A questão do inferno
A QUESTÃO DO INFERNO
Miguel Carqueija
Recentemente uma notícia falsa — uma das famosas “fake news” — impressionou bastante gente, pois se pretendeu que o Papa Francisco tenha declarado que o inferno não existe. A superficialidade de raciocínio que hoje contamina grande parte da sociedade, com o abandono da hermenêutica, produziu este surpreendente resultado, de muita gente acreditar de mão beijada numa notícia divulgada sem nenhum embasamento, sem prova documental de qualquer espécie. Tudo se baseia na declaração de um jornalista ateu de 93 anos, que esteve com o papa numa audiência reservada, ao que foi noticiado sem tomar notas, sem gravar, sem dizer que era entrevista, e que depois disse que o papa havia dito (sic) que o inferno não existe. Estamos portanto nos domínios do “disse-que-disse”, ou “disse-me-disse”. O Vaticano desmentiu o jornalista — e isso deveria bastar.
Salta aos olhos que aqueles que defendem a “fake new” ou são inimigos da Igreja Católica, ou católicos sem formação (o grande Papa Bento XVI alertou contra a “ignorância religiosa”) ou católicos liberais-esquerdistas, que gostam de professar um catolicismo de sua própria invenção.
Vamos supor — só para fins de argumentação — que o Papa Francisco tenha falado uma coisa assim: “O inferno não é um lugar físico provido de portas, janelas, escadas e paredes. É um estado em que permanece a alma que, por sua livre escolha, recusa Deus, chegando a adquirir ódio a Deus.” Imagino que muita gente, se ouvisse uma explanação assim, iria depois afirmar: “O papa disse que o inferno não existe”.
É preciso entender que o papa não tem autoridade para alterar a doutrina da Fé, e tampouco a Igreja. A rigor a Igreja não é dona da doutrina, mas depositária e intérprete. O papa é o guardião-mor da doutrina.
A maioria das pessoas que vêm opinando, emprestando crédito apressado à notícia falsa, sequer costuma assistir Francisco, ou ler os seus textos. As emissoras de tv profana, onde se odeia o Cristianismo, raramente mostram o papa ou o noticiam. Bem, eu assisto mais as emissoras católicas, como a Canção Nova (canal 20) e toda a semana posso assistir várias vezes o Papa Francisco, escutar os seus sábios ensinamentos, profundos, doutrinais, ortodoxos. Ele é tão conservador quanto qualquer outro pontífice; o resto é a campanha da mídia contra a Igreja, chegando até o pérfido recurso de falsos elogios ao papa.
Posso inclusive garantir que Francisco refere-se com frequência ao demônio. E isso ninguém me contou, eu sou testemunha pois constatei várias vezes na televisão. Não me baseio em “disse-que-disse”. Seria realmente estranho que o Papa Francisco acreditasse no demônio mas não no inferno.
Mas agora falemos no inferno. O que leva muita gente a descrer de sua existência, é óbvio, é o aspecto desagradável do conceito. Com certeza é um conceito difícil de entender. Como conciliar o inferno com a misericórdia divina?
Primeiramente devemos discernir entre arte e iconografia de um lado e teologia do outro. O próprio Céu, a Visão Beatífica, não é algo que possamos de fato imaginar, está acima da nossa capacidade, embora saibamos que existe. Da mesma maneira o inferno tem sido visto de maneira folclórica.Os diabos são representados como sujeitos escuros ou avermelhados, com chifres, rabos e asas de morcego, armados com tridentes para atormentar os condenados, que são supliciados em caldeirões de matéria fervente e assim por diante.
Ora, os demônios são anjos caídos, anjos que se rebelaram contra Deus. Anjo não possui sexo, nem corpo, nem aparência; são puros espíritos. Podem, sim, adquirir formas visíveis. As iconografias mais assustadoras já caíram em desuso. Em criança eu ainda conheci um “Catecismo Ilustrado” em forma de álbum gigante. Algumas de suas páginas mostram cenas horripilantes supostas no inferno. Muito tempo depois o saudoso monge beneditino Dom Marcos Barbosa (que traduziu “O Pequeno Príncipe”), numa de suas crônicas pela Rádio Jornal do Brasil, referiu-se com desagrado àquele catecismo, que provavelmente não foi mais reeditado.
Todavia o abandono de iconografias exageradas (curiosamente a imagem do demônio pode ser encontrada em casas de umbanda, embora lhe dêem outro nome) não significa que o dogma tenha mudado ou sido abolido.
Assim podemos resumir que seres racionais (anjos ou humanos) que recusam a lei universal do amor, o que equivale a recusa ao próprio Deus, e se perdem no ódio, não podem ficar no Céu até porque, como também observou Dom Marcos Barbosa, para esses o inferno deve até parecer mais doce. E o grande sofrimento nessa condição, que é uma condição espiritual, é a perda eterna de Deus, pois fomos criados para Ele e sua ausência causa uma indescritível frustração. Na eternidade já não se muda, pois houve uma escolha definitiva.
É melhor optar definitivamente pela bondade, o que equivale a optar pela eterna fruição de Deus que é a Bondade suprema.
Rio de Janeiro, 4 de abril de 2018, os dois parágrafos finais inseridos em 17 de setembro de 2020.
imagem pinterest (São Miguel Arcanjo derrotando o demônio, clássica iconografia católica)
Comentários: Luzineti Espinha, Ieda Chaves Freitas, Dartagnan Ferraz, Argonio de Alexandria