O que define uma relação de amizade? O que identifica amigos? No mundo em que vivemos percebe-se que esta palavra é gasta demais, ao ponto de ser vazia de sentido. Temos ‘amigos’ no Facebook, ou em qualquer rede social, sem, no entanto, qualquer tipo de proximidade, sem qualquer identificação de caráter mais interno. Para haver amizade é preciso conhecer – não apenas o nome, a face do outro, mas o seu ser – é preciso uma comunicação de interioridades, que de certa forma se sentem atraídas – e não, nesse caso (e creio que em nenhum), os opostos não se atraem. Para o filósofo grego Aristóteles, o tema da amizade é bastante caro: a amizade só pode acontecer entre seres ontologicamente iguais, isto é, seres como o mesmo nível de ser. O ser humano só pode ser amigo de seres humanos, seres que lhe são iguais. Por mais que seja ‘fofinho’ ter um cachorro, você nunca será amigo (a) dele – ele não pode ser recíproco, responder ao seu sentimento com a mesma consciência, se relacionar de forma racional. Se pensarmos dessa forma, o ser de Deus também é muito distinto do nosso, nesse caso, muito superior – logo, também não poderíamos ser amigos dEle. Por natureza não podemos ser amigos de Deus, o ‘desnível’ de ser, pelo qual Ele é infinitamente maior do que nós, nos impede de tal amizade. No entanto, de alguma forma, o fato de nossa amizade com Deus não poder existir, prejudicou também toda a possibilidade de amizade humana – em suma, sem a amizade de Deus, todas as relações humanas não se sustentam.
Como a humanidade pode ser amiga de um ser tão infinitamente superior? Não precisamos de grandes tratados para responder, mas apenas de uma prova do amor de Deus, ei-la: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Como não podemos alcança-lo, Ele se esvazia, vem até nós. Em Jesus, que assume a humanidade, se faz pequeno para resgatar a nós que estamos perdidos, podemos enfim experimentar a verdadeira amizade. Dessa forma, compreendemos que toda amizade verdadeira, de alguma forma tem a marca, o signo do amor de Deus, nunca é uma relação a dois – a verdadeira amizade só existe se Deus é quem sustenta o amor.
A encarnação do Verbo, o fato de Deus se fazer homem produz um novo modo de compreender e viver as nossas próprias relações. Toda a vida do Cristo é como que uma escola, e a matéria principal que Ele ensina é o amor – mas Jesus não é um professor de teorias, Ele só dá aulas práticas. E, antes de voltar para o Pai, tornando-se ‘ponte’ para o amor absoluto deixa-nos a lição final: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros.” (Jo 13 34-35). É preciso compreender bem este mandamento – o amor ao próximo é fruto de uma experiência com o amor de Deus.
A maneira como Deus se revela plenamente em Jesus desencadeia um processo que redime a forma humana de amar sem Deus, marca infeliz do pecado. A humanidade, sem a presença de Cristo estaria impossibilitada não apenas da amizade com Deus, mas também das amizades entre os homens. A iniciativa da amizade parte do próprio Cristo que radicaliza o amor-doação, ensina à humanidade o que é ser amigo: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Vós sois meus amigos se praticais o que vos mando. Já não vos chamo servo, porque o servo não sabe o que seu senhor faz; mas vos chamo amigos, porque tudo que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer.” (Jo 15, 13-15). A amizade é fundamental no processo de salvação, de reconhecimento e de resposta ao amor de Deus por cada um de nós – tanto a amizade com Deus, que a partir de então é possível em Jesus, quanto as amizades humanas, que se tornam sinal também do amor de Deus. O caminho apontado por Jesus nos convida a experimentar o amor de Deus – e só dessa forma seremos capazes de amar a nós mesmos – só pelo encontro com Deus a humanidade se redime e é capaz do amor próprio. Só quando amamos a nós mesmos podemos então transbordar, sair de nós mesmos e amar o próximo – ser amigos.
A amizade humana depende, portanto, de um ‘amigo antigo’ – aquele que não apenas nos amou primeiro, mas também concedeu a nós a capacidade de amar. Toda amizade verdadeira é fundamentada e sustentada por Deus. As relações de amizade, por isso, expressam entre os amigos a realidade do amor de Deus: “Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é em nós realizado.” (1Jo 4, 12). Como, no entanto, é possível viver esse amor? Como em nossa fraqueza humana podemos expressar algo tão divino? “Amar a um ser é esperar dele algo inefável, imprevisível; é ao mesmo tempo, dar a ele, de alguma maneira, meios para responder a esta espera. [...] Tudo permite pensar que só se pode falar de esperança ali onde existe interação entre o que dá e o que recebe, esta troca que é a marca de toda vida espiritual.” (MARCEL, 2005, p. 61, tradução nossa). O amor, o próprio Deus nos ensina, é uma relação de espera, banhado de esperança, um dom gratuito, cuja fonte inesgotável é o próprio Deus.
Não é possível amar a Deus sem amar o próximo, bem como não é possível amar ao próximo sem amar a Deus. Amar a Deus é reconhecer, ser contagiado por um tal amor, que nos impele, nos chama, arde em nós para que façamos o mesmo movimento de amar. Amar ao próximo é a resposta mais agradável ao coração de Deus. Por isso, o ‘amigo antigo’ é sempre o sustentáculo de nossas relações, é Ele quem permite que haja o ‘amigo novo’. “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’ mas odeia seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar. E este é o mandamento que recebemos: aquele que ama a Deus, ame também seu irmão.” (1Jo 4, 20-21). A amizade é a forma palpável pela qual o amor de Deus nos toca, o amigo é o abraço de Deus.
Deus se revela na amizade – faz transbordar seu amor, mesmo em nossa fraqueza, para que nunca nos sintamos sós; faz transbordar em nós a esperança de ter alguém que caminha ao nosso lado, que vê o mesmo objetivo, que experimenta o mesmo amor. Por isso, “Amigo fiel é poderoso refúgio, quem o descobriu, descobriu um tesouro. Amigo fiel não tem preço, é imponderável seu valor. Amigo fiel é bálsamo vital e os que temem o Senhor o encontrarão. Aquele que teme o Senhor regra bem suas amizades, pois tal como ele é, assim é seu amigo.” (Eclo 6, 14-17). Valorize suas amizades, elas são dom e presença de Deus em sua vida, e você é também uma ‘ponte’ desse amor.
REFERÊNCIA
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1ª Ed. 9ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2002.
MARCEL, Gabriel. Homo Viator. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005.
Como a humanidade pode ser amiga de um ser tão infinitamente superior? Não precisamos de grandes tratados para responder, mas apenas de uma prova do amor de Deus, ei-la: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Como não podemos alcança-lo, Ele se esvazia, vem até nós. Em Jesus, que assume a humanidade, se faz pequeno para resgatar a nós que estamos perdidos, podemos enfim experimentar a verdadeira amizade. Dessa forma, compreendemos que toda amizade verdadeira, de alguma forma tem a marca, o signo do amor de Deus, nunca é uma relação a dois – a verdadeira amizade só existe se Deus é quem sustenta o amor.
A encarnação do Verbo, o fato de Deus se fazer homem produz um novo modo de compreender e viver as nossas próprias relações. Toda a vida do Cristo é como que uma escola, e a matéria principal que Ele ensina é o amor – mas Jesus não é um professor de teorias, Ele só dá aulas práticas. E, antes de voltar para o Pai, tornando-se ‘ponte’ para o amor absoluto deixa-nos a lição final: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros.” (Jo 13 34-35). É preciso compreender bem este mandamento – o amor ao próximo é fruto de uma experiência com o amor de Deus.
A maneira como Deus se revela plenamente em Jesus desencadeia um processo que redime a forma humana de amar sem Deus, marca infeliz do pecado. A humanidade, sem a presença de Cristo estaria impossibilitada não apenas da amizade com Deus, mas também das amizades entre os homens. A iniciativa da amizade parte do próprio Cristo que radicaliza o amor-doação, ensina à humanidade o que é ser amigo: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Vós sois meus amigos se praticais o que vos mando. Já não vos chamo servo, porque o servo não sabe o que seu senhor faz; mas vos chamo amigos, porque tudo que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer.” (Jo 15, 13-15). A amizade é fundamental no processo de salvação, de reconhecimento e de resposta ao amor de Deus por cada um de nós – tanto a amizade com Deus, que a partir de então é possível em Jesus, quanto as amizades humanas, que se tornam sinal também do amor de Deus. O caminho apontado por Jesus nos convida a experimentar o amor de Deus – e só dessa forma seremos capazes de amar a nós mesmos – só pelo encontro com Deus a humanidade se redime e é capaz do amor próprio. Só quando amamos a nós mesmos podemos então transbordar, sair de nós mesmos e amar o próximo – ser amigos.
A amizade humana depende, portanto, de um ‘amigo antigo’ – aquele que não apenas nos amou primeiro, mas também concedeu a nós a capacidade de amar. Toda amizade verdadeira é fundamentada e sustentada por Deus. As relações de amizade, por isso, expressam entre os amigos a realidade do amor de Deus: “Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é em nós realizado.” (1Jo 4, 12). Como, no entanto, é possível viver esse amor? Como em nossa fraqueza humana podemos expressar algo tão divino? “Amar a um ser é esperar dele algo inefável, imprevisível; é ao mesmo tempo, dar a ele, de alguma maneira, meios para responder a esta espera. [...] Tudo permite pensar que só se pode falar de esperança ali onde existe interação entre o que dá e o que recebe, esta troca que é a marca de toda vida espiritual.” (MARCEL, 2005, p. 61, tradução nossa). O amor, o próprio Deus nos ensina, é uma relação de espera, banhado de esperança, um dom gratuito, cuja fonte inesgotável é o próprio Deus.
Não é possível amar a Deus sem amar o próximo, bem como não é possível amar ao próximo sem amar a Deus. Amar a Deus é reconhecer, ser contagiado por um tal amor, que nos impele, nos chama, arde em nós para que façamos o mesmo movimento de amar. Amar ao próximo é a resposta mais agradável ao coração de Deus. Por isso, o ‘amigo antigo’ é sempre o sustentáculo de nossas relações, é Ele quem permite que haja o ‘amigo novo’. “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’ mas odeia seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar. E este é o mandamento que recebemos: aquele que ama a Deus, ame também seu irmão.” (1Jo 4, 20-21). A amizade é a forma palpável pela qual o amor de Deus nos toca, o amigo é o abraço de Deus.
Deus se revela na amizade – faz transbordar seu amor, mesmo em nossa fraqueza, para que nunca nos sintamos sós; faz transbordar em nós a esperança de ter alguém que caminha ao nosso lado, que vê o mesmo objetivo, que experimenta o mesmo amor. Por isso, “Amigo fiel é poderoso refúgio, quem o descobriu, descobriu um tesouro. Amigo fiel não tem preço, é imponderável seu valor. Amigo fiel é bálsamo vital e os que temem o Senhor o encontrarão. Aquele que teme o Senhor regra bem suas amizades, pois tal como ele é, assim é seu amigo.” (Eclo 6, 14-17). Valorize suas amizades, elas são dom e presença de Deus em sua vida, e você é também uma ‘ponte’ desse amor.
REFERÊNCIA
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1ª Ed. 9ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2002.
MARCEL, Gabriel. Homo Viator. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005.