A REPÚBLICA - LIVRO X - trechos traduzidos & comentados

Tradução de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”.

Além da tradução ao Português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei que devia tentar esclarecer alguns pontos polêmicos ou obscuros demais quando se tratar de leitor não-familiarizado com a obra platônica. Quando a nota for de Azcárate, haverá um (*) antecedendo as aspas.

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“Terei de dizê-lo, muito embora me penalize dirigir tais palavras contra Homero, por quem desde criança nutro o maior respeito e afeição, o que como que amortece minha língua neste momento; pois sem dúvida que Homero é o mestre e chefe de todos estes belos poetas trágicos, alvos principais de minha crítica. Persisto em meu desígnio, na certeza de que a reputação de um só homem não deve falar mais alto que a consideração que devemos ter para com a verdade.”

“Muita vez são os míopes que percebem os objetos antes que os de vista aguda e penetrante.”

“- Este maior de todos os artífices possui o talento não só de esculpir todos os móveis como também o de criar as obras da natureza, todos os seres vivos e, como direi, até se faz a si próprio! E não cessa aqui: faz a terra, o céu, os deuses, tudo o que há no céu e sob a terra, no Hades.

- Vejo que discorres sobre um artista verdadeiramente admirável!”

“Querido Homero, se é certo que és um artista distanciado em três graus da Verdade, incapaz de fabricar outra coisa senão aparências (porque tal é a definição que demos do imitador); se ocupas, no lugar, a segunda ordem; se conheceste o que pode melhorar ou piorar os Estados e os particulares, diz-nos enfim: que Estado te deve a melhora da própria constituição (Esparta deve-o a Licurgo; numerosos Estados, grandes e pequenos, devem-no a tantos outros)? Que país fala de ti como de um sábio legislador e se vangloria de haver tirado proveito de tuas leis? A Itália e a Sicília evocam Carondas; nós temos Sólon; mas onde está o povo que clama <Homero!>?”

“- Distinguiu-se por essas múltiplas invenções úteis nas artes ou nos demais ofícios que são próprios de um homem sábio, como se conta até de Tales de Mileto e do cita Anacársis?¹

- Nada disso se conta de Homero, Sócrates.”

¹ A respeito do segundo: http://remacle.org/bloodwolf/livres/anacharsis/table.htm.

“Escuta, para depois julgar. Sabes que até os mais razoáveis, quando ouvimos recitar passagens de Homero ou de qualquer outro poeta trágico, em que se apresenta um herói angustiado, deplorando sua sorte num largo monólogo, prorrompendo em gritos e se dando golpes no peito, sabes, repito!, que naquele ato percebemos um vivo prazer, que deixamos nos embalar inadvertidamente, e exaltamos o talento do poeta que nos transporta com mais força a este estado.

- Sei-o bem; como não?

- E no entanto já pudeste observar que em nossas próprias desgraças presumimos o exato contrário: seria o ideal poder mantermo-nos firmes e tranqüilos, como convém à condição humana, abandonando às mulheres estas mesmas lamentações que aplaudimos no teatro!

- Sim, observei-o muito bem.

- Diz-me: será justo isso? Aprovar com entusiasmo em outros uma condição que não consentiríamos que se desse conosco mesmos? Envergonhando-nos se porventura nos assemelháramos a tais personagens, e, simultaneamente, gozando e celebrando – em vez de sentir repugnância! – quando se dá com terceiros?”

“- ...depois de haver conservado e até agravado nossa suscetibilidade mediante a contemplação dos maus alheios, é difícil moderar a sensibilidade conosco mesmos.

- Tens razão.

- Não diremos outro tanto acerca do cômico? Se tu manifestas um prazer excessivo em ouvir palhaçadas sobre o que em ti mesmo te envergonharia ao invés de produzir teu riso, mas que tratas como ridículo quando escutas vindo de uma terceira pessoa, deixando neste momento de detestar tais condutas como más, ainda que seja no teatro em vez de em meras conversas privadas acerca de entes conhecidos, todo o processo de identificação que se dá com as emoções patéticas¹ irá, seguro, se repetir. Ao desejo de fazer rir, antes reprimido pela razão, serão soltas as rédeas. Antes temias passar por bufão ou histrião, mas, agora, alimentados esse desejo e essa propensão para a comédia, eles se tornarão predominantes em tua alma! O início é mais hesitante, mas em breve o homem não terá qualquer resquício de pudor diante dos demais, até ver-se convertido num farsante de carteirinha. Um comediante profissional.

- E o pior é que estás coberto de razão, Sócrates!”

¹ Trágicas, sérias, graves, capazes de causar abalo ou comoção. Palavra de origem grega que se perverteu para nós.

“em nosso Estado não podemos admitir outras obras de poesia além dos hinos aos deuses e das odes aos heróis”

“procuraremos não recair na paixão que por ela (a poesia) sentimos em nossa juventude, e de cuja influência não se livra fácil o comum dos mortais”

“- Pode se chamar <grande> aquilo que se passa num pequeno espaço de tempo? O intervalo que separa nossa infância de nossa velhice é bem curto comparado à totalidade do tempo.

- Com efeito pode-se dizer que nada é.

- E não crerias absurdo se um ser imortal se devotasse a contemplar e se preocupar com espaços de tempo tão efêmeros ao invés de dirigir seu olhar à eternidade?

- Crê-lo-ia absurdo. Mas a propósito de quê vem essa afirmação tão súbita?

- Não sentes que nossa alma é imortal e que jamais perece?

Ao ouvir estas palavras, olhando-me atônito, disse:

- Não, por Zeus! Podes prová-lo?”

“Se encontramos na natureza uma coisa a que um mal pode tornar miserável, embora não possa dissolver nem destruir, desde este instante não é factível assegurar que esta coisa não poderá perecer?” “Mas é evidente que uma coisa que não pode perecer nem por seu próprio mal nem por um mal estranho deve necessariamente existir para sempre!”

“se o número de seres imortais se fizesse maior, esses novos seres se formariam daquilo que é mortal e se decompõe”

“- Não me concederás também que o homem, querido pelos deuses, só deveria esperar deles bens, mas que às vezes recebe males como expiação de faltas cometidas em vidas passadas (muitas delas não-humanas)?

- Assim o creio.”

“E quanto aos injustos, defendo que, ainda quando desde muito tenros já tenham aprendido a dissimular o que são, na sua maior parte acabam por desvelar sua natureza hora ou outra até o final de suas vidas; os injustos, em geral, colhem na velhice o ridículo e o opróbrio que plantaram durante toda a vida (...) afirmo que serão açoitados e submetidos ao tormento; numa palavra, imagina-te que escutas de minha boca todos os gêneros de suplício concebíveis.”

“Não vou contar uma estória de Alcínoo, que é comprida e maçante.¹ É a simples história dum homem puro de coração, Er o Armênio, originário da Panfília.² Dez dias após uma batalha cruel e sangrenta, onde encontraram pilhas de cadáveres, o seu era o único intacto pela ação do tempo. Conduzido a seu lar para as cerimônias fúnebres, ao décimo segundo dia, já prestes a ser deposto nas chamas, o destino de todos os defuntos, volveu à vida de repente, e referiu aos circunstantes tudo o que havia visto <do outro lado>. Segundo Er, no momento em que sua alma saiu do corpo, juntou-se a uma infinidade de outras almas em um sítio fantástico; havia duas aberturas na terra e mais duas no céu, neste lugar, estas alinhadas com aquelas, de modo que pareciam possuir alguma relação. Entre os dois pares estavam sentados vários juízes. Assim que pronunciavam sua sentença, os juízes mandavam os justos seguirem por uma das vias que conduziam ao céu, à direita, não sem antes marcar suas costas com uma insígnia que confirmava seus destinos bem-aventurados; os injustos, por sua vez, eram obrigados a seguir à esquerda, por uma das vias telúricas, e também recebiam um selo, desta feita condenatório. Nele, registravam-se todas suas más ações. Quando chegou a vez de Er ser julgado, de súbito os juízes mudaram de idéia, e decidiram que era preciso que alguém retornasse e levasse aos vivos as notícias do que se passava neste além-mundo, e ele fôra o escolhido. Comandaram que passasse mais tempo por ali, escutando e observando atentamente tudo o que acontecia ao seu redor. (...) Er viu que das segundas aberturas (pois, lembre-se, havia duas aberturas para cada destino desta viagem, mas só a primeira de cada par era usada para os que se iam após o julgamento) voltavam outras tantas almas, umas das profundas, outras do paraíso (...) Estas almas que estavam de regresso se detinham no caminho para conversarem calmamente entre si, referindo sua jornada, parecendo peregrinos numa feira, que se reviam depois de uma longa pausa. As que vinham da estrada da terra se exprimiam com gemidos e lamúrias, despertados pela recordação de mil anos, o tempo total que passavam no refúgio subterrâneo. As que vinham do retiro celeste só tinham deleites e prazeres para narrar. (...) Er escutou um diálogo que lhe chamou a atenção: contavam o destino de Ardieu, célebre tirano panfiliano do milênio anterior. Ardieu matara seu próprio pai, já bastante idoso, bem como seu irmão mais velho, sem falar que cometera muitos outros crimes aberrantes e atrozes. <Ele não volta, nem hoje e nem nunca!>, é o que se disse a seu respeito. (...) Acudiram alguns homens selvagens, que pareciam feitos de fogo. De imediato conduziram, por coerção, algumas das almas presentes, as piores dentre elas. Ardieu estava entre elas. Seus pés e suas mãos foram amarrados, e a cabeça imobilizada. Depois de derrubados brutalmente, foram esfolados em castigos contínuos, em seguida arrastados para fora da trilha, sobre urzes, que logo se conspurcaram de sangue. Os <homens de fogo> explicaram às almas que apenas testemunhavam aquele tratamento o porquê deste suplício direcionado às almas criminosas incorrigíveis; contaram também que após esta série de sofrimentos elas seriam arremessadas no Tártaro, o abismo do Hades.”

¹ Odisséia, Capítulos 9 a 12.

² Na Ásia.

“A virtude não tem dono. Cada qual participa dela conforme a honra ou a despreza. Cada qual é livre para agir, porque Deus é inocente.”

“Diz-se que a alma de Orfeu escolhera reencarnar como cisne devido ao rancor e ódio que nutria pelas mulheres, que o chacinaram na outra vida. Orfeu tinha horror à idéia de ser engendrado de novo em um útero de mulher. Diz-se também que a alma de Tamiras escolheu reencarnar como rouxinol. Diz-se também que uma alma de cisne optou por voltar na forma de humano, bem como muitos outros animais cantores. Outra alma, após o fim da última vida, escolheu a condição de leão na próxima. E sabem quem era esta alma? Ájax, filho de Telamon. Pesaroso das guerras armadas entre os homens, recusou-se obstinadamente a repetir a vida de guerreiro. Dizem também que a alma de Agamêmnon, igualmente dissaborosa quanto à existência humana depois de todas as desgraças que lhe sobrevieram neste mundo, optou por reencarnar como águia.”

(*) “Epeu, filho de Panopeu, foi quem construiu o cavalo de madeira que os aqueus usaram para invadir Tróia.”

“Como eu referira, havia almas de animais que foram promovidas a humanos, ou promovidas ou rebaixadas a outras espécies animais, segundo a vida que viveram; os animais injustos reencarnavam como animais selvagens; os justos, como animais domésticos.”

Fim da série de traduções d’A República.