O Antigo Testamento e a Vontade de Deus

“Louvar-te-ei com retidão de coração quando tiver aprendido os teus justos juízos” – Salmos 119.7

Algumas pessoas, no espírito de Marcião, usam passagens do Novo Testamento fora do contexto para negar a utilidade do Antigo para os cristãos. Ou ainda, de modo mais sutil, a Igreja frequentemente, se não nega o uso do Antigo Testamento, diminui sua importância; por exemplo, a Declaração Doutrinária da CBB diz que "para os Batistas, as Escrituras Sagradas, EM PARTICULAR O NOVO TESTAMENTO, constituem a única regra de fé e conduta" (destaque meu). Até entendo o que se quer dizer com essa ênfase no Novo Testamento, mas nunca me soou de bom tom, e nem é uma maneira bíblica de se falar do assunto, sendo muito melhor afirmar simplesmente que "toda a Escritura" (2Tm 3.16) é nossa única regra de fé e prática.

Parte da dificuldade das pessoas em entender a utilidade do Antigo Testamento para os cristãos hoje é a confusão entre Antigo Testamento no sentido da aliança de Deus com Israel que Cristo aboliu (2Co 3.14) e as "escrituras hebraicas", os trinta e nove primeiros livros da Bíblia, que também são corretamente chamadas de Antigo Testamento. Embora Cristo tenha inaugurado uma nova aliança, uma nova forma de se relacionar com Deus, a Bíblia Hebraica é a regra de fé e prática da Igreja tanto quanto as escrituras gregas.

Ainda que não houvesse no Novo Testamento orientações sobre o uso do Antigo pelos cristãos, o simples fato desses trinta e nove livros conterem os justos juízos de Deus já é mais do que suficiente para nos indicar a importância absoluta deles. “A lei é boa, se alguém dela usa legitimamente” (I Timóteo 1.8), pelo que Jesus disse que aquele que praticar a lei e os profetas será considerado grande no Reino dos Céus (Mt 5.17-20).

Também podemos rejeitar, baseado nesse princípio, a noção de que determinado grupo humano tem autoridade interpretativa tal sobre as Escrituras que a sua doutrina seja regra infalível. Note que o salmista diz que ele pessoalmente aprenderia os “justos juízos” de Deus, o que é diferente de confiar cegamente na compreensão de certos homens autorizados a interpretarem os juízos divinos.

O Antigo Testamento possui uma série de diretrizes de sabedoria que não se encontram no Novo, de modo que ignorá-lo é uma perda em instrução incomparável. Muitas decisões que os crentes podem considerar difíceis e pedem uma direção espiritual específica de Deus possuem respostas claras que poderiam ser encontradas se eles dessem o devido valor a toda a Escritura. Um relacionamento profundo e maduro com Cristo passa por um relacionamento profundo e maduro com toda a Bíblia, que dão testemunho Dele. Isso é infinitamente superior à prática de muitos cristãos de procurar a vontade de Deus à maneira dos pagãos, fazendo coisas como procurar sinais e lançar sortes (WALTKE, 2016), que, embora sejam práticas permitidas pela Bíblia, não são recomendadas.

Note que o louvor em Sl 119.7 tem um forte aspecto kerigmático, no sentido de que está ligado a transmitir a outros a mensagem divina. Louvar inclui ensinar os juízos divinos, o que demanda que os aprendamos primeiro. Um missionário, nesse sentido, seria simplesmente alguém que louva ao Senhor em lugares onde Ele ainda não é louvado. Para fazer isso ninguém precisa de um “chamado missionário” – que é uma invenção moderna e não existe nas Escrituras (HOF, 2016) – ou tentar discernir uma vontade secreta do Senhor, mas aprender a Palavra de Deus, sair e louvar ao Senhor contando aos outros as sobre as Suas leis.

A CONFISSÃO DE FÉ BATISTA DE LONDRES DE 1689. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/credos/1689.htm>.

BOTKIN, Daniel. The Ghost of Marcion: What Paul’s Letters Really Say. Disponível em: <http://www.protorah.com/wp-content/uploads/2015/01/The_Ghost_of_Marcion_What_Pauls_Letters_Really_Say.pdf>.

DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA DA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. Disponível em: <http://www.convencaobatista.com.br/siteNovo/pagina.php?MEN_ID=22>.

HOF, Eleonora Dorothea. Reimagining mission in the postcolonial condition: a theology of vulnerability and vocation at the margins. 2016. Tese de Doutorado. Disponível em: <http://theoluniv.ub.rug.nl/70/1/Hof_ED_Reimagining%20mission%20postcolonial%20condition_2016.pdf>.

WALTKE, Bruce K. Finding the will of god: A pagan notion?. Wm. B. Eerdmans Publishing, 2016.