Por que sou ateu?
A filosofia, a religião e as ciências, na condição de áreas de estudo, sejam ciências da natureza como física, química e biologia, sejam ciências sociais como a história, a sociologia e a economia, são todas produto da mente humana. A mente humana é produto do nosso cérebro. E nosso cérebro é produto da evolução. No entanto, a evolução não nos fez para ser cientistas ou filósofos. Nós evoluímos nas savanas. Nas savanas não precisamos lidar com coisas tão grandes quanto planetas, nem tão pequenas quanto moléculas, não com coisas tão rápidas quanto a luz, nem tão lentas quanto a meia-vida de um isótopo instável, nem tão complexas quanto imposto de renda ou tão profundas quanto a epistemologia. Nas savanas, nossos ancestrais conviviam apenas com coisas de um determinado tamanho, a uma determinada distância, se movendo a uma determinada velocidade, e é com coisas que nosso cérebro é programado para lidar. Na tentativa de entender o mundo, porém, recorremos à filosofia, à religião e à ciência, que fogem do escopo de coisas que nosso cérebro é programado para entender. Isso significa, simplesmente, que nosso cérebro não é a ferramenta apropriada para entender o mundo. Usando o cérebro humano, feito para macacos pelados que desceram das árvores das savanas, para entender o mundo é como bater num prego com uma chave de fenda; é a ferramenta errada. Não dispomos de outra ferramenta. Não há outra coisa que possa ser usada para pensar que não seja o cérebro. Então, como compreender o mundo? Como saber o que é verdade e o que não é? O melhor meio para isso que a imperfeita mente humana conseguiu conceber é a razão. A razão não nos garante descobrir verdades ou chegar a uma compreensão das coisas, ela é apenas o melhor que podemos usar para almejar tais objetivos.
Uma das ferramentas fornecidas pela razão é a lógica. Uma extensão da lógica é o empirismo. O método que a humanidade concebeu para saber se teses são empiricamente corroboradas se chama ciência. A ciência é fruto da razão. A ciência é o que melhor pode nos aproximar da verdade, é o que fornece as mais confiáveis explicações para os fenômenos que buscamos compreender. As explicações corroboradas pela ciência são o mais próximo da verdade que o ser humano pode chegar. Podem estar erradas, sim, mas a corroboração racional as torna mais confiáveis do que outras explicações.
A maioria das pessoas não questiona a validade da corroboração científica. Afinal, saem de casa com um guarda-chuva se na televisão um meteorologista - um cientista - disser que vai chover, tomam remédios receitados por seu médico - um cientista - e usufruem dos benefícios trazidos pela ciência à humanidade o tempo todo, mas isso não significa que a maioria das pessoas seja racional. Não é. Ser racional não é fácil. Mesmo concordando com certos princípios da razão, o nosso ardiloso cérebro tenta o tempo todo nos distanciar da razão, e manter-se convicto das teses racionalmente e cientificamente corroboradas em detrimento de outras dá trabalho, é um exercício constante.
A religião quase sempre oferece esperanças para a vida das pessoas frente aos malefícios da vida atual. Pessoas acreditam que irão para o céu, que seus entes queridos mortos ressuscitarão, que poderão viver uma vida eterna de prazeres e deleite. Naturalmente apreciam muito essa esperança, e a primeira coisa que costumam dizer quando alguém lhes diz que tais esperanças não têm embasamento científico e portanto não há evidências de que sejam reais, é que essa é uma visão muito cruel, que não admitem que vamos simplesmente morrer e que a esperança é muito mais confortante, como se isso servisse de corroboração para alguma coisa. O fato de uma crença ser reconfortante não indica em absolutamente nada a sua veracidade, da mesma forma que uma tese preocupante não está, por isso, nem um milímetro mais longe da verdade. Conforto e crueldade não são elementos racionais, eles em nada interferem no respaldo lógico ou empírico de uma tese. Mas nosso cérebro não é racional, e por isso se permite convencer de algo pelo simples acalanto que esse algo lhe traz. O fenômeno de aceitar uma ideia por ela ser agradável e não por ela ter algum respaldo é conhecido o suficiente pelos filósofos para que lhe tenham dado um nome: wishful thinking. Usar a razão para passar por cima do wishful thinking na busca pela verdade é algo difícil, é um esforço mental que poucos conseguem fazer.
É claro que o wishful thinking não é a única armadilha que o nosso cérebro põe como obstáculo ao pensamento racional. A Wikipedia possui uma categoria com 46 páginas chamada "Barriers to critical thinking". Eu gostaria de ver essas páginas, ou algo correspondente, como leitura obrigatória na escola. Se todos fossem preparados para pensar de maneira crítica, cética e racional a ponto de conhecer os obstáculos que encontrarão para ele, creio que já estaríamos no futuro dos carros voadores. Com 46 páginas bem se vê que os obstáculos não são poucos, e ficar escrevendo sobre todos aqui seria exaustivo e inútil. Vou escrever sobre apenas mais um, porque é o que considero o mais difícil de contornar. Se chama dissonância cognitiva.
A dissonância cognitiva, por definição, é um fenômeno que não detectamos em nós mesmos. É uma armadilha mental tão impressionante que sua descrição pode até parecer ficção científica, mas não é, é um fenômeno muito bem conhecido por filósofos e cientistas da mente, e por inacreditável que pareça, acontece exatamente assim: ao se ver diante de uma tese que contraria a visão de mundo de um indivíduo, a inteligência desse indivíduo é limitada para que essa tese não seja assimilada e sua visão de mundo seja mantida intacta. Quando vir alguém que parece estar se fingindo de sonso para não admitir que está errado, tenha em mente que talvez não seja dissimulação, e sim dissonância cognitiva. Um mecanismo de defesa do cérebro contra verdades inconvenientes. Parece impressionante, mas na verdade é algo comum e frequente.
Já presenciei o fenômeno da dissonância cognitiva. Conheci muitos religiosos inteligentíssimos que não aceitavam a veracidade da evolução, mesmo expostos às suas esmagadoras evidências científicas. Tentavam concatenar algum raciocínio pretensamente racional que derrubasse a tão elegantemente estruturada teoria darwinista. Suas crenças religiosas exigiam que as evidências científicas estivessem erradas. Mas não precisa ser assim. O pensamento racional é uma forma de pensar, mas não é a única. A filosofia nos apresenta outras abordagens do pensamento além da racional. Uma delas é a fé, e nela se sustenta a religião. A razão e a fé não são necessariamente antagônicas, são apenas formas diferentes de se pensar. As pessoas entram em dissonância cognitiva porque misturam as duas coisas, e não precisam misturar. O mundo seria um lugar bem melhor se a maioria dos religiosos entendesse isso, mas parece que está longe de ser o caso.
Como dito acima, a maioria das pessoas não duvida que uma tese cientificamente corroborada seja confiável, nem os religiosos. Acontece que os religiosos, por manterem as suas crenças religiosas como verdades e ao mesmo tempo aceitarem que uma tese racionalmente corroborada é verdade, concluem que suas crenças religiosas também precisam ser racionalmente corroboradas. Não precisam. Você não precisa provar sua fé pela razão.
As tentativas de provar a fé pela razão, misturando duas vertentes de pensamento que deveriam estar separadas, geram pseudociências como a do criacionismo. São tentativas desajeitadas de corroborar de forma pretensamente racional teses religiosas que nunca precisaram dessa corroboração. As pseudociências são muito atraentes para os leigos, que veem nelas uma reafirmação de suas crenças, mas as pessoas que têm bons conhecimentos científicos as rejeitarão prontamente porque sabem que são teses furadas e insustentáveis. Isso pode ser um grande problema.
Religiosos gostam de mostrar grandes cientistas e pensadores do passado e do presente que compartilhavam de suas crenças, de modo a validá-las. Mas ignoram que boa parte desses intelectuais diferenciava fé de razão, coisa que talvez não façam. É perfeitamente possível ser racional no laboratório durante o dia e devoto de fé na igreja à noite, basta saber separar os dois tipos de pensamento, a fé da razão. São duas coisas diferentes e uma não deve interferir na outra. Um dos grandes cientistas de nosso tempo, uma mente brilhante que sabe que fé e razão não se misturam e possui as duas, Francis Collins diretor do Projeto Genoma Humana e cristão convicto, sabe que o problema de se tentar provar a fé pela razão é maior para os devotos que para os cientistas. Diz ele: "O Criacionismo causa danos à fé quando exige que a crença em Deus concorde com alegações essencialmente falhas acerca do mundo natural (. . .) Quem duvida que muitos desses jovens, ao não encontrar uma alternativa ao criacionismo, darão as costas à fé, concluindo que simplesmente não podem acreditar em um Deus que lhes pede para rejeitar o que a ciência lhes ensinou, de forma tão atraente, acerca do mundo natural? (. . . ) Continuar a fazer isso dá aos oponentes da fé (que são muitos) a chance de obter uma série imensa de vitórias fáceis."
Tentar provar a fé pela razão é falho e, como isso faz a razão prevalecer, a tendência de muitos, eu incluso, é abandonar a fé. Sou uma prova viva de que Collins está certo. Me lembro de aos 16 anos ficar me debruçando sobre livros de história e de ciência em busca de uma resposta a ateus na internet, e hoje estou entre eles. Virei a casaca no melhor estilo Anakin Skywalker porque tentei usar a ciência contra ela mesma, façanha naturalmente destinada ao fracasso e, não podendo vencê-los com argumentos, concluí que estão certos e passei para o seu lado.
Sendo assim, muito melhor que as tentativas desastrosas de provar a fé pela razão é o pensamento de teólogos e filósofos que mantém e sustentam suas crenças religiosas sabendo que não precisam corroborá-las pela razão e que, portanto, sustentam o pensamento racional onde ele bem se encaixa, como na ciências. Crer em Deus sem confrontar a ciência. Se você for cristão e tiver por isso suas desavenças com teses científicas autênticas como a evolução biológica, em vez de ficar se debatendo com a ciência para provar que Adão e Eva existiram literalmente (porque suas tentativas falharão), sugiro que procure por autores como Simone Weil, Dietrich Bonhoeffer e Søren Kierkegaard. Eu não sei qual é o embasamento filosófico que essas pessoas deram à sua fé, mas o importante é que sabem separar fé de razão, e isso lhes permite serem cristãos sem serem negadores da ciência.
Dizer a isso a muitos cristãos, porém, já sugere uma mudança radical de pensamento. Muitas religiões no mundo, inclusive as maiores religiões que exercem grande poder na política e na sociedade, estão estruturadas na ideia de que a fé deve ser provada pela razão. Isso se observa na formação de organizações religiosas e pseudocientíficas feitas para enfiar suas crenças no meio científico e acadêmico, chegando até mesmo publicado livros pseudocientíficos questionando a evolução de forma extremamente leviana e desonesta, com argumentos facilmente refutáveis por alguém que tenha algum conhecimento de biologia. Levam professores de ciência a tribunais para forçá-los a ensinar pseudociências nas escolas, contribuindo para a disseminação do falso conhecimento e reprimindo no mundo o pensamento racional.
Apesar de eu ter defendido aqui que razão e fé não precisam se anular, permaneço na minha posição de ateu. Quem separa fé de razão e tem os dois está numa posição totalmente válida, no entanto eu estou entre os que abandonaram a primeira e ficou apenas com a segunda. Como um cético, aceito aquilo que pode ser provado pela razão. Os espíritas, percebendo que o problema do cristianismo com sua pobreza em respaldo, gostam de vender a sua religião (frequentemente até mesmo recusando essa denominação) como diferente das demais por ter comprovação empírica. Não tem. O espiritismo e todas as outras religiões não têm nenhuma comprovação científica. Carl Sagan se questionava por que Fermat, por exemplo, não fez contato do outro mundo com a humanidade para nos revelar o seu último teorema, que a humanidade levou mais de 300 anos para descobrir. Ou por que Sófocles não ditou a nenhum médium suas obras perdidas na destruição da biblioteca de Alexandria. Não há nenhuma prova empírica de que existem espíritos, ou reencarnação, ou da autenticidade das psicografias.
Isso, no entanto, não é o suficiente para justificar o ateísmo, mas apenas a irreligiosidade. Muitas pessoas creem em deuses mas não seguem religiões. Fui uma dessas pessoas durante muitos anos. Depois de rejeitar minha antiga religião e não procurar por nenhuma outra, durante muito tempo acreditei num Deus Criador do Universo, sustentando essa convicção não em dogmas religiosos, mas na própria complexidade da natureza. O DNA é uma maravilha arquitetônica microscópica dentro de cara uma das infinitas células dos seres vivos no nosso planeta. O modo como as forças da física são ajustadas para combinar as partículas nos mais de 100 elementos químicos conhecidos e que interagem entre si formando moléculas e substâncias é de uma elegância a ser alvejada por qualquer bailarina. Maravilhas arquitetônicas requerem um arquiteto que as tenha idealizado, bem como o ballet precisa de um coreógrafo. Arquitetos e coreógrafos são portadores de mentes inteligentes que, aliadas ao poder criativo, realizam suas obras. O Universo e a natureza são a mais bela e complexa das obras que podemos contemplar, portanto há uma mente inteligente que os criou. Esse argumento é chamado de argumento teológico.
Eu me convenci pelo argumento teológico durante um bom tempo. Deve haver uma inteligência por trás do Universo e da natureza, mesmo que não seja o deus de nenhuma religião concebida pelo homem. Assim pensei eu durante muitos anos, desde que deixei a minha religião até me tornar ateu. Nesse período, não encontrei uma boa resposta ateísta ao argumento teológico. Hoje eu a tenho e apresentando-a neste artigo, sigo para a explicação final do meu ateísmo.
A resposta ao argumento teológico foi dada por um filósofo iluminista e astrônomo chamado Pierre-Simon Laplace a ninguém menos que Napoleão Bonaparte, na época da Revolução Francesa. Em 1796, Laplace escreveu um livro chamado Exposition du systême du monde, que tratava d a origem do sistema solar, incluindo a Terra, o Sol, a Lua e os outros planetas. O livro de Laplace foi referência para os astrônomos por mais de 100 anos. O próprio Laplace presenteou Napoleão com seu livro e o conquistador pediu-lhe uma justificativa: "Senhor Laplace, é dito que o senhor escreveu este livro tão grande sobre o sistema do universo,sem nunca mencionar o seu Criador". Laplace respondeu: "Je n'avais pas besoin de cette hypothèse-là" (não preciso dessa hipótese). Uma resposta simples e certeira. Laplace explicou o surgimento do sistema solar usando apenas seus conhecimentos de física e química, não precisou de um deus. Um deus seria apenas um ingrediente a mais e, portanto, um ingrediente supérfluo.
A ciência explica o surgimento das maravilhosas estruturas da natureza limitando-se ao que ela estuda: a natureza. As explicações científicas não incluem deuses, porque deuses não são objetos de estudo da ciência. O modo da ciência colocar um deus como um elemento em suas explicações seria se esse deus fosse visto pelos telescópios ou microscópios, e creio que nenhum religioso espere que isso aconteça. Assim, até agora deus tem sido mantido de fora das melhores explicações encontradas para as maravilhas do Universo e da natureza.
As explicações científicas, quando existem, já são satisfatórias sem que se recorra a deuses. Por exemplo: A evolução ocorre por causa das mutações no DNA e da seleção natural. Podemos explicar pela química como ocorrem as mutações no DNA e por diversos fenômenos biológicos e geológicos como ocorre a seleção natural. Alguém poderia argumentar que Deus guiou a evolução e dizer que Deus causou as mutações no DNA e os fenômenos biológicos e geológicos que causam as seleção natural. Muito bem, mas sabemos que eles ocorrem mesmo sem um deus para causá-los. Temos uma ótima explicação científica para isso, e com ou sem um deus como ingrediente dela, continua sendo uma ótima explicação. Quem quiser, adicionar um deus a ela, adicione, isso não é uma negação da ciência. Mas se tirarmos o deus, ela funciona igual, porque "Je n'avais pas besoin de cette hypothèse-là".
É importante, porém, saber a diferença entre argumento teológico e falácia de deus nas lacunas. Voltemos agora a atenção para a primeira frase do parágrafo anterior: as explicações científicas são suficientes quando existem. Quando não existem, algumas pessoas apelam para a falácia de deus nas lacunas. A falácia de deus nas lacunas não está incluída no argumento teológico. Essa falácia consiste em usar deus como explicação pronta para coisa ainda inexplicáveis.
Há coisas que a ciência ainda não explica, e me refiro com isso a coisas que estão dentro do campo científico de estudo, mas que nosso conhecimento ainda não alcançou. Ainda não sabemos, por exemplo, como surgiu o DNA. A resposta mais honesta e cientificamente exata que um biólogo molecular pode dar para o surgimento do DNA é: "Não sei". Como disse Richard Feynman, é melhor ter perguntas que não podem ser respondidas do que respostas que não podem ser questionadas. As dúvidas são o que move a ciência. Há mentes brilhantes em laboratórios ao redor do mundo trabalhando para descobrir o que não sabemos. O que nos resta é esperar que cheguem a uma explicação. Até lá, devemos admitir nossa ignorância, o que nem sempre é fácil, mas é racional.
A falácia do deus nas lacunas pode parecer tentadora, mas foi rejeitada até mesmo pelo pastor Dietrich Bonhoeffer. A ciência vem fazendo infinitas descobertas sobre a natureza ao longo dos séculos e até hoje nenhuma delas envolveu deus. Isso significa que as lacunas em que se podia anteriormente encaixar um deus já foram preenchidas por explicações científicas que, como Laplace nos lembra, não precisam dessa hipótese, então o espaço em que deuses podem ser encaixados se torna cada vez menor, de modo que a falácia do deus nas lacunas passa a ter cada vez menos uso e, se a crença em deuses depender dela, será uma crença cada vez mais fragilizada.
A razão leva a lógica, a lógica leva ao empirismo, o empirismo leva à ciência e a ciência explica o mundo sem precisar da hipótese de deus. Deus pode residir em outros campos do pensamento que não são mas não excluem a razão, como a fé, mas eu escolhi ser pautar na razão a minha visão de mundo e nisso reside o meu ateísmo.