Como o coronavírus desafia as afirmações dos religiosos

Como o coronavírus desafia as afirmações dos religiosos

“O problema do mundo é que tolos e fanáticos sempre estiveram cheios de convicções, enquanto os sábios estão sempre cheios de dúvidas.”

Bertrand Russell

“Eu garanto a vocês: tudo vai acontecer antes que morra esta geração que agora vive.”

Mateus 24: 34

O que temos visto com o avanço do coronavírus pelo Brasil e pelo mundo? Temos visto que as desgraças são para todos, mostrando que somos todos iguais em questão de vulnerabilidade e não dá para ficarmos contando com a sorte nem negar que a nossa mortalidade pode nos visitar a todo instante. Quem teve a insensatez de minimizar o vírus e não levar a sério os perigos que qualquer tolo percebia serem evidentes está pagando o preço: o primeiro-ministro britânico está internado, Trump viu a COVID – 19 se alastrar pelos Estados Unidos, deixando um rastro de internações e mortes e Bolsonaro, que falou que o vírus não passava de uma gripezinha, tem visto o vírus se espalhar pelo Brasil. Mesmo assim, nosso sábio presidente ousa contestar o ministro da Saúde, acusando-o de arrogante, como se fosse ele, Bolsonaro, e não o ministro da Saúde quem detém a autoridade para se pronunciar nessa situação. Aliás, Bolsonaro, além dos seus muitos pronunciamentos que causam mal-estar, neste dia 5, convocou todos para um jejum nacional pedindo a Deus pelo Brasil. Seria melhor que houvesse se calado. Tantas orações de pessoas que dizem que temos que ter fé e contar com a proteção divina não deram resultado.

Muitas pessoas disseram ter fé que o coronavírus não atingiria o Brasil, que Deus não permitiria. Antes da quarentena, pessoas disseram que não iriam se preocupar com o futuro e deixar tudo “nas mãos de Deus”, pois Ele nunca desampara ninguém, ama todos os Seus filhos e ninguém deve temer pelo futuro. Bem, pode-se dizer que essas pessoas têm fé. Será que a fé delas não chegou a ser do tamanho de um grão de mostarda para deter o vírus? Afinal, Jesus disse a seus discípulos após a tempestade que, se tivéssemos fé, conseguiríamos tudo. Mas toda a fé de tanta gente orando não está trazendo os resultados esperados.

Apesar de vermos a triste situação, religiosos, afirmando que Deus “não irá nos deixar desprotegidos”, têm feito verdadeiros disparates. Igrejas continuam funcionando e a polícia tem inclusive obrigado os pastores a suspender seus serviços. Porém, o alerta das autoridades e dos cientistas não nos impede de ver absurdos como o retratado por Kennedy Litaiff no seu canal O mago do realismo. No vídeo Coronavírus e as orações na calçada, Kennedy mostra pessoas evangélicas, orientadas pelo pastor, orando nas calçadas, formando aglomerações, pedindo a Deus misericórdia e fazendo afirmações como “o Senhor tudo pode, Jesus. Essa doença não é maior que o Senhor.” Qual será o resultado? Tomara que, entre essas pessoas ninguém tenha o vírus.

Líderes religiosos, como Salvini, líder da Lega (partido da direita italiana), declarou, dia 5 de abril, que as igrejas deveriam permanecer funcionando na Semana Santa. Talvez ele ignore que nas nações muçulmanas onde as mesquitas permanecem abertas, o vírus se alastra rapidamente. E não podemos deixar de falar na Índia e em Israel, onde os judeus ultraortodoxos que continuam frequentando as sinagogas apresentam uma taxa de positividade de 300% ao vírus. Pelo visto, a fé de toda essa gente é impotente contra o vírus. Vale mencionar que, no Brasil, o pastor da igreja da primeira-dama está com o coronavírus e um pastor norte-americano, Landon Spradlin, que foi para Nova Orleans celebrar o carnaval em março, morreu um mês depois de apresentar os sintomas.

Este pastor, inclusive, mesmo após apresentar os sintomas, postou nas redes sociais sobre a “histeria” e em 13 de março, postou no Facebook compartilhando uma postagem em que se comparava as mortes pelo COVID – 19 às causadas pela gripe suína e que trazia números falsos, sugerindo que as notícias sobre a doença seriam, na verdade, um complô contra Trump que também prestara declarações parecidas. Assim como esse pastor, outros líderes religiosos, durante epidemias históricas, como a peste negra, agiram com arrogância e imprudência e, em vez de se proteger, promoveram procissões religiosas que só contribuíram para fazer a doença se alastrar e levar inúmeras vidas.

Que dizer do fato de estarmos vendo que tanta gente orando com toda essa fé não está conseguindo nada? Pessoas religiosas poderão usar argumentos para justificar, dizendo que o sofrimento neste mundo não deve ser motivo para duvidarmos de Deus e que não podemos esperar que Ele nos atenda. Porém, isso soa injusto quando pensamos em como fomos ensinados que Ele nunca nos desampararia e que poderíamos nos voltar para Ele nas piores horas. Afinal, o próprio Jesus foi quem supostamente afirmou que tudo que pedíssemos, se o fizéssemos com fé, seríamos atendidos.

Somos ensinados a acreditar numa misericórdia que frequentemente não se manifesta. Várias vezes, oramos e não somos atendidos e ouvimos que temos de passar pelo sofrimento para que nossa vitória seja maior no final ou então que o que queremos pode não ser o que Deus quer para nós. Será que, para tanta gente agora, o melhor é morrer da doença? É a única pergunta que ocorre. Além do argumento de que nossa vontade pode ser contrária à de Deus, vem aquele de que tudo é no tempo certo. Bem, tantas pessoas que estão agora orando para ser protegidas da doença poderão nunca ver esse tempo certo. Talvez morram em consequência da doença por terem se exposto. Ainda podemos ouvir que o que temos de fazer é orar para suportar a situação com força. Mas essa situação atual, além de ceifar vidas, se se prolongar por tempo demasiado, levará muitas economias a um colapso.

Quando se diz que não podemos esperar que Deus nos atenda, admite-se que nem toda oração será atendida e isso contradiz a afirmação atribuída a Cristo de que tudo que pedíssemos com fé seria atendido. Então, o que levaria Deus a atender a umas pessoas e a outras não? Ele faz acepção de pessoas? A pessoa que Ele não atende é tão insignificante? Com certeza, um religioso, se confrontado com essas questões, irá usar todo tipo de justificativa. Falará que não podemos entender os mistérios e a vontade de Deus. Isso só nos lembra Sam Harris: “Se algo bom ocorre, é porque Deus é maravilhoso. Se uma desgraça ocorre, é porque Deus é misterioso.” Todavia, como o próprio Sam Harris observa, as pessoas que falam que não entendemos os mistérios de Deus dizem se basear n’Ele e em seus supostos princípios para estabelecer padrões de bondade e compaixão. Muitas delas achariam inadmissível não socorrer alguém em uma ocasião de extrema urgência e necessidade, mas consideram aceitável que Deus não atenda a muita gente necessitando de um socorro urgente, dizendo que Ele é misterioso, que Ele tem seus planos ou mesmo que as pessoas que são de Deus têm de passar por mais provações.

As loucuras cometidas por religiosos que estão se expondo assim, colocando suas vidas nas mãos de algo incerto, mostra que a religião está colocando ideias erradas nas cabeças das pessoas. Temos de ensinar às crianças, desde cedo, a encarar a realidade, lutar pelo que querem e não basear suas vidas na expectativa de que um dia o vento soprará a seu favor. A vida mostra que, se nós mesmos não fazemos nada por nós, talvez o dia certo nunca chegue.

Outras afirmações absurdas dos religiosos são as de que isso é um castigo divino e que, se crianças inocentes estão morrendo, isso é necessário para purificar o mundo. Será mesmo? Falam que temos que fazer jejuns, orações e nos arrepender enquanto é tempo porque estariam se cumprindo profecias bíblicas. Infelizmente, o argumento do castigo é falho. Vejamos a história da humanidade. Dado o número de tragédias naturais e epidemias que mataram milhares ou milhões de pessoas como amostra da ira divina, podemos dizer que esses castigos são ineficientes. O reverendo Paul Washer já falou que nem as crianças foram poupadas quando Deus lançou os castigos do Dilúvio e em Sodoma e Gomorra, não foi? Mas, vendo que a humanidade parece não ter melhorado , podemos dizer que esses castigos não serviram para nada. Logicamente, castigos não são apenas para punir, mas para corrigir. Se, até agora, a humanidade não se corrigiu, Deus não estaria sabendo como nos punir por nossos pecados e iniquidade para que não voltemos a pecar.

Não devemos também falar em fim dos tempos porque essa não é a primeira grande epidemia que a humanidade enfrenta. A peste negra levou 50 milhões de vidas dos anos de 1333 a 1351 na Europa e Ásia. E o que ajudou a conter a doença? Orações? Não, mas a adoção de medidas de higiene e outras práticas. A cólera ( 1817 – 1824) matou centenas de milhões; a tuberculose (1850-1980) matou 1 bilhão; a gripe espanhola (1918 -1919) matou 20 milhões e a Aids, que apareceu em 1981, matou 22 milhões. E, em todas as vezes em que apareceu uma epidemia, não faltou quem falasse que estávamos vivendo os tempos finais. Epidemias são tragédias que ocorrem de tempos e tempos e ninguém está livre de contrair essas doenças potencialmente fatais. Saber que pessoas estão morrendo do coronavírus deve nos preocupar, entristecer e despertar nossa compaixão, mas não estamos vivendo os tempos finais da história da humanidade. No entanto, sempre que surge um vírus, fala-se em fim dos tempos. As pessoas adoram apocalipses e teorias da conspiração.

Além disso, devemos falar algo que certamente desagradará a muitos que acreditam na segunda vinda de Cristo: ela já devia ter acontecido. Isso mesmo. Por isso que os discípulos não estavam preocupados em escrever nada. Eles não escreveram não apenas por ser analfabetos, mas por crer que Jesus logo voltaria. Se lermos Mt 24: 34, veremos que Jesus diz, claramente, que aquela geração não morreria sem vê-lo voltar. Então, todos acreditavam que sua volta seria após um pequeno espaço de tempo. Ela não ocorreu, os Evangelhos foram escritos quarenta anos após a morte de Jesus por pessoas que não vivenciaram os fatos narrados e, até agora, mais de dois mil anos depois, pessoas esperam a volta de Jesus.

Precisamos parar de esperar acontecimentos sem garantia, de colocar fé em algo incerto e temos de fazer o que o bom-senso manda: tomar medidas de precaução porque é o melhor que temos a fazer. Daqui a cem anos, esse episódio estará na História. Com certeza, quando surgir outro vírus (essa é uma possibilidade) haverá pessoas falando em castigo divino, proteção divina e fim dos tempos. Quando passamos tempos difíceis, quem pode nos proteger? Somente nós mesmos ou outras pessoas.

Fé demais nunca vai cheirar bem. E agir com bom-senso é o que irá nos dar mais chances de chegarmos vivos ao fim da pandemia. Correndo o risco de despertar a ira de muita gente religiosa, precisa-se dizer o que se observa na vida prática: apegar-se a Deus, contando que tudo o mais Ele fará nunca trouxe nenhuma mudança significativa ao aspecto prático de nossas vidas. Orar ajoelhado, chorando, suplicando pela intervenção divina tem nos levado ao quê? Muitos afirmam que se sentem bem, falam que sentem que Deus lhes falou ao coração. Porém, isso nunca resolveu nenhum problema. Nossas vidas sempre só mudaram em algo quando nós lutamos por melhora e, nas piores horas, ou somos nós que resolvemos ou alguém que nos ajuda. Assim como a peste bubônica, tuberculose e outras doenças que mataram tanto no passado foram contidas com os recursos médicos e as medidas sanitárias adequadas, assim será com o coronavírus.