As profecias bíblicas
A mais incisiva evidência apresentada pelos cristãos para autenticar a inspiração divina das Escrituras é o cumprimento de profecias.
As profecias recorrem a dois recursos que garantem a sua infalibilidade: vagueza ou simbolismo. Nenhum dos dois recursos requer qualquer tipo de presciência, mas os dois garantem o cumprimento futuro da profecia. Qualquer expectador com o mínimo de senso crítico é capaz de perceber essa estratégia narrativa.
Comecemos pelas vagas. Textos como o de Mateus 24, 1 Timóteo 3:1-9, 2 Pedro 3:3, 4 apenas descrevem comportamentos humanos que já existiam na época em que foram escritos, existiam antes disso, e continuam existindo até hoje. Apresentar algo que é constante na história da humanidade e prever que essas coisas continuarão acontecendo num futuro indefinido é algo que uma pessoa com inteligência mediana é capaz de fazer. Não é necessário nenhum dom profético. Dizer que isso decorre de inspiração divina requer, além da inteligência mediana, certa dose de charlatanismo.
A objeção mais previsível aqui é que o Fim dos Tempos (ou fim do mundo, dependendo da bíblia usada) descrito por Jesus no capítulo citado do Evangelho de Mateus não apenas descreve comportamentos triviais das pessoas (até abertamente triviais quando Jesus diz que o mesmo acontecia nos dias de Noé, no versículo 37), mas também descreve eventos extraordinários envolvendo anjos, ventanias globais e estrelas caindo do céu. Mas o tempo de cumprimento dessa profecia passou e nada disso aconteceu. O versículo 34 deixa claro que tais eventos seriam presenciados por aquela geração ("esta geração" nas palavras de Jesus), da qual não há nenhum remanescente há mais de 1900 anos. Resta aos que ainda esperam seu cumprimento achar que os sinais dados por Jesus, visíveis desde os primórdios da humanidade até hoje, atestam que a parte extraordinária da profecia virá em breve.
As profecias simbólicas estão principalmente nos livros de Daniel e Apocalipse. Ninguém espera que chifres falantes e feras vermelhas heptacéfalas apareçam literalmente para cumprir a profecia, embora isso não seja mais extraordinário que estrelas caindo do céu. Os eventos descritos por Daniel e João são mais pomposos que o filme hollywoodiano de maior orçamento em efeitos especiais. Mas são simbolismos. Simbolismos que convenientemente só são interpretados depois que os eventos tiverem ocorrido. Associar uma coisa que não existe no mundo real dentro de um evento extraordinário a uma coisa do mundo real é muito fácil. Tanto é assim que a identidade dos elementos das visões mudam ao longo dos séculos e de acordo com as tradições religiosas, que são várias.
A principal objeção a essa crítica é que se as profecias fossem explícitas, elas não se cumpririam. Ora, essa objeção não nega a fraqueza de simbolismos proféticos em prever o futuro, ela apenas a justifica. O máximo que se poderia concluir daí é que o profeta sabia do futuro, mas preferiu não o revelar, o que não é convincente. Mesmo levando isso em conta, essa alegação ainda é insustentável.
Em primeiro lugar, ela não é necessariamente verdadeira. Tanto haverá pessoas que não querem o cumprimento da profecia e farão tudo para impedi-la quanto haverá pessoas interessadas em seu cumprimento e que farão de tudo para sua concretização, entre essas até os seus adeptos, que querem um respaldo para sua infalibilidade. Se houvesse uma profecia escrita há milhares de anos dizendo que a Coréia do Norte jogará uma bomba nuclear nos Estados Unidos, Trump faria de tudo para impedir que ela não se cumprisse, ao mesmo tempo que Kim-Jong-Un faria de tudo para cumpri-la. A Bíblia diz em Apocalipse 17:17 que Deus coloca no coração dos povos o desejo de cumprir sua vontade, portanto a vontade das pessoas de consolidar ou de derrubar a profecia poderia ser usada para cumpri-la. Na ficção é uma narrativa relativamente comum aquela em que o personagem tenta evitar o cumprimento de sua profecia e são as próprias ações feitas para evitá-la que incorrem em seu cumprimento. Dois exemplos me vêm à mente: a estória de Édipo Rei, de Sofócles, onde Laio deixou seu filho à morte para que ele não o matasse e se casasse com Jocasta, conforme a profecia. Por ter sido abandonado por seus pais e não os reconhecer, Édipo matou seu pai Laio e se casou com sua mãe Jocasta sem saber de suas relações familiares. O filme Um Faz De Conta Que Acontece, de Adam Sandler, mostra crianças contando histórias extraordinárias que se convertem em histórias reais. Numa dessas histórias, o personagem Skeeter é "incineralizado", e ao ouvir a história se transforma num pirófobo, chegando ao ponto de apagar a vela do bolo de aniversário de seu patrão com um extintor de incêndio, o que o faz ser demitido, em inglês, "fired", de modo que a profecia se cumpre num trocadilho.
Em segundo lugar, profecias explícitas existem na Bíblia, mas convenientemente se cumprem dentro dela mesma. O capítulo 13 do livro de Isaías contém a profecia contra Babilônia, em que o medo Ciro sitiou a cidade, descrevendo em detalhes como foi a invasão da cidade. Essa profecia não apenas se cumpriu no livro de Daniel como também está de acordo com a História secular, muito bem relatada. Se a Bíblia prediz eventos para os nossos dias, por que não cita Estados Unidos e nomes de presidentes nominalmente como fez com Babilônia e Ciro? É quase um atestado de falta de presciência.
E para não deixar a questão em aberto, os manuscritos mais antigos do livro de Isaías datam de mais de 400 anos depois da tomada de Babilônia por Ciro, então não há evidência de que tenham sido escritas antes de seu cumprimento. Alguém apenas inventou um profeta chamado Isaías que viveu no governo de Ezequias e previu a queda de Babilônia. Se hoje em dia alguém inventar um personagem que viveu no século XVIII e previu a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial, ainda há uma remota possibilidade de que num futuro distante alguém ache que esse personagem foi uma pessoa real e tinha poderes proféticos.
Um ponto ainda defensável no capítulo 13 do livro de Isaías está no versículo 20, quando diz que, depois da queda, Babilônia nunca mais seria habitada. É deleite para os defensores das Escrituras constatar que o lugar onde milênios atrás era Babilônia hoje é apenas um monte de ruínas, que Sadam Husseim tentou reerguer e não conseguiu. Se essa é uma profecia que acertou, há outra semelhante que errou, no livro de Ezequiel 26:20, que dá à cidade de Tiro (ainda muito bem habitada no Líbano) uma sina semelhante à de Babilônia. Mas uma profecia errada não anula uma certa. Se a profecia de Isaías acertou pela atual desolação de Babilônia, isso é uma prova irrefutável da presciência bíblica, mesmo que esse seja o único exemplo verificável. O cético precisa, portanto, desintrincheirar essa profecia. E é extremamente fácil mostrar como essa profecia falhou com o mínimo de conhecimento histórico. No versículo 17 é dito que quem foi levantado contra Babilônia foram os medos, o que está correto, mas foi a partir dali que Babilônia se dará a desolação permanente de Babilônia prevista no texto? É o que o texto dá a entender, e isso está simplesmente errado. Babilônia em sua localização geográfica ainda foi habitada por muito tempo depois da tomada pelos medos em 518 a.C. Até a própria Bíblia reconhece isso, em 1 Pedro 5:13 é mostrado que Pedro estava na Babilônia, ou pelo menos tinha passado por lá. E ele não foi lá para visitar ruínas, a menos que fosse um arqueólogo, o que não está entre as muitas atribuições do apóstolo. Pedro estava lá para pregar para os gregos, que habitavam Babilônia como parte do império Selêucida. Babilônia ainda foi habitada como parte do império Persa até o século VII. Sua desolação definitiva se deu com a conquista muçulmana da cidade no ano de 636. E nisso a profecia ainda falhou mais uma vez, pois Isaías 13:20 diz "o árabe não armará ali a sua tenda", sendo que os registros da Batalha de Babilônia mostra que os muçulmanos - que eram árabes - armaram acampamento ao redor da cidade em dezembro de 636. Se a atual falta de habitação em Babilônia for prova do cumprimento da profecia de Isaías, o máximo que se pode dizer é que a profecia se cumpriu com 1154 anos de atraso.
Há ainda outro grupo de profecias a ser considerado: as profecias que se cumpriram em Jesus. O messias esperado pelos judeus, o descendente prometido a Abraão. O cristãos defendem que tal pessoa veio na figura de Jesus. Para que isso fosse verdade, seria necessário que todas as dezenas de profecias sobre o prometido feita desde os patriarcas até os profetas do Antigo Testamento se cumprissem nesse homem nazareno. Algumas dessas profecias são coisas bem triviais, como ter nascido em Belém ou não ter nenhum osso quebrado, coisas que ocorrem a milhões de pessoas. Outras são bastante específicas, como ser traído por 30 moedas de prata ou entrar em Jerusalém montado num jumento. O que torna a história de Jesus extraordinária é que todas as profecias se cumpriram nele, e a chance de isso acontecer com qualquer pessoa é descartável.
Profecias cumpridas num homem seriam praticamente supérfluas para atestar sua procedência divina quando esse mesmo homem curava doenças milagrosamente, regenerava órgãos amputados, expulsava demônios, matava plantas com palavras, acalmava tempestades marítimas, andava sobre as águas e ele mesmo ressuscitou. Mas são alegações extraordinárias que só seriam aceitas por uma pessoa extremamente crédula. As biografias de Jesus registradas nos evangelhos não são críveis, são a epopéia de um profeta religioso, são a trajetória de um deus na Terra, sendo até provável que haja alguma verdade em que se estruturem, mas os detalhes extraordinários e sobrenaturais foram presumivelmente adicionados pelos seguidores daquele homem, numa tentativa de justificar a sua fé. Temos tantos motivos para acreditar que Jesus multiplicava pães quanto para acreditar que a mãe de Buda engravidou ao engolir um elefante branco, ou que as Cataratas do Iguaçu foram formadas pelo contorcionismo de M'Boi ao impedir a fuga do guerreiro Tarobá.
As profecias naturalmente já existiam na tradição judaica, acrescentar seu cumprimento à narrativa é apenas um detalhe na composição dos evangelhos. Por exemplo, Jesus é conhecido como nazareno, mas para ser o Messias, devia nascer em Belém, conforme a profecia de Miquéias, de modo que Lucas justificou a viagem de José e Maria a Belém na ocasião do nascimento de Jesus pelo censo do imperador César Augusto. Mal temos registros não confessionais da vida de Jesus; quase tudo que sabemos sobre ele vem dos evangelhos, de modo que não há base para afirmar que os soldados quebraram as pernas dos homens crucificados com Jesus, mas não as de Jesus, pois já estava morto, sem saber que deixando de fazer isso cumpriam uma profecia, ou se isso é apenas algo que o autor do Evangelho de João acrescentou à narrativa para validar a fé cristã.
O cumprimento de profecias pode realmente parecer um respaldo inabalável para a fé cristã. Mas não sobrevive a muitos questionamentos oriundos do pensamento crítico, que é inimigo do wishful thinking, do viés de confirmação e da dissonância cognitiva, armadilhas mentais que fazem os crédulos sempre acharem uma maneira de validar suas visões de mundo. Depois de lançar sobre as profecias um escrutínio racional, mesmo que não munido de mais do que ceticismo, a única conclusão atingível é aquela proferida pela personagem Lucca, do RPG Chrono Trigger: "profecias são completamente anti-científicas".