Uma análise profunda
“Não temos medo das perguntas difíceis, mas das respostas fáceis”
Kennedy Litaiff, do canal O mago do Realismo
Sempre que nos vemos atormentados por causa do sofrimento que passamos e questionamos a justiça de Deus ou então quando analisamos as muitas contradições que vemos na Bíblia e doutrinas religiosas, é frequente que as pessoas religiosas venham com todos os argumentos possíveis para que nos convençamos de que a religião é a verdade incontestável e que não podemos questionar nada. Entretanto, todos esses argumentos, se os submetermos a uma análise profunda, suscitarão mais dúvidas que, se não nos respondem a nada, pelo menos nos mostram que não há respostas absolutas para as questões que há séculos têm afligido a humanidade acerca da existência. Não há como explicar de forma fácil por que há injustiças, pessoas passando fome, violência, preconceito e outros fatores que nos levam inevitavelmente a perguntar se realmente existe uma Providência Divina para tudo.
Um texto como este não pretende responder nada. Seria demasiada pretensão e, se houvesse de fato respostas, ele não estaria sendo escrito, porque não haveria razão para dúvidas. Porém, como as há, temos de fazer perguntas para não nos limitarmos a aceitar respostas que, se bem observadas, soam superficiais e mesmo desprovidas de sensibilidade para explicar a vida e o sofrimento. É necessário refletir, não aceitar de pronto explicações que vêm logo dizendo que isso ou aquilo é a verdade.
Portanto, vamos analisar muitas coisas ditas pelos religiosos para justificar ou defender sua religião. Cada análise será feita em um determinado contexto, até para evitar mal-entendidos como os provocados quando apontamos as contradições bíblicas e logo surgem argumentos de que nossas colocações estão fora do contexto ou que não estamos considerando o tempo em que tais passagens foram escritas. Muitas dessas afirmações já foram analisadas em textos anteriores, mas aqui tudo será feito de forma mais particular, até porque podemos observar bem que os religiosos costumam usar o argumento que mais lhes serve, criando um Deus conveniente àquilo em que querem que acreditemos. Ora usam o argumento de que foi vontade de Deus, ora de que foi o mau uso do nosso suposto livre arbítrio. E, como cada caso é único, explicações generalizadas não servem para explicar tudo.
Assim, comecemos a análise:
1- Certa vez, ao me ouvir falar sobre um problema que eu passava, uma mulher me falou: É a sua cruz, que você tem que aguentar para sua salvação. Analisemos. Se o que estou passando é uma cruz que tenho que carregar para a minha salvação, onde está o meu livre arbítrio, já que ela supõe que, quando nasci, fui logo designada para sofrer com o que estou sofrendo? Significa então que não sou livre para determinar meu destino, que Deus determinou que eu passaria por tal caminho para merecer ser salva e eu tenho que sofrer resignadamente para um dia merecer a Salvação. Além de acabar com a história do livre arbítrio, leva-nos a outras perguntas. Deus determinou que crianças nasceriam filhas de pais que as espancariam e abusariam delas enquanto outras nasceriam em lares onde seriam amadas? Essa é a cruz que essas crianças teriam de carregar? Deus decidiu que uns nasceriam saudáveis e outros, com deformidades ou outras doenças incapacitantes? Uns tiveram que nascer em lares pobres e sem oportunidades e outros poderiam nascer com o futuro garantido? Infelizmente, isso só deixa margem para duas possíveis conclusões: Deus faz acepção de pessoas ou então, simplesmente criou o mundo para deixar tudo desgovernado. Claro que religiosos usarão toda a apologética possível para dizer que nós é que não entendemos o propósito divino para o qual fomos criados. São os mistérios que não entendemos. Só que a questão do propósito divino derruba o livre arbítrio, que os crentes convenientemente usam para dizer que Deus não tem culpa de nada. Se houve um propósito para uma criança nascer com espinha bífida ou tantas pessoas morrerem num naufrágio como o do Titanic, significa que não somos livres para nada, pois Deus já estabeleceu tudo.
2- Já ouvi que “fazemos nossos planos mas Deus tem coisa melhor para nós.”
Ouvi esse argumento quando falei sobre planos frustrados. Vejamos. Esse argumento, além de ser outro que mata o livre arbítrio, coloca Deus como um pai opressor que quer decidir o destino dos seus filhos. Por que Deus iria querer que uma pessoa tivesse seus sonhos frustrados e, se Ele tem planos para nós desde o início, por que nos fez dotados de vontade própria e com capacidade para agir? Além disso, isso não tem procedência nem fundamento e dá margens para acreditarmos que Deus é um ser cruel e repressor, um ditador. Você sonha trabalhar, escapar de um lar opressor, ter sua família e Deus quer que você fique solteirona, não se realize profissionalmente e passe sua vida sujeita a pais que não lhe deixem viver a vida? E se Deus não quer que você realize sonhos tão normais, por que Ele não impede tantos de se tornarem traficantes, enriquecendo às custas das perdas de vidas e da destruição de lares? Por que Deus interfere nos meus planos de ir em busca da minha felicidade e não interfere nos de um político corrupto, que vai prejudicar o desenvolvimento de uma nação ou no de um maluco que entra numa escola para atirar em crianças inocentes, ceifando suas vidas? Quer dizer que Deus interfere no meu livre arbítrio, na minha vida pessoal, mas não na de quem está em situação de poder e o usará para fazer o mal? Em tempo: Isabella Nardoni, Bernardo Boldrini, João Hélio e Jacqui Saburido tinham seus sonhos. O que lhes aconteceu foi o melhor que Deus tinha para eles? E, se minha situação atual não me faz feliz, não posso dizer que isso foi o melhor que Deus tinha para mim.
3- Uma vez, uma mulher disse: “Você está revoltada porque Deus levou sua mãe, mas veja como Ele é bom e maravilhoso. Vinte anos atrás, Ele curou minha mãe de um câncer”. O que isso quis dizer? Que Deus quis salvar a mãe dela, não a minha? E eu não estava revoltada pela morte da minha mãe, aceitei que todos morrem. Isso não vai acontecer comigo um dia? Só não sei como. Morte não é castigo, é algo pelo qual todos passaremos.
4- Quando oramos e não dá certo, além da velha desculpa de que foi falta de fé, poderão dizer que o que queríamos não era a “vontade de Deus”. Então, em suma, por que orar e ter planos, projetos e sonhos se Deus já traçou nosso destino? Somos robôs ou seres humanos com capacidade de transformar o mundo em que vivemos? Estranho foi Deus não interferir nos planos de Hitler, não? Nem nos de Mussolini, Stalin, Mao tse-tung e outros. Afinal, supomos que não seria da vontade de um Deus justo que pessoas fossem oprimidas em seus direitos mais básicos. Vale salientar que Stalin perseguiu padres na extinta União Soviética e houve muita perseguição religiosa.
5- Certa mulher falou que o Brasil era subdesenvolvido e havia corrupção porque as pessoas não se voltavam para Jesus. Bastou eu falar sobre as nações mais desenvolvidas e menos corruptas serem as com mais ateus que ela contra-argumentou: “de que adianta fazer as coisas sem ser em nome de Deus?” O que adianta? Fazer o mal em nome de Deus, como os padres da Santa Inquisição? Quer dizer que o bem que fizermos, se não for em nome de qualquer divindade, é inútil? E é melhor o Brasil estar como está mas ser uma nação religiosa do que ser como a Noruega, uma nação cheia de ateus mas desenvolvida e com pouca corrupção? Então, também não posso falar dos ateus que conseguem as coisas sem colocar Deus na frente, porque isso não deve ser usado para rebater a tese de que as coisas não dão certo para quem não coloca Deus acima de tudo.
6- Quando eu falei sobre não haver provas e registros de muitas passagens e histórias bíblicas, disseram que era porque “Deus só deixava que soubéssemos o que Ele queria.” Ah, tudo bem. Assim, é para acreditarmos que os hebreus passaram pelo Egito, que houve a Muralha de Jericó e que Davi matou Golias, mas Deus não quer deixar nenhuma prova de que isso aconteceu. E devemos lembrar que o Deus que interferia diretamente na vida das pessoas, abrindo o Mar Vermelho e matando os primogênitos do Egito, hoje não pode ajudar os desempregados do Brasil. E esse Deus muda, não? Antes, Ele falava com a gente e mostrava todos seus milagres, que hoje só ocorrem convenientemente para umas pessoas em templos evangélicos ou lugares de romaria e peregrinação. Mesmo assim, provou-se que muitos eram fraudes e outros até agora têm sua veracidade contestada.
7- “Deus testa mais quem Ele ama mais”. Que Deus é esse que tem tanta necessidade de nos testar? Ele não é onisciente? E por que Ele testa tanto uns e não outros? Quer dizer que Ele não ama as pessoas felizes? Falar que os “homens agradáveis a Deus se provam pelo cadinho da humilhação” deve nos fazer questionar sim. Quer dizer, então, que Deus amou muito os escravos, não? Já que poucas coisas são tão humilhantes como ser escravo. Outra coisa: aceitar que um dia os humilhados serão exaltados e os exaltados sofrerão humilhação também mostra que as pessoas esperam, um dia, ser recompensadas. E que os que as humilharam serão bem castigados. Nada mais olho por olho, dente por dente. É como alguém que diz entre dentes: “Um dia, você vai ver.”
8- “Você é uma pessoa muito boa e Deus não vai lhe abandonar”. E quantas crianças não morrem à míngua? Elas eram ruins? E, enquanto este texto está sendo escrito, pessoas estão morrendo de frio em ruas, crianças estão sendo abusadas pelos que deveriam protegê-las, outras estão sofrendo bullying. Cadê a proteção divina? Ah, falarão novamente que isso não é Deus, mas o ser humano. Bem, a escravidão no Egito também não era uma consequência de ações humanas? E Deus não interferiu, alterando até as leis da natureza, mandando sete pragas e convertendo água em sangue? Deus não interferiu para que Josué e seus exércitos dizimassem os povos que ocupavam a Terra prometida?
Um texto como este não pretende esgotar o assunto, nem obrigar ninguém a acreditar em nada. Pretende-se apenas refletir. Parece justo que uma pessoa se diga abençoada porque tem uma vida boa, emprego e uma família amorosa enquanto outras estão passando por muito sofrimento e sem ter a quem pedir ajuda? Tentar ser racional não é ser insensível. Procurar entender o mundo além de crenças pode nos ajudar a tomar medidas mais adequadas para que possamos combater as injustiças. Um mundo mais justo só será conquistado se soubermos o que fazer e quais as causas das injustiças.