Analisando a lei do karma
Com certeza, é muito difícil falar sobre o sofrimento que experimentamos nesta vida. Ninguém está livre de sofrer e sempre se tentam dar explicações que muitas vezes não convencem. Mas as religiões têm tentado fazê-lo desde tempos imemoriais. O Cristianismo diz que sofremos porque somos herdeiros do pecado, por termos nos afastado de Deus e isso teria trazido o sofrimento, a morte e outras coisas. Segundo o Cristianismo, Cristo morreu por nossos pecados, para restabelecer nossa aliança com Deus e, por isso, temos de carregar nossa cruz.
Bem, também há outras religiões que admitem a reencarnação, como o Hinduísmo e o Budismo, que falam no karma. Karma é uma palavra de origem sânscrita que significa ação. Então, basicamente, a lei do karma é o seguinte: temos de renascer e sofrer, em cada nova existência, os efeitos dos nossos atos. O que fizermos de errado na nossa existência atual seria uma espécie de débitos em nossas contas para com as leis espirituais. O que fizermos de bom seria como um crédito. Pelo karma, à medida que evoluímos, também ganhamos o direito de ter uma vida melhor quando renascemos.
A ideia de karma e reencarnação se popularizou principalmente com o advento da doutrina espírita, fundada por Allan Kardec, nome adotado por Hyppolite Leon Denizard Rivail, educador, tradutor e educador francês nascido em 1804 e falecido em 1869 que era profundo estudioso de fenômenos paranormais e se tornou o codificador do Espiritismo, deixando obras como O livro dos Espíritos, O livro dos Médiuns e O Evangelho segundo o Espiritismo. Embora a ideia de reencarnação e karma já existisse antes do Espiritismo, Kardec a popularizou.
Pela ideia de karma, temos de sofrer para nos aperfeiçoar, reparar o mal que fizemos em vidas anteriores e conseguir nos tornar espíritos evoluídos. Entretanto, se a analisarmos bem, veremos que há muitas coisas que deixam dúvidas. Vamos refletir algumas das questões separadamente:
1- Se tenho que sofrer nesta vida pelo que fiz de errado em outra, então, não seria certo eu lutar por melhoras na minha vida, já que isso impediria que eu pagasse meu karma e me purificasse. Então, não é para salvarmos crianças de pais que as maltratam fisicamente ou abusam delas já que, pela lei do karma, elas teriam que passar por isso, não é? Não seria para uma pessoa pobre tentar subir na vida mas se conformar com a pobreza. E pensando bem, todos os que foram escravos tiveram de sê-lo para reparar o fato de que foram opressores em outra vida? Assim, coisas como ser escravo, apanhar do marido ou sofrer abuso sexual são coisas boas? Todo este sofrimento é necessário?
2- No fundo, a lei do karma é olho por olho, dente por dente. Se uma pessoa me mata ou me faz um grande mal nesta vida e não tenho como fazer justiça nesta existência, o Universo irá garantir que ela sofra um mal na mesma medida. Um livro que transmite bem essa ideia é a psicografia Violetas na janela. Nele, uma mulher que está vivendo numa colônia espiritual diz que tinha sido estuprada e morta para pagar o fato de que tinha sido um mercador de escravas sexuais em outra vida. Assim, é a mesma história de ter que carregar a cruz. Você sofre resignadamente esperando a felicidade na Vida Eterna segundo os católicos e, para os que acreditam em reencarnação, você tem que pagar e se purificar nesta vida para ter uma vida melhor quando renascer. Está vendo? No final, você acaba seguindo a seguinte lei: tenho de ser bom e sofrer para conseguir uma felicidade futura. Assim, mesmo que você tenha que ter pena de quem sofre, você deve acreditar que aquela pessoa merece estar passando por aquilo. Se formos levar isso muito ao pé da letra, não é para tentar socorrer as crianças com fome na África. É o karma delas, não? E veja: muitas pessoas não acham que um assassino deva ser condenado à morte. Assim, não há pessoas com uma consciência mais elevada do que a de quem supostamente estabeleceu as leis kármicas?
3- Se conseguimos uma vida melhor à medida que vamos reencarnando e nos tornando pessoas melhores, então, todas as pessoas ricas seriam as melhores do mundo. E muitas pessoas ricas tem o péssimo caráter. Isso nos levaria a acreditar que todas as crianças morrendo de fome na África têm o mesmo karma. Como tantas pessoas diferentes podem ter um karma similar? E quem nasceu na Noruega ou Suécia nasceu lá porque já é uma alma evoluída? Assim, reflitamos: se temos de acreditar que quem nasceu na Noruega já evoluiu tanto para ganhar o direito de nascer branco, num país rico e desenvolvido onde terá todas as chances de crescer e se realizar, não seria para todas as pessoas que nascem nesses países serem altamente espiritualizadas? E são os países com os maiores percentuais de população ateia. Comecei a questionar isso quando ainda estava frequentando o centro espírita.
4- Se não lembro do que fiz de mal noutra vida, não sei o que estou pagando. Não sei se fui ladrão, assassino, se oprimi outras pessoas, tirei de quem passava fome. É o mesmo que uma pessoa que cometeu um crime perder a memoria e mesmo assim ser condenada. De que servirá para ela se corrigir se ela não lembra que cometeu o crime?
5- O karma só dá início a círculos repetitivos e no fundo tem um lado ruim. Consideremos o seguinte: uma criança é abusada para pagar o que fez de mal na outra vida. Certo. Mas, ao mesmo tempo em que a criança abusada purga o mal que fez, quem abusa dela cria karma ruim para si mesmo. Aí, onde está o livre arbítrio? A pessoa que abusou da criança que tem que pagar seu karma foi destinada àquilo? Alguém necessariamente tem que criar karma ruim para si para eu pagar o meu? Então, quem criou o karma quer ver a humanidade sofrer indefinidamente? Parece justo que uma pessoa tenha que passar por algo que a fará sofrer no futuro para que eu consiga finalmente pagar meus débitos?
6- Uma outra questão a ser levantada é que todos nós, por mais que supostamente sejamos evoluídos, sempre iremos cometer erros. Até mesmo uma pessoa boa que todos acreditam incapaz de um gesto de violência pode, num momento de raiva, cometer um ato extremo, como matar uma pessoa. Houve o caso de um homem que todos acreditavam incapaz de qualquer ato brutal que, num momento de loucura, apontou uma arma para a cabeça do padrasto do seu filho ao descobrir que o mesmo havia abusado da criança durante um ano. Não o fez porque foi impedido. Então, se o tivesse feito, teria criado karma ruim? E teria que pagar em outra vida?
7- Cada vez nascem mais pessoas. De onde vêm tantas almas? Aliás, muitas outras pessoas já observaram esse fenômeno. Como pode haver reencarnação e a população humana ter crescido tanto ao longo do tempo?
8- Vejamos bem a questão dos suicidas. Pela doutrina espírita, eles sofrerão no vale dos suicidas (quem assistiu à novela A viagem deve ter ficado assombrado com as cenas do espírito de Alexandre nesse vale) até chegar o momento de renascer e, ao reencarnarem, terão de sofrer com doenças ou outras coisas. Isso explicaria muitas doenças congênitas. Mas cadê o livre-arbítrio. Quem, em sã consciência, aceitaria nascer com alguma doença por causa de algo que fez contra si mesma quando enfrentava um momento de extremo sofrimento? É justo uma pessoa sofra por ter machucado a si mesma? Qualquer um que tenha um mínimo de compaixão não iria punir uma pessoa por ter tentado suicídio. Essas pessoas precisam de acolhida, de alguém que as compreenda e estenda a mão, não de punição. Seria justo que eu castigasse uma pessoa por ter cortado os pulsos ou ter feito outra coisa contra si mesma? Então, imaginemos um doente terminal com câncer que pede para que lhe apliquem eutanásia. Pelas leis espirituais, ele deveria aguentar o sofrimento em vez de querer abreviá-lo? Sofrer com as dores finais era seu karma? Ele irá sofrer no mundo espiritual e depois em outra vida por não ter aceitado pagar seu karma? Esta é mais uma pergunta para a qual não temos resposta.
Mas, se há livre-arbítrio, uma pessoa não é livre para decidir quando não aguenta mais as dores de uma doença que tem destruído seu corpo? Quanto mais refletimos, mais vemos que há contradições irrespondíveis.
Na Índia, país onde muitos acreditam em reencarnação, pessoas pertencentes a castas inferiores, como os “dalit”, acreditam que devem aceitar resignadamente seu destino e agir bem até para ganharem o direito de, em outra vida, conseguirem nascer pertencendo a uma casta melhor. Então, tem que se suportar o sofrimento para merecer ser feliz no futuro.
Do mesmo jeito, o que os católicos dizem sobre termos que carregar a cruz insinua que não é para lutarmos por nossa felicidade, mas para aceitarmos passivamente as injustiças, esperando uma justiça divina e a felicidade após a morte. Acontece que isso é basear nossas vidas em algo incerto.
A única certeza de que temos é que um dia iremos morrer e não parece errado querer ser feliz durante o tempo de nossa existência. Por que teríamos que sofre passivamente? Se há o livre-arbítrio, por que, então, já nascemos destinados a pagar um determinado karma ou carregar uma cruz?