Do Judaísmo ao Cristianismo
Com relação a história do povo da Terra Santa, em um hiato temporal em torno de 400 anos, entre o velho e novo testamento, nada é mencionado nestes escritos a seu respeito. Mesmo tendo algumas escrituras do Antigo Testamento sido escritas no século II A. C., as mesmas referem-se a acontecimentos antes do século cinco A.C.
No entanto os Manuscritos do Mar Morto, escritos pelos escribas essênios de Qumrân durante essa época, tem lançado alguma luz sobre esse período.
Apesar dos essênios serem judeus, sua cultura era bem diferente da rabínica predominante, e sob vários aspectos, contrária às filosofias hebraicas tradicionais dos fariseus e saduceus, guardiões da lei judaica em Jerusalém. Especula-se que foi a partir do espírito de comunidade dos essênios que a semente do Cristianismo brotou e, através de seus escritos, começamos a entender o modo como se desenvolveu durante este hiato de tempo de 400 anos, a visão e percepção de Deus que, aparentemente, influenciou a vida de Jesus e consequentemente, o Cristianismo.
Mesmo sendo Judeu, as opiniões de Jesus sobre assuntos tais como, riqueza, matrimonio e batismo, eram totalmente diferentes da cultura hebraica dos fariseus e saduceus do século I D.C.. Ele criticava abertamente os rabinos fariseus e os sacerdotes saduceus, advertindo seus discípulos para que não seguissem o exemplo deles, pois pregavam uma coisa e agiam de maneira diversa (Mateus 23:2-4).
Com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto torna-se evidente que alguns dos ensinamentos de Jesus, como o Sermão da Montanha, fundamentaram-se nos ensinamentos de Qumrân. Tudo indica que a série das oito bem aventuranças tenha emanado do espírito do Manuscrito da Sabedoria da Bem Aventurança dos Essênios.
No entanto, apesar do Cristianismo no século II D. C., se afastar cada vez mais do judaísmo e estar praticamente desvinculado deste a partir do século V d. C., ele nasceu de uma corrente judaica liderada por Jesus, o Nazareno. Consequentemente, o Deus pregado pelo emergente Cristianismo era visto, no inicio, como sinônimo dos primeiros registros de Deus dos israelitas mas, com o suceder dos fatos, a personalidade de Deus interiorizada pelos Cristãos foi cada vez mais, se tornando distinta da dos israelitas.
Não havia nenhuma versão consolidada da bíblia hebraica na era dos evangelhos. Existiam, sim, livros individuais que passaram a fazer parte do cânone do Antigo Testamento, alem de alguns Targums aramaicos. Entretanto, existiam vários outros textos que não foram considerados aceitáveis e muitos dos quais surgiram na comunidade essênia de Qumrân. Estes escritos formaram as bases do Judaísmo nazareno praticado por Jesus e seus apóstolos, e é nesses testos que a percepção de um outro aspecto de Deus foi sugerida pela primeira vez.
No Novo Testamento, Deus é retratado como um pastor paternal que conclama que seu fiel rebanho se una a Ele. Todavia, ao longo do Velho Testamento, Ele é retratado como um Deus implacável que lança fogo e enxofre até sobre seus seguidores. Esse comportamento cruel anterior tem levado alguns teólogos a questionar como um Deus que exigia ser amado incondicionalmente poderia permitir que tantas atrocidades ocorressem. No entanto o Velho Testamento é claro ao interpretar que Deus não permite nada. Ao contrário, Ele é aquele que tudo faz: “Eu faço a paz e crio o mal” (Isaias 45:7), e, em Amós 3:6: “Virá uma calamidade sobre uma cidade sem que o Senhor não tenha disposto”? Alguns teólogos chegam a afirmar que o Deus dos israelitas era, na verdade, apenas temido e não amado. Disse Élifas Levi em sua obra Paradoxos da Sabedoria Oculta: “Adorar temendo é quase o mesmo que odiar, muito embora o medo massacre o ódio. Adorar sem medo; isso sim é amar”.
É na natureza do perdão que uma das principais diferenças do Deus do Antigo Testamento e o Deus do Novo Testamento fica evidenciada. O Deus das velhas escrituras era implacável como podemos constatar quando Moises roga a ele que perdoe seus filhos por terem feito o bezerro de ouro no Sinai. Sua negativa foi taxativa: “Aquele que pecou contra mim, apagarei do meu livro” (Êxodo 32:31-33). Ao dirigir-se aos israelitas após a morte de Moises, Josué reconfirmou o aspecto implacável de Deus, afirmando que o perdão não era parte da sua natureza, dizendo: “Vós não podeis servir ao Senhor, pois ele é um Deus santo, um Deus zeloso que não perdoará vossas rebeliões e vossos pecados (Josué 24:19)”.
No entanto, tais citações, parecem contrárias à ideia de contrição representada pelo Dia da Expiação (Yom Kippur). Tal conceito foi estabelecido nas leis do livro de Levíticos 16, apesar de Deus ter deixado claro que era implacável. Entretanto, o texto da lei é claro: No décimo dia do sétimo mês vocês se humilharão e não poderão realizar trabalho algum... “Pois nesse dia o sacerdote fará a expiação de vós, para que vos purifiqueis e sejais livres de todos os vossos pecados perante o Senhor” (Levítico 16:29-31 e 23:27-28). Apesar de Deus não reconhecer a expiação, foi portanto, declarado neste texto que os sacerdotes perdoariam o povo em nome Dele, caso se arrependesse e fizesse os devidos sacrifícios.
Esse aspecto do judaísmo agradou, e muito, a hierarquia da Igreja Católica, quando ela veio a introduzir o Sacramento da Penitência, comumente conhecido como confissão, onde o perdão dos pecados cometidos após o batismo é garantido pela absolvição dos padres aos que confessarem seus pecados e prometerem se arrepender praticando a penitência imposta. Independentemente da aceitação ou não de Deus, tanto a Expiação quanto a Confissão, concedem grande poder aos sacerdotes. Ao garantir a absolvição e impor penitências, são aceitos como juízes que podem julgar e proferir a sentença.
Diferentemente do Antigo Testamento, há apenas duas citações “E Deus disse...” no Novo Testamento, mais precisamente em Lucas 12:20 e Mateus 22:44. A primeira delas, não como uma declaração direta, e a segunda narra o que Deus disse ao rei Davi. Na realidade, Deus não tem participação no Novo Testamento, exceto por meio dos ensinamentos de Jesus, referindo-se a Ele como o Pai, usando os termos “teu Pai”, “vosso Pai”, “nosso Pai”, e “meu Pai”. Então perguntamo-nos: de onde Jesus, sendo judeu, obteve a ideia de que Deus perdoaria qualquer um, por qualquer coisa, se as escrituras israelitas deixavam claro que Ele era totalmente implacável? Todos os seus ensinamentos apregoavam o ideal do perdão culminando com a oração do Pai nosso: “Perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos aqueles que nos ofenderam”. E destacando ele diz: “Mas, se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará (Mateus 6:15)”.
O principio desse conceito do perdão de Deus aparece no Documento de Damasco, encontrado entre os Manuscritos do Mar Morto dos essênios. A principio o documento afirma:
“Ouçam todos os que conhecem a retidão, e acreditam nas obras de Deus; pois Ele trava uma luta contra a humanidade e condenará todos os que o desprezam... Ouçam meus irmãos, e eu abrirei seus olhos de forma que compreendam a obra de Deus; a fim de que escolham aquilo que lhe apraz e rejeitem aquilo que Ele abomina.”
O texto segue narrando vários incidentes nos quais Deus puniu e perseguiu seu próprio povo nas histórias bíblicas desde o Dilúvio até o cativeiro na Babilônia. No entanto, em contraste às escrituras hebraicas, o texto essênio declara:
“Todavia eles chafurdaram no pecado e na impureza e disseram: ‘Esse é o nosso caminho’. Mas Deus, em seu insondável mistério, perdoou-lhes os pecados e desculpou-lhes as fraquezas”.
O Documento de Damasco afirma que os sacerdotes levitas e sadocitas foram os primeiros homens que Deus perdoou, e que todos os homens retos que vieram depois deles, e de acordo com a aliança que Deus fizera com seus antepassados, seus pecados também deveriam ser perdoados.
Deduzimos que, enquanto a sociedade israelita tradicional criou uma religião fundamentada no temor da ira de Deus, os essênios desenvolveram um ideal fundamentado no amor. Eles admitiram que talvez seus ancestrais tivessem pecado e merecessem todo o sofrimento lhes imposto, no entanto, Deus era todo poderoso e poderia ter dizimado a todos, como fizera com o Dilúvio e não o fez, demonstrando assim seu aspecto misericordioso, permitindo que alguns deles sobrevivessem.
Os essênios alem de determinarem a natureza do perdão Divino e o caminho como alcança-lo, também introduziram o conceito de vida eterna para aqueles que seguissem a lei essenia do Caminho. Escritos como estes devem ter sido conhecidos por Jesus e sua fraternidade, que cresceram em um ambiente nazareno, à parte da rígida estrutura dos sacerdotes de Jerusalém. Tais ideias foram a linha mestra da missão de Jesus que também incorporou os métodos de cura dos terapeutas essênios.
Em oposição aos sacerdotes do Templo, Jesus promoveu o preceito da universalidade de Deus. De acordo com a leis hebraicas, os judeus eram o povo escolhido e seu Deus não estava disponível para outras raças. Com a Judeia sob a ocupação Romana, Jesus entendeu que Roma nunca seria derrotada enquanto doutrinas opostas existissem dentro da própria comunidade judaica. Seu ponto de vista fundamentava-se na lógica de que a nação judaica dividida nunca conseguiria libertar-se enquanto mantivesse uma atitude de separação entre eles e os não judeus.
Ele ambicionava uma sociedade unida e harmoniosa, no entanto frustrou-se ao defrontar-se com judeus inflexíveis que seguiam à risca, rígidos e intolerantes princípios hebraicos que consideravam Deus como propriedade de um único povo. Jesus apresentou o conceito de que Deus fosse compartilhado com os gentios sem que eles se comprometessem com a rigidez do Judaísmo Ortodoxo. Ele utilizou seus conhecimentos de medicina em comunidades consideradas indignas e impuras. Ele não restringiu sua atenção e assistência apenas à sociedade judaica como os fariseus e outros teriam preferido.
Sua religião era o amor, a união e a paz entre as pessoas, e não a ostentação e o sectarismo apregoados pelo incontável número de religiões com seus milhares de adeptos, cada uma avocando para si o monopólio de Seus ensinamentos, julgando-se donos das verdades absolutas, e com isso distorcendo tudo que Ele ensinou. Ele veio ao mundo com a missão de nos ensinar a amar uns aos outros e para isso sacrificou sua própria vida, e não para promover discórdias ou criar religiões.
Ele pregou a justiça, porém sempre temperada com a misericórdia.
Bibliografia:
A Origem de Deus – Laurence Gardner
Bíblia de Estudos NVI