O conceito de Deus

O CONCEITO DE DEUS
Miguel Carqueija


“O mundo não pode ter origem nem fim em si mesmo. Em tudo o que existe está mais do que aquilo que se vê.”
(Youcat, nº 4)

Em si, o conceito de divindade é claríssimo. Não necessita de uma revelação específica estando ao alcance da razão humana e assim foi proclamada por grandes filósofos da Antiguidade. Sem embargo, este conceito límpido foi desvirtuado, deturpado ao longo dos milênios. Daí ser necessário, ainda hoje, buscar clarificar o assunto.
Uma das maiores deturpações é a idolatria. No passado, como é amplamente mostrado no Antigo Testamento, os povos pagãos eram pesadamente idólatras e essa idolatria contaminava também os judeus, que em princípio eram monoteístas. Mesmo porém professando um único Deus, chamado de Javé (“Eu sou Aquele que sou”), com frequência desrespeitavam esta crença com seus terafins, ídolos fabricados por mãos humanas. A idolatria é uma tosquice religiosa. Acontecia mesmo de um indivíduo fabricar ele próprio um ídolo de madeira, barro ou outro qualquer material e adorá-lo como seu “deus” particular, mesmo sabendo que poderia quebrá-lo, jogar fora os cacos, queimá-lo.
Nos dias atuais quase não se encontra mais esse tipo de idolatria, tendo em vista a evolução da mentalidade. Ninguém mais acredita que uma estátua possa ser um ente vivo, que dirá uma divindade. Mas existem outros tipos de idolatria, como uma que infelizmente contaminou alguns ambientes dos nossos irmãos protestantes: a teologia da prosperidade, ou seja, adorar o dinheiro, o prazer, o luxo, o conforto, em suma os bens materiais. Como disse Jesus Cristo, “Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mateus 6,24)
Há outras idolatrias correntes, como o horóscopo, crer na influência dos astros. Podemos definir idolatria como o ato de adorar ou atribuir poderes divinatórios a quem não é Deus. Talvez a pior de todas as formas dessa deturpação esteja no endeusamento de seres humanos, como acontecia com imperadores romanos, e prossegue hoje no culto à personalidade de ditadores diversos. No regime comunista, o Estado assume a função de Deus: não pode errar, não pode ser contestado. O ateísmo de um modo geral tende à adoração da humanidade como um todo: o Homem torna-se o “deus de si mesmo”; não obstante continuar morrendo, pegando infecções e resfriados.
Parece que existe também, nesses tempos de “Nova Era”, uma esdrúxula ideia de que cada um de nós tenha o seu “deus” particular, então cada um de nós seria uma divindade. O velho orgulho humano não conhece limites.
Ora, para que não pensem que eu esteja delirando, há muitos anos atrás assisti à narrativa de certo conhecido apresentador de tv, já de há muito falecido, que fez uma espécie de “confiteor”. Contou algo ocorrido quando ele tinha 18 anos, vivenciou um namoro que não deu muito bom resultado. A relação acabou mas, nisso tudo, ficou um filho não assumido. Então o apresentador fez uma estranha observação, que citarei de memória, disse mais ou menos isso: “Acho que o meu “deus” (sic) estava adormecido...”
O verdadeiro conceito de Deus (esqueçamos o politeísmo com suas mitologias cheias de deuses repletos de defeitos humanos, inclusive crueldades horríveis) é, como eu disse, límpido e claro. Deus é, na expressão de Frei Sandro Grimani, o “Existente em Essência” (“O invisível na harmonia lógica do cognoscível”). É de sua essência existir e sem Ele nada existe. Não é um ser corporal e muito menos sexuado, portanto nada a ver com os deuses do Olimpo ou Valhala, que tinham corpo portanto eram limitados no espaço e no tempo.
Deus é onipotente (pode tudo, em tese; só não age de forma contrária à razão, nem pratica o mal). É onipresente, o que significa que nada lhe é oculto. É onisciente, sabe todas as coisas. É porém puro espírito, sem matéria, portanto não é feito de partes. É eterno, não existe no tempo mas na eternidade. E a Eternidade é um ponto sem dimensão, e não uma linha como no tempo. Assim sendo, Deus tem diante de si o passado, o presente e o futuro, todos os eventos. É exterior ao universo. O universo é criação divina, aliás a Ciência moderna, ao descobrir primeiro através do grande físico e matemático Padre Georges Lemaitre (belga), depois pela identificação do Bóson de Higgs na pesquisa do CERN, o início do universo pela singularidade inicial, que depois se expandiu (a Grande Expansão do Universo, mais propriamente que Grande Explosão), confirmou o livro do Gênesis (Gn 1,3), ou seja, o “Fiat Lux”.
Deus é, também, sumamente bom e perfeito. Repugna à inteligência humana a ideia de um Deus mau, como as divindades cósmicas imaginadas nas histórias de H.P. Lovecraft. Até a perfeição matemática do universo dá ideia de um Ser altamente perfeito e bom, a um ponto que nós nem podemos sondar.
As relações íntimas dos grandes atributos do ser divino — as Três Pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo — já escapam à razão humana porém foram reveladas por Jesus Cristo. E Jesus é a Encarnação do Verbo, ou Segunda Pessoa. Não é tão difícil entender o básico, e São Tomás de Aquino, o grande filósofo e teólogo do século 13, explicou em seu Compêndio de Teologia que as Pessoas são diferenças de relação na Divindade. O Pai é o Criador, o Filho é o pensamento de Deus, que, sendo eterno e onisciente, a tudo abarca, daí a substancialidade de seu pensamento. Conhecendo perfeitamente a si e à sua criação, Deus ama a si e ama a Criação. Este Amor infinito é o Espírito Santo. O Filho e o Espírito Santo são congeniais ao Pai. Embora se diga que o Filho procede do Pai e o Espírito Santo, do Pai e do Filho, esta procedência é eterna, não tem começo no tempo.
O próprio tempo foi criado juntamente com o espaço, a matéria e a energia. Não tem sentido perguntar, como fazem os materialistas, “o que fazia Deus antes de criar o universo” já que não existe antes, já que não havia tempo. Como eu disse, Deus existe na Eternidade, que é um ponto, ou como alguém já expressou, “um momento de eternidade que não passa”.
A grandiosidade de Deus, sublime e eterna, manifesta-se também num amor infinito por suas criaturas, e a nós Ele amou a tal ponto que o seu Verbo aqui se encarnou e sofreu coisas horríveis para nos oferecer a chance de superarmos a miséria do pecado e pela Graça santificante, podermos alcançar a Visão Beatífica no Céu (estado dos bem-aventurados, não fica no espaço cósmico), quando estaremos — que Deus nos dê a sabedoria necessária para não nos desviarmos — “face a face com o Criador”. A expressão “face a face” é simbólica, pois não sabemos como é a fruição de Deus na eternidade. Mas as almas bem-aventuradas que já lá se encontram, sabem. Nós podemos apenas imaginar precariamente.

Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 2019.


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