Deuses no Coração
Muitos teólogos clássicos, como Agostinho, Lutero, Calvino e Jonathan Edwards apontaram que a idolatria está por trás de todo o pecado. É famosa aquela frase de Calvino nas Institutas de que o coração humano é uma fábrica de ídolos. Uma das formas do livro de Juízes expor isso é ligar a idolatria em Israel à ausência de uma liderança forte. Isso é visto tanto nas referências que o livro faz algumas vezes de que não havia rei em Israel, e portanto cada um fazia o que parecia bom aos seus próprios olhos, como também as menções ao fato de que quando um juiz morria, o povo caia em idolatria. Isso porque uma liderança forte cria um parâmetro para toda uma comunidade se orientar a respeito de como ver a realidade. Se essa liderança, seja uma família, uma igreja ou até uma nação, segue ao Senhor, a tendência será que as pessoas sigam ao Senhor; se a liderança é idólatra, a tendência é que os liderados sejam idólatras também.
Isso demonstra que a essência da idolatria está no coração. Muitas pessoas obedecem à Palavra de Deus somente porque o contexto delas favorece que elas exteriormente obedeçam, mas se o contexto muda, ela muda também, o que mostra que a idolatria sempre esteve no coração dela. Uma pessoa que está firme na fé não vai ser assim. Tudo pode estar contrário a ela, mas ela permanecerá de pé diante de Deus.
É importante notar que idolatria na Bíblia não é apenas adorar um deus que não o Senhor. Os israelitas adoravam o Senhor. Há uma ampla discussão entre os estudiosos a respeito de como classificar a religião dos hebreus no Antigo Testamento: monoteísmo, politeísmo, henoteísmo ou monolatria. Basicamente, monoteísmo é a crença em um único Deus, politeísmo é a crença em vários deuses, henoteísmo é o culto a um único Deus supremo que está acima de todos os outros e monolatria é o culto a um único Deus que leva em consideração a existência e influência de outros deuses sem que o seu deus seja necessariamente superior aos outros.
Então não é só o politeísta ou o monoteísta de outra religião que é idólatra. É possível adorar ao Senhor sendo um idólatra, que é o chamado henoteísmo ou monolatria. Muitas vezes o idólatra adora o Senhor e mais alguma outra coisa. Às vezes ele coloca o Senhor como supremo e os seus outros “deuses” como inferiores, mas eles estão lá, se assenhorando de parte do seu coração. Mas às vezes o idólatra ama mais os outros deuses do que o Senhor.
Também é importante notar que os “deuses” que nós servimos não se tratam apenas de divindades. Nós podemos tornar pessoas em deuses, ou coisas, ou nosso trabalho, ou algum hábito, tudo pode se tornar um deus para nós, quando nós não amamos ao Senhor mais do que todas as coisas. Em Mateus 6 há um exemplo clássico disso. Jesus diz a partir do versículo 24 que ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas – ou Mamom, literalmente. Nós podemos tornar o dinheiro um deus. Como? Nos versículos 25-26 Ele explica: “Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?”.
Nós tornamos o dinheiro um deus quando colocamos nele a garantia da nossa vida, da nossa felicidade, da nossa paz, do nosso bem-estar. Isso é idolatria, quando outra coisa que não o Senhor se torna a mais fundamental, mais importante, mais essencial da nossa vida. Nas palavras de Tim Keller (2011), um ídolo é algo que não podemos viver sem. Se tem uma coisa na sua vida que você sente que se aquilo for tirado de você, você não vai conseguir viver, você não vai conseguir ter paz em Deus, você não vai conseguir se alegrar no Senhor, pode ser que isso seja um ídolo.
A tolice da idolatria é que ela é completamente inútil. Nenhum “deus”, seja ele uma divindade no sentido clássico, seja uma coisa ou uma pessoa, pode nos dar aquilo que o Senhor pode dar. O Senhor é melhor do que qualquer coisa, e isso é uma questão óbvia, porque Ele criou tudo. Como pode a coisa criada ser melhor do que o Criador? Então, quando você ama alguma coisa mais do que Deus, além de idólatra, você está sendo tolo.
Alguns livros do Antigo Testamento, como juízes, colocam isso no sentido militar. Se Israel fosse fiel ao Senhor, todos os deuses de todas as nações poderiam se juntar contra o povo de Deus que ele prevaleceria contra elas. Agora, se Israel se colocasse contra o Senhor, eles poderiam clamar a qualquer deus, ele não conseguiria ajudá-los. Isso se aplica a qualquer área da nossa vida. Se você obedecer ao Senhor naquela área, se honrá-lo e amá-lo mais do que tudo naquele aspecto da sua vida, você vai ter vitória. Talvez não seja a vitória que você espera, talvez todas as suas expectativas sejam quebradas, mas se você tem o Senhor, então você tem tudo.
O ídolo, ao contrário, é sempre uma coisa perecível. Ele pode ser feito de madeira, de argila, de gesso, de ouro, de prata, de carne e osso, ou mesmo de ilusões; algumas pessoas solteiras idolatram o casamento, como se aquilo fosse o que elas precisam para serem felizes porque elas têm uma ideia de casamento que é um verdadeiro conto de fadas. Esse é um exemplo de um ídolo feito de uma ilusão. “O ídolo não é nada” (1Co 8.4).
Como podemos ser curados da idolatria? Juízes 10.15-16: “Mas os filhos de Israel disseram ao Senhor: Pecamos; faze-nos conforme a tudo quanto te parecer bem aos teus olhos; tão-somente te rogamos que nos livres nesta vez. E tiraram os deuses alheios do meio de si, e serviram ao Senhor; então se angustiou a sua alma por causa da desgraça de Israel.”.
O primeiro passo da cura da idolatria é reconhecer os seus ídolos. Você precisa saber onde tem errado, o que você tem valorizado na sua vida mais do que Deus. Eles disseram: “pecamos”. Depois você precisa reconhecer que é digno de castigo, que você merece ser punido por Deus: “faze-nos conforme a tudo quanto te parecer bem aos teus olhos”. Então elimina os ídolos da sua vida, buscando ao Senhor: “e tiraram os deuses alheios do meio de si, e serviram ao Senhor”.
Quanto mais o Senhor encher o nosso coração, menos espaço vai sobrar para os ídolos. É a presença transformadora do Espírito Santo na nossa vida que anula o nosso desejo pecaminoso por outras coisas, fazendo com que nós possamos usufruir de tudo o que Deus nos dá sem transformar as coisas em deuses. Você tem um ídolo quando você é dependente de alguma coisa, mas quando você se torna dependente do Espírito Santo, o poder atrativo do ídolo é destruído.
Lembre-se que a primeira coisa que Jesus fez no seu ministério foi ficar quarenta dias a sós com Deus. Se Jesus precisava dessa comunhão com o Pai para poder trabalhar, quanto mais nós? O problema (ou a solução) é que é impossível manter uma comunhão profunda com Deus e permanecer na idolatria. I João 1.6 diz que se dissermos que mantemos comunhão com Ele e andamos nas trevas, nós somos mentirosos. O pecado continuado gradualmente nos afastará de Deus e, consequentemente, nos impedirá de fazer qualquer coisa verdadeiramente útil. Por outro lado, a comunhão com Deus nos fará também vencer a idolatria.
Nesse sentido, ser idólatra não demanda esforço algum, basta seguir nossos próprios instintos. Para fazer a vontade do Espírito Santo, porém, é necessária sempre a decisão consciente de se submeter à nova natureza que recebemos em Cristo. Alguns calvinistas erram gravemente nesse sentido, achando que a santificação é uma coisa automática, que recebemos o caráter de Cristo por osmose, e não através do esforço diário de tomar posse do que Cristo conquistou para nós e ir quebrando os ídolos do nosso coração. O relacionamento diário com Jesus quebra gradualmente o encanto que os ídolos colocam sobre nós, nos dando uma alegria superior a qualquer coisa nesse mundo. Nesse relacionamento nós aprendemos a confiar, amar e depender de Deus da maneira que nós aprendemos a vida toda a confiar, amar e depender de ídolos.
Discutir a questão dos ídolos do coração é importante para deixar bem claro que a vida cristã não se resume a fazer coisas certas e evitar as erradas. Porter (2014) usa o casamento como analogia para explicar isso: para que um casamento se desenvolva de modo saudável, não basta apenas que o casal faça coisas boas, como ter momentos juntos, e evitem coisas más, como adultério ou explosões de raiva. É preciso também manter um relacionamento de confiança, amor e interdependência. Com Deus é a mesma coisa. Ele não quer apenas ser nosso Senhor, Ele também quer ser nosso Pai e amigo, e o poder para vencer a idolatria vem justamente dessa amizade.
Isso nos leva ao ponto de que as pessoas com quem nós nos relacionamos também podem nos aproximar da idolatria ou da devoção a Deus. Vemos isso em Juízes também, eles eram pessoas que em geral podiam levar o povo a, pelo menos, não abandonarem totalmente o Senhor. Outro relacionamento que afetou muito a idolatria do povo de Israel foram os casamentos mistos. Uma das razões dos judeus no Antigo Testamento caírem tanto em idolatria foram os casamentos deles com pessoas que adoravam outros deuses. A questão é tão grave que Neemias chega ao ponto de mandar o povo abandonar as mulheres estrangeiras com quem eles se casaram e até os filhos que tiveram com elas.
Então não apenas o relacionamento com Deus é muito importante quando se trata de idolatria, mas às vezes os relacionamentos com as pessoas pode nos aproximar Dele ou nos levar aos ídolos. É inevitável que a gente se relacione de uma forma ou de outra com pessoas que não servem a Deus, mas a gente deve sempre buscar construir relacionamentos com pessoas que nos aproximem do Senhor, para que possamos ajudar uns aos outros na luta pela santidade.
Santificação nesse sentido é justamente o processo de você tirar do seu coração os ídolos. Nós somos o templo do Senhor, mas nesse templo ainda permanecem coisas que não deveriam estar lá. “Que consenso tem o templo de Deus com os ídolos? (…) Por isso saí do meio deles, e apartai-vos, diz o Senhor; e não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para vós Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-Poderoso. Ora, amados, pois que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus.” (2Co 6.16-18, 7.1).
Uma das maneiras pelas quais nós cristãos ajudamos uns aos outros a vencer os seus próprios ídolos é pela repreensão mútua. São as críticas sadias que nós fazemos uns aos outros. E isso é muito difícil. Quem ama corrige, mas corrigir alguém é bem complicado, assim como aceitar correções também é difícil. Uma repreensão mal falada ou mal recebida pode causar mágoa, dor, brigas; mas uma repreensão correta pode salvar almas.
Perceba que quando você deixa de alertar alguém a respeito de um ídolo que ela está alimentando para preservar a sua amizade, ou não ofender ou chatear a pessoa, você está contribuindo para o mal dela. De certa forma você está idolatrando a amizade da pessoa, ou o seu próprio bem-estar, porque você não quer se comprometer. Então o próprio medo de falar a verdade para as pessoas que a gente ama pode ser um sinal de que você mesmo tem ídolos com os quais precisa lidar.
Foi o que Deus disse em Ezequiel 33 para o profeta. Se nós, sabendo que alguém está andando errado diante de Deus, o alertamos, se ele não se converter, ele será destruído e a culpa será dele; mas o que se der por avisado e se converter salvará a sua alma. Porém, quando nós sabemos que alguém próximo de nós está desviado em alguma área da vida dela, está adorando algum ídolo, e não procuramos ajudar essa pessoa, nós também temos uma parcela de culpa sobre o mal que vier sobre ela porque não a avisamos.
A forma mais evidente da idolatria na vida de um cristão é o que a gente chama de “pecado de estimação”. Aquela questão em que você peca, peca, peca, confessa, pede perdão, diz que se arrependeu, depois peca de novo. É o pecado costumeiro. Alguns convivem com ele, chamam de "defeito" ou "fraqueza" e não lutam mais. Outros tentam fingir que aquilo não é pecado e abafam sua própria consciência. Outros decidem lutar contra o pecado e fracassam, e de novo, e de novo, e de novo.
Você não conseguirá fazer nada de importante na sua vida para Deus se permanecer no pecado. No Antigo Testamento nós lemos frequentemente como o povo de Deus fracassa quando ele tolera em seu meio a idolatria. Um pecado que se torna um hábito nos escraviza. Como diz II Pedro, "aquele que é vencido fica escravo do vencedor". Quando nós permanecemos no pecado, ficamos presos a ele, e não conseguimos, assim, servir a Deus.
Além disso, em última instância, quando nós servimos a um ídolo nós estamos servindo ao diabo. Paulo fala em I Coríntios 10 que o culto aos deuses pagãos é um culto a demônios, mas, de certa forma, uma vez que a vontade de Satanás é que nós desobedeçamos a Deus, quando nós fazemos isso nós nos submetemos ao próprio diabo. Segundo Efésios 2, aquelas pessoas que seguem as vontades da sua própria carne se tornam escravas de Satanás. Logo, um satanista na Bíblia não é apenas aquele que sacrifica um animal para o capeta, faz pacto com o Coisa Ruim ou algo parecido, mas é aquele que continua obedecendo ao que o diabo quer, e não ao que Deus quer. Então, em certo sentido, toda tentação pelo qual nós passamos é como se Satanás dissesse: eu te darei isso (aquele descanso extra para o preguiçoso, a honra para o soberbo, a comida para o guloso ou o dinheiro para o avarento) se você me adorar.
Portanto, lembre-se que sem santificação ninguém verá a Deus, porque se não há santificação, se você não está progredindo na sua vitória contra os pecados, você não tem fé verdadeira, porque a fé verdadeira no conduz ao Senhor. Jesus é o nosso general, aquele que Juízes chama de o “príncipe dos exércitos do Senhor”. Se nós seguimos suas pisadas, nós marcharemos, não pelo caminho triste da escravidão ao pecado, mas pelo caminho de uma alegria cada vez maior na beleza de Deus. Sim, haverão quedas. Sim, haverão derrotas. Mas quando isso acontecer, como diz a epístola de Tiago, achegue-se a Deus, e Ele se achegará a você. Fique triste, aflija a sua alma com jejuns, chore por causa do seu pecado, humilhe-se diante do Senhor, então resista ao diabo, e Ele fugirá de você. Brevemente o Senhor Jesus esmagará a Satanás debaixo dos nossos pés. Que essa promessa renove as nossas forças para finalmente aniquilarmos o nosso pecado de estimação.
Se você ainda não tem certeza da sua salvação, ainda não se entregou totalmente a Cristo, ainda não se arrependeu de seus pecados para a vida eterna, eu te rogo, em nome de Jesus, que você se reconcilie com Deus, abraçando a fé na Sua Palavra e crendo que Jesus foi considerado pecador por nossos pecados para que você pudesse ser considerado justo diante de Deus. E que nós, que já fomos salvos, que já somos amigos de Deus pela fé, tendo tão maravilhosas promessas na Sua Palavra para nós, nos purifiquemos de todo ídolo, de toda impureza, de todo pecado, de toda imundície que ainda resta, e aperfeiçoemos a nossa santidade no temor de Deus, em nome de Jesus, amém.
BLUEDORN, Wolfgang (Ed.). Yahweh versus Baalism: a theological reading of the Gideon-Abimelech narrative. A&C Black, 2001.
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KELLER, Timothy. Counterfeit gods: The empty promises of money, sex, and power, and the only hope that matters. Penguin, 2011.
PORTER, Stephen L. Gradual Nature of Sanctification: Sarx as Habituated, Relational Resistance to the Spirit. Themelios, v. 39, n. 3, p. 470, 2014.