Será que foi o que tinha de ser?

Se alguém conheceu a história de Jacqueline Saburido, jovem venezuelana que se tornou um símbolo das desgraças que podem acontecer quando se dirige alcoolizado, com certeza deve saber que esta moça morreu este ano, em consequência de um câncer, com a idade precoce de quarenta anos. Antes de morrer, Jacqui Saburido lutou durante praticamente vinte anos contra as limitações físicas resultantes de um terrível acidente sofrido quando tinha apenas vinte anos numa época em que ela estava vivendo nos Estados Unidos. Um motorista alcoolizado, jovem de dezoito anos, bateu em seu carro. As duas amigas de Jacqui morreram no acidente, mas Jacqui, que até então levava a vida normal de uma bonita jovem de vinte anos, estudante universitária cheia de planos e que pretendia casar, ter filhos e trabalhar com seu pai, um empresário, teve seu destino alterado para sempre: a jovem, por alguns segundos que, com certeza, pareceram uma eternidade, foi queimada viva. Levada ao hospital com 60% do corpo queimado, sua sobrevivência era algo improvável. Entretanto, ela sobreviveu, com o corpo e o rosto destruídos pelo horrível acidente. O motorista foi sentenciado a sete anos de prisão.

Jacqui Saburido, uma bela jovem, perdeu os dedos das mãos, o nariz, a pálpebra do olho esquerdo, quase toda a visão e seu pai, corajosamente, deixou os negócios para se dedicar inteiramente à filha, que, além das deformações, ficou com os movimentos limitados. Durante os anos seguintes, Jaqui se tornou um exemplo de superação, fazendo campanhas alertando para os riscos de dirigir alcoolizado, mostrando galhardia diante das limitações físicas e das mais de cem cirurgias plásticas que precisou fazer e dando um exemplo de esperança. Entretanto, nos últimos anos, ela estava lutando contra um câncer e sucumbiu em 20 de abril de 2019, sendo enterrada ao lado de sua mãe. Que podemos dizer do fato dela ter sobrevivido ao acidente? Que sua sobrevivência foi uma misericórdia, um livramento divino? E por que ela teria que sobreviver se passaria os vinte anos seguintes lutando contra as muitas dores e dificuldades proporcionadas por sua nova condição, fruto de uma irresponsabilidade de proporções inimagináveis que ceifou a vida de duas moças, provocou sofrimento às suas famílias e a condenou a uma semivida? Houve um propósito para isso? As pessoas dizem muito que “Deus escreve certo por linhas tortas” e que tudo que passamos é um teste para nossa fé.

Sejamos sinceros: parece justo que tal coisa tenha acontecido a essa jovem que nada fez além de estar no lugar errado em hora imprópria? E, do mesmo jeito que poderia ter sido ela, poderia ter sido outra pessoa que teria sua vida destruída pelo motorista irresponsável. Ele também poderia não ter atingido ninguém, mas ter simplesmente batido contra um poste e morrido. Falar que o acidente dela teve um propósito soa injusto. Ela precisou ter seu rosto e suas chances de ter uma vida normal e feliz destruídos para alertar as pessoas contra dirigir alcoolizado? Também parece insensível agradecermos por estarmos tão bem e nada ter acontecido conosco, não? Porque, se eu agradeço porque não sofri um acidente que me deixou deformada, isso dá espaço para uma reflexão bastante cruel: a de que Deus, possivelmente, escolheu que isso acontecesse com Jacqui Saburido, que era uma pessoa com direito a ser feliz como qualquer outra. E, se ela estava mesmo destinada a morrer jovem por causa do câncer, que pelo menos houvesse tido uma vida normal.

Com certeza, essa reflexão enfurecerá muita gente religiosa. Alguns dirão que Deus não é cruel, apenas não somos capazes de entender os Seus propósitos porque nosso entendimento é limitado ou que isso não foi culpa nem desejo de Deus, mas o resultado de não se saber usar o livre arbítrio. Certo, o motorista que causou o acidente que destruiu a vida de Jacqui usou erradamente seu livre arbítrio, mas ela, com suas amigas, não tinha feito nada de errado. Ela estava usando seu livre arbítrio para viver normalmente sua vida. O argumento do livre arbítrio se mostra falho quando usamos a situação de uma criança que está sendo abusada. O abusador está usando seu livre arbítrio para molestá-la, só que ela, evidentemente, está sendo impedida de usar o seu. E falar que tudo que ocorre tem um propósito também não soa satisfatório. Qual o propósito de tantas pessoas inocentes morrerem em atentados terroristas, bombardeios, tiroteios promovidos por esses loucos que invadem escolas e outros lugares de grande circulação? Houve um propósito para tantas crianças morrerem quando as bombas foram lançadas em Hiroshima e Nagasaki ou para tantas pessoas serem atingidas pelo napalm no Vietnã ou gente morrer nos atentados às torres gêmeas do World Trade Center? Aliás, muitos sobreviventes dos atentados terroristas nunca se recuperaram totalmente da terrível experiência. Muitos morreram de câncer por causa dos agentes químicos liberados na explosão, outros se tornaram alcóolatras, viciaram-se em drogas ou cometeram suicídio. Houve um propósito para terem sobrevivido ao atentado, já que teriam de morrer de qualquer forma? Certamente, haverá quem diga que Deus não os mandou se viciarem em drogas, álcool nem os mandou cometer suicídio ou lhe causou câncer. O que podemos concluir? Não dá para dizer se isso foi plano de Deus, que tenha precisado ocorrer. Aliás, se as desgraças são plano de Deus, por que Ele escolheria que uma moça inocente como Jacqui Saburido teria de sofrer? E por que ela teve de sobreviver para aguentar mais vinte anos numa vida incompleta, dependendo de cuidados intensos para lidar com os movimentos limitados e a dor intensa? Ela devia pensar muito no que sua vida poderia ter sido e não foi. A própria moça disse que reservada todos os dias cinco minutos para chorar.

Não se está dizendo que não se deve admirar a força e o altruísmo de uma pessoa que soube tirar forças da dor para fazer algo bom e alertar as pessoas, só que parece cruel pensar que algo assim tenha precisado acontecer. Não é plausível e, sinceramente, soa muito desumano impor sofrimento assim a alguém. Não podemos realmente concluir nada, pois não dá para tirar nenhuma conclusão usando nossa razão. Só que vemos bem que nenhuma explicação religiosa soará convincente. Talvez não tenha havido uma razão para que Jacqui tenha sido atingida pelo bêbado inconsequente. Foi tudo um infeliz acaso.