Tempo, Calvinismo e Interpretação Bíblica
Em sua dissertação, Tiago Arrais (2015) aborda um dos elementos da noção macro-hermenêutica de como Deus se relaciona com a humanidade: o princípio da natureza da história. Esse princípio, presente nas estruturas pressuposicionais dos intérpretes bíblicos, refere-se exatamente ao contexto em que Deus se relaciona com a humanidade, de acordo com o texto bíblico. Isso significa que o modo como você compreende a história – ou seja, como você entende as relações do homem com o homem e com o tempo – altera a sua interpretação da Bíblia. Se a nossa compreensão da história não for pensada a partir dos princípios bíblicos, naturalmente cairemos na necessidade de interpretar a Bíblia à luz de pressupostos extra ou até mesmo anti-bíblicos. A dissertação dele é justamente sobre a influência de pressupostos filosóficos extra-bíblicos na interpretação do Êxodo.
O problema que se levanta é: é possível conceber um método historiográfico baseado, ou pelo menos que coadune, com os princípios bíblicos? Os calvinistas defendem que sim. Ironicamente, entretanto, calvinistas frequentemente são acusados de ter uma teologia baseada em uma visão do tempo e da história anti-bíblica. Por exemplo, segundo Younker (2019), alguns calvinistas contemporâneos se aproveitaram das teorias de Einstein para negar a realidade de qualquer tipo de tempo subjetivo em sua teologia. Em comparação, a visão de tempo da teologia arminiana seria mais newtoriana, de modo que, para professar o livre-arbítrio libertário, um arminiano teria que professar que a alma humana é não somente imaterial, mas também atemporal em algum sentido.
Para Younker (2019), uma vez que os calvinistas entendem que a história se desenrola exatamente da maneira como preveem os decretos atemporais de Deus, a história em si mesma é, de certa forma, atemporal. Essa estrutura da realidade torna o livre-arbítrio – pelo menos as concepções tradicionais de livre-arbítrio – impossível. Calvinistas reformados, entretanto, professam que de alguma maneira a vontade livre da criatura não é violada, e esse é um paradoxo difícil de solucionar.
Não que seja a própria intenção de Calvino ou da maioria dos calvinistas ler a Bíblia à luz de pressupostos filosóficos. De fato, eles professam que as Escrituras interpretam as Escrituras. Entretanto, no processo hermeneutico – ou seja, enquanto interpretamos a Bíblia –, qualquer grupo, por mais fiel às Escrituras que se proclame, está sujeito ao perigo de colocar seus próprios pressupostos na leitura do texto, inclusive dos críticos do calvinismo. Por exemplo, a maioria dos leitores contemporâneos de Êxodo interpreta a atribuição de temporalidade a Deus como antropomorfismo. Entretanto, Arrais (2015) chama a noção de que Deus é atemporal de uma “concepção extrabíblica”. Se Tiago estiver mesmo correto, se de fato a Bíblia não ensina a atemporalidade de Deus – que é diferente de eternidade de Deus – isso significa que a maioria dos leitores contemporâneos estão sujeitos a uma série de interpretações antibíblicas.
A lição que fica: da próxima vez que você ler a Bíblia, deixe o texto te dizer exatamente o que ele está dizendo. Isso é humanamente impossível, mas faça um esforço nesse sentido. Você pode se surpreender.
ARRAIS, Tiago. A Study on the Influence of Philosophical Presuppositions Relating to the Notion of the God-human Relation Upon the Interpretation of Exodus. 2015. Disponível em: <https://digitalcommons.andrews.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2876&context=dissertations>.
YOUNKER, Michael F. The Theological Significance of the Relations of Freedom and Time in the Sciences and Humanities: An Evaluation of the Contributions of David Bohm and Pauli Pylkkö. 2019. Tese de Doutorado. Andrews University. Disponível em: <https://search.proquest.com/openview/03d88f4315f6554853c242cb195c178e/1?pq-origsite=gscholar&cbl=18750&diss=y>