Em defesa do Porta dos Fundos

Sites cristãos estão insistindo na tese do "vilipêndio ou escárnio da fé" para acusar o Porta dos Fundos de "criminoso" ou para justificar censura do filme de Natal "A Primeira Tentação de Cristo" (disponível na Netflix), do grupo humorístico, cujo enredo apresenta Jesus como gay.

Toda vez que alguém cria uma paródia de Jesus Cristo, ainda mais se o retrata como gay, este argumento falacioso de "vilipêndio" volta a ser usado, embora já tenha sido desmascarado. É um padrão.

Cristãos se apegam ao artigo 208 do Código Penal. O que diz lá?

"Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:"

Vamos por partes. Primeiro, não tem cabimento acusar o Porta dos Fundos de "escarnecer de alguém publicamente". Observem o termo "alguém". A expressão refere-se ao contato direto entre duas ou mais pessoas. O contato acontece em público, em que uma, ou mais pessoas, "escarnece" de outra (s) pessoa (s) por causa de crença religiosa ou com objetivo de desrespeitar culto religioso alheio. É um constrangimento que determinada (s) pessoa (s) em específico sofre (m).

Como explica o jurista Rogério Tadeu Romano, no artigo "Os crimes contra o sentimento religioso", "há de existir alguma pessoa determinada que preencha o elemento descrito 'alguém'".

O artigo 208 tem um caráter, digamos, "indutivo". Ainda que o crime seja contra determinada pessoa ou grupo, atinge os interesses coletivos, pois a religião é coletiva.

Mas não há "alguém" (uma pessoa ou grupo de pessoas) em específico sendo constrangido via contato direto e em público pelo filme de Natal do Porta dos Fundos.

Mesmo que um determinado cristão diga que se constrangeu com o filme, ainda não se enquadra no artigo 208, porque a paródia não foi diretamente contra ele, que não passou por suposto constrangimento em público e, mais importante, ele não é obrigado a assistir.

O "escarnecimento" citado no Código Penal pressupõe uma atitude autoritária do "escarnecedor". O deboche direto contra determinada pessoa ou grupo, com intenção de desrespeitar função religiosa ou atrapalhar prática religiosa, é um tipo de imposição do sujeito ativo. O ultrajador sabe que a vítima (o "alguém") do achincalhe não vai gostar de ter o sentimento religioso ridicularizado, tampouco que o ato religioso seja atrapalhado e, mesmo assim, pratica o escárnio. É uma ação física e pública contra a vítima que não tem como se recusar a sofrer o ultraje.

No caso do Porta dos Fundos, não há imposição. Novamente, porque não há "alguém", um sujeito passivo determinado. Não há um cenário concreto, onde Fábio Porchat, Gregório Duvivier e outros atores do filme se impõem contra religiosos, debochando deles por causa de suas crenças. Não tem como haver "alguém" (sujeito passivo), porque trata-se de uma manifestação artística direcionada a quem quer assistir, desde que seja assinante da Netflix. É uma situação que transcende qualquer caso concreto imaginado pelo legislador do artigo.

O cristão só poderá ter acesso ao deboche contido no filme se ele assinar a Netflix e depois escolher assisti-lo.

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A parte que menciona "impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso" definitivamente não se aplica. Nem merece discussão.

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"Vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso". Esta parte é usada com mais frequência. Acusa-se o Porta dos Fundos de "vilipêndio".

Mas atentem aos termos "ato" e "objeto".

Ato remete à prática religiosa como missas, cultos evangélicos, entre outros. Novamente, refere-se a um contato direto e público. Exemplo: alguém que invade uma missa e começa a ofender os católicos, o padre e a dizer palavras que os cristãos entendem como "blasfêmia". Tudo isso diante de várias pessoas.

Não tem cabimento acusar um filme que parodia Jesus de vilipêndio a um ato religioso. O artigo 208 refere-se a casos concretos, específicos. Ele não pressupõe um ultraje que possa atingir todos os atos religiosos de uma vez ou que atinja uma "abstração" (no sentido platônico) do ato religioso e, portanto, ofenda todos os cristãos. Se há em alguma arte a ridicularização de um "ato religioso", tal "ato" mostrado não é um ato religioso, mas uma mera representação do mesmo.

O mesmo se aplica em relação a "objeto". O filme humorístico não está ultrajando nenhum objeto religioso, porque, novamente, não há objeto religioso como crucifixos, estátuas, Bíblia etc. "Objeto", segundo o artigo, tem caráter corpóreo. O dicionário define representação como "ideia ou imagem que concebemos do mundo ou de alguma coisa".

O que há no filme é uma representação de Jesus, não um objeto que materializa a representação que os cristãos têm dele, como um livro do novo testamento ou alguma imagem, pintura ou estátua.

A representação de Cristo não é monopólio do cristianismo. Portanto, se cristãos querem impedir outras representações dele, a tentativa de imposição vem deles.