida Vetus Latina, elaborada por tradutores livres e por isso considerada a mais original.
No ano de 382 o papa Damásio mandou o teólogo São Jerônimo refazer a Vetus Latina, mas disse que o trabalho deveria ser feito de acordo com a sua orientação e ordenou enxertar o Novo Testamento nessa nova versão da bíblia.
Essa remontagem, feita por São Jerônimo, foi considerada a versão bíblica mais importante para a igreja católica e ficou conhecida como Vulgata Latina.
A partir daí, o Novo Testamento começou a fazer parte integrante da bíblia agora considerada a bíblia dos cristãos.
Os cristãos haviam se apropriado da Versão dos Setenta, o livro sagrado dos judeus, fizeram nela varias alterações e incluíram o Novo Testamento.
Incomodados com a apropriação indevida e com as alterações que os cristãos fizeram no seu livro sagrado, lá pelo século VI um grupo de doutores judeus chamado de Massoretas, resolveu refazer os escritos da antiga Versão dos Setenta, retirou os livros apócrifos e a adaptou só para uso dos judeus.
Essa nova edição da Versão dos Setenta, agora dividida em 24 livros e bem diferente da bíblia cristã, passou a denominar-se Tanakh e é hoje conhecida como a bíblia hebraica.
No curso dos séculos a Vulgata Latina foi revista no Concílio de Cartago em 397, depois em Alcuino em 801, em Florença em 1441 e passou por várias outras alterações.
Com o caminho aberto pela Reforma Protestante de 1517, que repudiava a bíblia católica muitos a corrigiam a bel-prazer corrompendo-a ainda mais a ponto de estudantes de toda a Europa que afluíam à Universidade de Paris, trazerem cada qual seu próprio exemplar da bíblia com textos divergentes entre si.
Diante dessas múltiplas edições, Martinho Lutero optou por uma versão mais original, e ao traduzir a antiga Versão dos Setenta, do grego para o alemão, também retirou do texto os sete livros considerados apócrifos, incluiu o Novo Testamento e consolidou a bíblia protestante com 66 livros, sendo 39 livros no Antigo e 27 no Novo Testamento.
A confusão teológica instalada com as diferentes bíblias em circulação motivou a intervenção do Concílio de Trento, que em oito de abril de 1546, depois de marchas e contramarchas, ainda que sob protestos de alguns, o Cânon Romano reconheceu a validade dos livros apócrifos, agora denominados Deuterocanônicos e confirmou a versão da Vulgata Latina para uso dos católicos.
De qualquer forma, na medida em que o tempo passava, assim como os Papas mandavam fazer sucessivas alterações nas suas bíblias em latim, muitas outras igrejas continuaram a produzir bíblias em outros países com conteúdos e línguas diferentes.
Em 1611 o rei James e uma equipe de teólogos ingleses traduziram bíblias em latim, grego e hebraico e fizeram uma bíblia para uso da Igreja Anglicana que ficou conhecida como a bíblia do rei James.
A bíblia católica continuou sofrendo frequentes alterações, até que, finalmente, em 1979, com a edição da Nova Vulgata Scripturarum Thesauros ela se consolidou com 73 livros, sendo 46 no Velho e 27 no Novo Testamento.
Assim, a bíblia, principalmente o Novo Testamento, como se conhece, só foi liberado ao público depois de passar pela censura do Papa. Consequentemente, todos os cristãos do mundo, inclusive protestantes e ortodoxos, só ficaram sabendo, dos Evangelhos, aquilo que o Vaticano deixou que soubessem.
Como ainda hoje, cada segmento religioso cristão continua imprimindo a sua própria bíblia, e para que o leitor não seja induzido ao fanatismo é de bom alvitre que ao ler a bíblia tome cuidado e se oriente por um razoável conhecimento de história, de antropologia, sociologia e filosofia.
Na falta destes dotes, o bom senso e o uso da razão já evita que você vá para as praças públicas anunciar que o mundo vai acabar.