A Babel contemporânea

O mito da Torre de Babel[1] é considerado um mito fundador que explica a origem da diferenciação da linguagem[2]. Pode parecer que esse mito nada mais tenha a ver conosco, no Brasil dos dias atuais, mas ouso dizer que ele carrega um sentido fundamental para nossa época, em particular para os que estão empenhados no combate político pelos meios de comunicação digital. O uso do mito visa não apenas a descrever determinada situação, mas também permitir às pessoas nela inseridas de refletirem sobre seus significados para suas vidas e como querem lidar com a situação que estão atravessando.

Os mitos fundadores podem ser usados para explicar a mudança de uma ordem antiga para outra, e é neste sentido que vou usá-lo neste texto para simbolizar o que está acontecendo nas transformações da linguagem e do pensamento, na passagem da anterior cultura moderna para a cultura digital, com reflexos no que estamos atualmente vivendo em nosso país. Não pretendo usá-lo para criticar ou recusar os avanços tecnológicos e todos os benefícios e mudanças que trouxeram, e sim para assinalar e ultrapassar as distorções que acompanharam esse avanço, tirando dele o melhor proveito para o aperfeiçoamento humano.

Em nossos dias, cada pessoa conectada ao seu celular e à sua rede social pode escrever textos que espalham rapidamente ideias e opiniões, sem se preocupar em aprofundar uma reflexão. Desse modo, informações repetidas e muitas vezes distorcidas e frases copiadas ou truncadas transbordam nas redes sociais. As palavras são cortadas para acompanharem a rapidez da comunicação em rede, de tal forma que a linguagem assim mutilada não mais corresponde aos sons emitidos. Esse tipo de escrita torna-se, portanto, desvinculado da comunicação verbal entre as pessoas. Tal linguagem abreviada se impôs na coletividade das redes sociais, e não se trata de negá-la, mas de situá-la em seu contexto mais amplo e no processo de mudança das relações humanas.

As atuais transformações da linguagem e o surgimento de novos e variados meios de comunicação estão abalando as bases dos vínculos sociais e da transmissão de informações e conhecimentos, e estão contribuindo para o desaparecimento de antigos veículos e formas de comunicação. Embora aumentando incessantemente suas comunicações em rede, as pessoas se entendem cada vez menos e estão em constante duelo, num ambiente de incompreensão e falta de interesse por um ponto de vista diverso ao seu. O que era notícia pela manhã, pode estar ultrapassado à noite. O que era novidade ontem, pode nem ser lembrado três dias depois. Sacudidas por esse redemoinho, as pessoas se fecham nas bolhas dos que usam e repetem mensagens com sentidos semelhantes, numa tentativa de reforçar e propagar suas próprias visões.

As aparências do mundo parecem estar em veloz dissolução como se fossem construções de areia sopradas pelos ventos das efêmeras criações, paixões e intrigas humanas. As amizades, casamentos e associações se dissolvem num piscar de olhos. Os amores, sucessos, preferências e opções de vida não só deixam de perdurar, mas se diluem a um ritmo cada vez mais rápido. O próprio tempo está correndo mais depressa: o ano mal começou e já está terminando. Não lamento o transcurso temporal, pois considero que a vida no mundo sempre foi passageira e efêmera. Verifico, contudo, que está ocorrendo uma aceleração nesse processo, uma maior diluição das relações, uma ruptura da unidade entre os seres, uma proliferação das divisões e confrontos, uma emergência das tendências e dos sentimentos mais obscuros.

No final do século passado, como filósofa e psicóloga, eu já acompanhava com interesse as transformações do pensamento moderno e de sua forma de expressão e linguagem. Em vários textos, eu aplaudi a abertura em curso por sua contribuição para a dimensão plural do ser e para o diálogo Essa passagem para uma nova época, que foi inicialmente denominada de ‘pós – modernidade’, emergiu na crista de um processo de profundas mudanças sociais, nas quais as inovações tecnológicas vêm desempenhando um papel cada vez mais central. Elas foram se consolidando ao longo das últimas décadas do segundo milênio e início do terceiro milênio.

Ocorreu, nesse período, uma revolução na informação, a globalização, a formação da sociedade em redes (em particular, após a introdução da Internet) e a transformação dos meios de comunicação e de telefonia, levando à multiplicação do uso de celulares. Esse processo está em plena evolução, e tem tido consequência para a formação dos seres humanos e para a constituição de sua psique. As transformações tecnológicas estão imprimindo uma dimensão e uma fisionomia cada vez mais marcantes à chamada cultura pós-moderna, de modo que se fala agora de uma cultura digital. Ela é caracterizada pelo pluralismo e por uma intensa comunicação interpessoal, que se estende a todo o globo. História, cultura e psique se entrelaçam na constituição de novas formações sociais e humanas, que não devem ser vistas apenas como um quadro externo e independente das pessoas que nela se desenvolvem e atuam.

Outro aspecto dessa nova formação social e humana é o abalo dos chamados ‘grandes relatos’, que eram antes produzidos pelas filosofias, pelas ciências ou pelas religiões. Esse abalo já era nítido, na década de setenta, e havia começado mesmo antes, com a proposta de fim da metafísica e de ruptura com a modernidade e com os sistemas de pensamentos universais. A crescente especialização científica levou à construção de um conjunto heterogêneo de discursos especializados e próprios de cada área do conhecimento. A multiplicação das interpretações e dos discursos parciais tornou mais difícil sua unificação numa linguagem universal, até mesmo no campo das leis.

Identifico como Babel Contemporânea o período em que vivemos de esfacelamento da linguagem, de proliferação dos discursos e de maior dificuldade de entendimento entre as pessoas. Estamos assistindo ao surgimento de uma visão de mundo instável, fragmentada e imprevisível, que dá origem a uma multiplicidade de narrativas sobre um mundo múltiplo e plural, que rompe a trama das visões universais. Nesse período, ocorre o desaparecimento das grandes narrações e a crescente divisão da linguagem e do conhecimento. A multiplicação dos discursos e das interpretações contribui para que cada pessoa permaneça fechada em sua bolha social e na narrativa dentro dela veiculada.

A estrutura descentralizada e complexa das redes vem permitindo o aparecimento de novas formas de intercâmbio e organização, nos vários âmbitos da vida social, política e religiosa. A penetração das novas tecnologias digitais influencia todas as esferas da existência. Essa influência ocorre não somente na área produtiva, no comércio, na educação ou no entretenimento, mas também na área política e até religiosa, modificando o campo dos relacionamentos interpessoais, mesmo entre monges que vivem uma vida mais reclusa.

A nova tecnologia digital está permitindo o intercâmbio e o acesso múltiplo e variado à diversas experiências e informações, o surgimento de novas formas de organização social (virtual e em rede) e de um novo espaço virtual. O uso de celulares multifuncionais está gerando alterações nos comportamentos e em nossa atual configuração psíquica. Surgem novas formas de ser, novas formas de sentir, de pensar, de se perceber e perceber o mundo, novas maneiras de ver a realidade e novos modos de lidar com a fragmentação e a multiplicidade do ser humano.

Ao mesmo tempo, as pessoas estão sendo submetidas ao imperativo do imediato, perdendo o contato com a memória social e priorizando a mudança e a novidade como regra de conduta. Com a ruptura da transmissão da memória, o presente domina o horizonte e as crenças se dispersam e passam a serem organizadas em função de pontos de vista e de valores individuais. Multiplicam-se as divisões e confrontos, e intensifica-se a agitação e dispersão dos modos de vida, que mantêm as pessoas voltadas para fora de si, apegadas às aparências desse constante fluir dos acontecimentos do mundo. Sem ter um eixo próprio, muitas delas são então arrastadas pelo turbilhão dos ventos das mudanças constantes, numa busca incessante de chegar aos andares mais elevados da torre de Babel.

A questão que se coloca, então, a cada um de nós, que estamos inseridos na Babel Contemporânea, é justamente a de saber como se situar e lidar com esse turbilhão sem ser por ele arrastado ou confundido pelo estonteante tumulto da multiplicação das linguagens, informações e narrativas.

[1] Narrado na Bíblia, em Gênesis, 11:1-9.

[2] De acordo com esse mito, havia na origem da história da humanidade um único idioma, mas quando os seres humanos pretenderam construir uma torre para alcançar o céu, Deus misturou suas vozes para que eles não pudessem entender uns aos outros

Olga Regina Frugoli Sodré

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