Tempo de Morrer
TEMPO DE MORRER
“Há tempo de nascer, e tempo de morrer” – Eclesiastes 3.2a
A Bíblia frequentemente nos confronta com a finitude da existência humana. Se, por um lado, a inevitabilidade da morte nos assusta, a incerteza de quando e como ela virá nos assusta ainda mais. Será uma passagem tranquila em uma velhice distante cercada por uma família que nos ama? Será um fim rápido, daquele que a pessoa nem sente, quando a sepultura a pega de surpresa? Será uma morte lenta e horrivelmente dolorosa, em que a pessoa sente tanta dor que implora para morrer logo?
Apesar dessa paradoxa incerteza inevitável que cerca a morte, nosso controle sobre ela aumenta a cada geração. Como imagem e semelhança de Deus, o homem tem usado sua inteligência para, por um lado, adiar a morte, curando doenças e evitando acidentes, e por outro apressar a morte, criando armas cada vez mais eficazes. O mesmo pode ser dito sobre o “tempo de nascer”. Há diversas técnicas hoje para interromper uma gravidez, e para fazer com que uma mulher que não poderia ter filhos engravide. Isso levanta uma série de problemas éticos, que podem ser resumidos em uma simples pergunta: até que ponto o homem pode tentar alterar o “tempo de nascer” e o “tempo de morrer”?
Conforme Baeke et al. (2011), por exemplo, alguns judeus conservadores (que não são a mesma coisa que judeus ortodoxos, sendo uma tentativa de meio-termo entre ortodoxos e reformistas) citam esse texto para afirmar que, embora todos os meios possíveis devam ser usados para preservar a vida humana, não se pode esquecer que há um “tempo de morrer”, de modo que, se o paciente estiver sentindo muita dor, e.g., seria correto para os médicos interromperem um tratamento agressivo quando não há chance razoável de recuperação de uma doença terminal.
Aliás, baseado nesse princípio, alguns judeus defendem que nem sequer podemos dizer que a vida é um direito inviolável, já que, se há um tempo de morrer, significa que a vida é um direito limitado. De fato, o Antigo Testamento permite que a vida de determinadas pessoas seja ceifada em determinadas situações.
Essa ideia nos conduziria naturalmente a sermos contra a eutanásia no sentido de deliberadamente tirar a vida de uma pessoa em estado terminal, mas a aceitar a suspensão de tratamento de alguém que possa conduzi-lo à morte. Aplicar uma droga para interromper a vida e manter a pessoa viva por meio de máquinas indefinidamente quando ela já não tem condições de sobreviver sozinha seriam igualmente maneiras de não aceitar o “tempo de morrer”. Por que uma seria errado, e a outra não? A complexidade da questão nos ajuda a entender por que, conforme Setta e Shemie (2015), mesmo entre os judeus mais ortodoxos não há um consenso sobre esse assunto.
Um modelo para decidir quando é certo lutar contra a morte ou não é o da Lei Natural de Tomás de Aquino. Quatro critérios devem ser atendidos para que uma ação seja considerada moralmente boa. Primeiro, a ação deve surgir de uma boa vontade; segundo, deve haver uma proporção do bem sobre o mal decorrente da ação; terceiro, o mal não pode ser intencionado diretamente; e, finalmente, o mal não deve ser o meio de produzir o bem. Por exemplo, a administração de um medicamento que alivia a dor de um paciente terminal, mas também deprime o sistema respiratório, só pode ser considerada correta se a ação for destinada a beneficiar o paciente, a diminuição do sofrimento for suficiente para compensar a redução da vida, a morte não for diretamente intencionada e o sujeito não for morto para acabar com o sofrimento (SETTA e SHEMIE, 2015).
É claro que é muito difícil aplicar essas diretrizes, ou outras, em casos específicos do mundo real. É muito fácil para nós, que não estamos vivendo uma situação dessas, seja como paciente, seja como familiar de um paciente, ou como um profissional de saúde, discutirmos a questão da eutanásia. Mas, nas palavras do padre ortodoxo Dimitri Cozby (1997), muitas questões neste mundo decaído não se resolvem prontamente em termos de certo e errado, mas nos envolvem em uma luta para discernir o menos prejudicial entre vários males; por isso, decisões corretas relacionadas a como lidar com o tempo de morrer, muitas vezes, não surgem de algo como uma filosofia moral tomista, mas do “conhecimento nascido da oração e da iluminação pelo Deus pessoal” (ENGELHARDT JR, 2011) permeado pelas Escrituras.
A resolução de 1992 sobre a eutanásia da Convenção Batista do Sul dos EUA, a partir de sua compreensão das Escrituras mais do que de qualquer princípio, como a tradição ou a razão humana, também proíbe a eutanásia e o suicídio assistido, mas inclui como atitude reprovável a retirada do fornecimento mecânico de nutrição e hidratação para um paciente terminal, e apela por punição legal a quem pratica essas coisas.
Outro pensamento interessante foi trazido por um documento da Associação Nacional de Evangélicos dos EUA sobre a eutanásia (1994). Segundo ele, a dignidade humana decorre da imagem de Deus, e essa dignidade torna a eutanásia imoral, pois ela é efetivamente tirar a vida de alguém. Mas isso não significa aceitar como correto “prolongar o processo de morrer além de seu curso normal”, no sentido de manter viva uma pessoa que já não tem chances de retomar a consciência.
A Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos (PCA), por sua vez, em sua 16ª Assembleia Geral (1988), definiu que, em última análise, nenhum médico prolonga a vida de uma pessoa ou determina seu tempo de morrer, somente Deus. Além disso, é preciso fazer uma distinção entre o tratamento que cura ou restaura um paciente, os meios necessários para preservação da vida (comida, água e ar), e o mero prolongamento do processo de morte. Os dois primeiros itens não podem jamais ser negados a um paciente, mas o terceiro deve ser evitado.
O relatório da Assembleia chega a dizer que fazer "todo o possível" para manter uma vida geralmente é inadequado. Medidas específicas e eficazes devem ser escolhidas com objetivos bem definidos a partir da condição do paciente. O documento dá um exemplo específico de medida inadequada: continuar usando respiradores em alguém com insuficiência respiratória devido a uma doença cardíaca avançada e incurável.
Um princípio útil trazido por esse relatório é de que o objetivo máximo da medicina não é adiar a morte, mas curar e aliviar o sofrimento. Assim, quando não for possível curar, aliviar o sofrimento permanece mais importante do que não deixar morrer. Isso não significa, por sua vez, que se deve pretender a morte de um paciente para aliviar seu sofrimento – na linguagem de Eclesiastes, isso seria tentar apressar o tempo de morrer daquela pessoa. Em outras palavras, seria moralmente correto permitir que uma pessoa cuja morte é iminente morra, mas não encurtar sua vida.
Alguns cristãos, entretanto, são contra até mesmo a interrupção do tratamento de um doente terminal. Dois argumentos razoáveis são a esperança de um milagre e a recusa em desistir do Deus da fé. Outros dois mais fracos são a convicção de que cada momento da vida é um dom do Senhor e vale a pena ser preservado a qualquer custo, e a crença de que o sofrimento tem valor redentivo (BRETT e JERSILD, 2003).
Um dos fatores que tornam essa discussão mais difícil é a alienação da morte. Muitas pessoas não pensam adequadamente sobre o assunto porque não querem nem lidar com a finitude da vida e, quando lidam, não estão preparadas para enfrentar esse momento com sabedoria. Entender que há um tempo de morrer significa lidar com a morte em geral como um processo natural da vida.
Conforme Gonzalo (2020), na tradição judaica ortodoxa, é um privilégio sagrado estar presente quando alguém passa da vida à morte. Provavelmente Eclesiastes 7 influencia esse pensamento: “Melhor é a boa fama do que o melhor unguento, e o dia da morte do que o dia do nascimento de alguém. Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração. Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração. O coração dos sábios está na casa do luto, mas o coração dos tolos na casa da alegria.” (vs. 1-4)
Essa dificuldade com a morte pode atrapalhar as pessoas a lidarem bem com outra questão polêmica, a doação de órgãos. Parece que elas sentem que não falar sobre a morte vai adiá-la. Mas não há nenhum motivo bíblico razoável para não ser um doador; podemos ir além, doar órgãos é uma obrigação baseada no mandamento de amar ao próximo. Eu diria que poderíamos, inclusive, doar os órgãos de uma pessoa morta contra a vontade dela em vida, já que seria uma maldade não fazê-lo.
Uma dificuldade na tradição judaica ortodoxa para a doação de órgãos seria a crença de que o corpo deve ser queimado com todas as suas partes. Entretanto, alguns mestres ortodoxos entendem que o enterro sem todos os órgãos transplantados vale à pena se for para salvar uma vida por meio da doação.
O problema com a morte é também um problema com os momentos “escuros” da vida. As pessoas frequentemente lêem Eclesiastes 3 como falando da alternância de experiências boas e ruins, mas esse não é necessariamente o caso. Nem sempre matar, derrubar, chorar, afastar-se de abraçar, perder, rasgar, odiar, fazer guerra e morrer é ruim, e nem sempre plantar, curar, edificar, rir, dançar, abraçar, guardar, coser e fazer paz é bom. A morte em si é uma coisa ruim, e Eclesiastes fala muito mal dela, mas ainda assim ela pode ser experimentada como um processo normal da vida.
A consciência dos momentos negativos também deve nos fazer viver os momentos positivos com mais intensidade. Em Eclesiastes 9.7-10, o pregador diz para comermos com alegria o nosso pão, e beber com coração contente o vinho, ter roupas alvas, óleo sobre a cabeça, gozar a vida com a pessoa amada e fazer tudo conforme as nossas forças, “porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma”. Nas palavras de Eunny Lee (2005), é como se a terrível contemplação da morte o incitasse a abraçar a vida ainda mais e a incitar seu público a fazer o mesmo.
BAEKE, Goedele; WILS, Jean-Pierre; BROECKAERT, Bert. ‘There is a time to be born and a time to die’(Ecclesiastes 3: 2a): Jewish perspectives on euthanasia. Journal of religion and health, v. 50, n. 4, p. 778-795, 2011.
BRETT, Allan S.; JERSILD, Paul. Inappropriate treatment near the end of life: Conflict between religious convictions and clinical judgment. Archives of internal medicine, v. 163, n. 14, p. 1645-1649, 2003.
DIMITRI, Cozby. Prolonging life: an Orthodox Christian perspective. Christian bioethics, v. 3, n. 3, p. 204-221, 1997.
ENGELHARDT JR, H. Orthodox Christian bioethics: some foundational differences from Western Christian Bioethics. Studies in Christian Ethics, v. 24, n. 4, p. 487-499, 2011.
GONZALO, Paula. Cristianismo, islam y judaísmo en la donación de órganos y tejidos. Universitat Internacional de Catalunya , 2020. Disponível em: <http://repositori.uic.es/bitstream/handle/20.500.12328/1680/TFG%20MARIN%20GONZALO,%20PAULA.pdf?sequence=1>.
LEE, Eunny P. The vitality of enjoyment in Qohelet's theological rhetoric. Walter de Gruyter, 2005.
NATIONAL ASSOCIATION OF EVANGELICALS. Termination of Medical Treatment. 1994 Annual Conference. Disponível em: <http://www.euthanasia.com/evangel.html>.
REPORT OF THE HEROIC MEASURES COMMITTEE. 16th General Assembly (1988). PCA Historical Center. Disponível em: <https://pcahistory.org/pca/digest/studies/2-378.html>.
RESOLUTION ON EUTHANASIA AND ASSISTED SUICIDE. Southern Baptist Convention. 1992. Disponível em: <https://www.sbc.net/resource-library/resolutions/resolution-on-euthanasia-and-assisted-suicide/>.
PÉREZ, Monica Marie. A Time for Joy: a Study of the Themes of Time and Joy in the Book of Qoheleth. 2020. Disponível em: <https://repositorio.comillas.edu/xmlui/bitstream/handle/11531/48915/TD00397.pdf?sequence=1>.
SETTA, Susan M.; SHEMIE, Sam D. An explanation and analysis of how world religions formulate their ethical decisions on withdrawing treatment and determining death. Philosophy, Ethics, and Humanities in Medicine, v. 10, n. 1, p. 1-22, 2015.