O falso poder da oração

A pandemia do coronavírus tem levado pessoas religiosas a dizer um monte de coisas: há quem ache que ela é um sinal do fim dos tempos e um castigo divino por causa da nossa suposta iniquidade. Houve mesmo publicações no Recanto das Letras de gente que atribuiu a situação aqui no Brasil ao Carnaval, reforçando que é uma festa diabólica consagrada a Satanás e que o enorme número de turistas estrangeiros ajudou a trazer o COVID – 19 para cá. Entretanto, cientistas desmentiram essa hipótese lembrando que o vírus começou a trazer problemas bem depois do Carnaval. Chamar a epidemia de castigo divino também é um contrassenso. Afinal, o vírus surgiu na China, país de população majoritariamente ateia e vale lembrar que outros países, como o Japão e a Coréia do Sul (onde também há muitos ateus) têm conseguido controlar o vírus de forma satisfatória e eficiente.

O coronavírus não é um sinal do fim dos tempos então, não vamos logo dando vazão a ideias apocalípticas. Houve muitas outras epidemias que mataram boa parte da população por onde passaram. É só vermos a peste bubônica, gripe espanhola e outros casos. Vírus e bactérias são potencialmente letais, ainda mais quando se sabe pouco sobre eles. E, no caso da peste bubônica – a peste negra – a superstição e a ignorância ajudaram muito a espalhar a doença. As pessoas acreditavam que os gatos seriam bruxas disfarçadas e esses animais foram praticamente exterminados. Isso levou a um aumento do número de ratos, os transmissores dessa doença. Um outro fator que favoreceu a proliferação da peste bubônica foram as procissões religiosas invocando a proteção divina, em que pessoas faziam longas caminhadas, de pés descalços, pedindo perdão e implorando que a doença fosse afastada. Os resultados foram nefastos, pois a peste negra se alastrou, varrendo uma grande parte de pessoas. Como vemos, as orações pedindo a proteção ao Deus Todo-Poderoso não tiveram poder contra uma doença transmitida por ratos.

Há quem afirme que a fé e a ciência andam de mãos dadas, mas a História prova que não é verdade. Crenças religiosas podem atrapalhar e muito o combate eficaz a uma doença. Quando o médico britânico Edward Jenner descobriu a vacina da varíola, um Papa foi contra, falando que a varíola era um castigo de Deus e as pessoas tinham de sofrer. Da mesma forma, a Igreja por muito tempo foi contra terapias e o uso de remédios que minimizassem o sofrimento dos doentes por entender que o sofrimento era vontade de Deus e tinha que ser suportado. Tanto que, na Itália, país de tradição católica, o ópio não foi aceito e médicos de formação católica entendiam que não deviam aplica-lo aos doentes. Também vale salientar que doenças mentais e problemas como epilepsia eram considerados manifestações diabólicas e possessão demoníaca. Então, dá para discordar de que a fé não é contrária à ciência.

Temos ouvido pessoas – de todos os credos - afirmando que estão contando com a proteção divina e eu, pouco antes da quarentena, quando fui comprar logo bastante comida para meus animais para não ter de sair – preparando-me para o isolamento – escutei muitas pessoas falando que eu não devia me preocupar, que Deus iria impedir que o coronavírus chegasse à minha cidade e que tínhamos que botar tudo na mão de Deus. Uma evangélica que conheço falou que não iria se preparar para nenhuma quarentena, apenas orar e confiar em Deus.

O que temos visto? Tantas orações, por parte de líderes católicos, evangélicos e de outras religiões não parecem estar surtindo efeito no sentido de impedir a doença de se espalhar. Tanto que o próprio Papa não está se arriscando e padres e pastores têm transmitido missas e sermões online. Na Itália e na Espanha, países com tantos católicos, o número de óbitos tem sido alarmante. E os que prestam serviços religiosos não escaparam. Um centro de missionários, os Saverianos, teve casos de 49 mortes por coronavírus e, em dois conventos em Roma, muitas freiras contraíram a doença. Isolar-se está sendo a única saída.

No Brasil, a situação está crítica. Bolsonaro, nosso ilustre e sábio Presidente, falou que não podíamos deixar uma gripezinha abalar nossa economia e que as igrejas não deveriam ser fechadas. Mas o próprio Ministro da Saúde contrariou e desmentiu muitas de suas afirmações, que causaram mal-estar até em aliados políticos como Ronaldo Caiado, que é médico e disse que não colocará a população do Estado do qual é governador, em risco. Só dá para concluir que estamos num momento em que temos de ter o bom senso de admitir que tomar medidas protetivas é mais eficaz do que qualquer oração.

Embora se fale muito em oração, o que vemos na prática? Não temos como garantir que ela é realmente eficaz. Ainda que digam que se orarmos com fé, receberemos, é enorme o número de pessoas – principalmente ex-evangélicos – que afirma que nunca foi atendido e cansou de ouvir gente lhes dizer que não eram atendidos por não orarem com fé ou que Deus iria atende-los no tempo certo ou talvez o que eles quisessem não fosse o que Deus queria para eles. Acontece que ninguém tem como saber a vontade de Deus para ninguém. A questão não é se Deus tem planos e vontades para nós. A questão é que não dá para sabermos se Ele os tem e quais planos e vontades seriam esses. Na maior parte das vezes, estamos caminhando mesmo ao sabor do vento, tendo que tomar decisões e agir de acordo com as circunstâncias e necessidades que surgem.

Quando alguém fala coisas como ter sido curado de um câncer, ter conseguido um emprego ou alcançado outra graça por causa de orações e do poder de Deus, temos de considerar que há muitas pessoas sofrendo de doenças com dores inimagináveis e, mesmo com tantas orações, Deus supostamente não as atende. Um amigo meu já falou do caso de um parente que era muito católico e que a mulher morreu de câncer. Ele e muitos outros oraram mas o resultado foi que ela morreu com dores insuportáveis. Falar que Deus deu um emprego também soa ridículo. Significaria, no fundo, que Deus, por uns breves momentos, mexeu os pauzinhos, alterando as leis universais – criadas por Ele mesmo – para favorecer a uma determinada pessoa. E vejamos quanta gente desempregada. Como diz Sam Harris, esse tipo de fé é a exaltação máxima do narcisismo. Você, ao agradecer a Deus por ter lhe dado algo, não considera muitas pessoas que pedem e Ele supostamente não quer ajudar ou socorrer.

Eu sempre lembro de quando orava pedindo emprego e não fui atendida e também de quando minha mãe descobriu o câncer. Pessoas vinham orar por ela, fizeram missas de cura, a família dela, que é evangélica, orava sem cessar e o pessoal do centro espírita perto de casa veio dar o passe e chegaram a dizer que ela estava curada e minha tia, muito católica, quando mãe já estava no hospital – do qual não voltou- lutando pela vida, chegou a nos dar a medalha da Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, falando dos muitos milagres que pessoas obtinham com essa medalha. Tudo em vão. Mãe morreu e isso me fez refletir sobre muitas coisas que me levaram a mudar totalmente minhas perspectivas e ponto de vista. Uma mulher evangélica chegou a dizer que eu não deveria me revoltar com Deus por Ele ter levado minha mãe, mas orar para pedir forças a Ele e até contou como Deus tinha curado sua mãe de um câncer, anos atrás. Isso não me convenceu. Orar pedindo forças a Deus por Ele ter levado mãe soou como dizer a alguém pedir a quem lhe deu um tiro que remova a bala. E soou insensível ela falar como Deus havia salvo a mãe dela. Então, Ele faz acepção de pessoas? É uma pergunta que ficará sem resposta.

O argumento dessa mulher me pareceu tão ridículo quanto o da senhora católica que me contou como uma vez teve medo de vários cachorros soltos e falou de como Jesus a protegeu. E o menino que foi morto por seis cachorros ao pular um muro para pegar uma pipa? Por que Deus não o protegeu? Está certo que ele foi imprudente e não deveria pular o muro de propriedades alheias, mas isso não significa que merecia morrer de forma tão horrível. Então, sua morte foi um castigo divino? Quanta gente não faz coisa bem pior e escapa ilesa, não? Eu mesma já tive encontros com cachorros. Num deles, um rotweiller fugiu por causa do descuido da empregada e veio correndo na minha direção. Eu fiquei parada que nem uma estátua e o cão se jogou contra mim, arremessando sua cabeça com toda força no meu estômago. Não aconteceu nada, mas nunca esquecerei esse dia. Em outro, passei por uma casa que o portão estava aberto e o pastor alemão do dono da casa veio até mim, cheirando-me. Falam que Deus me protegeu, embora eu acredite que foi porque não demonstrei medo. Muitos até hoje dizem que, se tivessem visto o rotweiller, teriam corrido.

Orar invocando a proteção divina de nada adiantará contra esse vírus se não tomarmos as medidas protetivas, aceitando o isolamento, que afinal é um mal necessário. Invocar a proteção divina e desafiar a sorte é pedir para adoecer.