DEUS É DISCURSO, SÓ DISCURSO, NADA MAIS QUE DISCURSO

Citar a bíblia é o esporte favorito dos deístas cristãos. Como se o tal livro contivesse as verdades absolutas da história do homem. No entanto, é um livro cheio de contradições, de histórias mal contadas, de palavras bonitas para enganar trouxas, além de ter sido escrito para ser uma espécie de crônica da história dos judeus e, depois, um arremedo de doutrina mal alinhavada e escrita por espertalhões que codificaram o cristianismo, muitos anos depois da suposta morte de seu suposto fundador.

Tudo isso eu já disse algures. Tudo isso todo mundo sabe. Mas todo mundo se faz de surdo, mudo e cego, quando se trata de fé, de crença. Dizem que fé não se discute. Uma forma de não ouvir aquilo que está óbvio à inteligência de qualquer pessoa que possua pelo menos um neurônio em funcionamento: que a crença num deus, em qualquer deus, ou em deuses, em quaisquer deuses, é uma crença absurda que não resiste ao menor teste de coerência e de lógica elementar.

Mas, pergunta-se: como algo tão absurdo tomou de forma tão absoluta a mente do homem, a ponto de não deixar que ele enxergue a verdade mais elementar?

Também já devo ter destilado por aí, junto com o meu veneno contra o deísmo, a minha teoria de como surgiu toda essa baboseira a partir dos sonhos do homem primitivo, que não revia como se vivo estivesse, quando em estado de sonambulismo, o outro que estava inerte, morto. Como não entendia a morte, assim como não entendia a vida, misturavam-se o mundo da realidade e o mundo da imaginação na mente do indivíduo. Daí a pensar, depois, quando a racionalidade (a capacidade de pensar e estabelecer ligações lógicas) começa a surgir, que haveria um mundo dos vivos e um mundo dos mortos. Essa forma de pensar como que grudou no inconsciente do homem e foi transmitido de geração em geração e, mesmo que um pensamento mais lógico e mais racional levasse o homem a um estágio de desenvolvimento que o transforma no homo sapiens, essa "irracionalidade racional" permanece como um legado quase impossível de apagar. Principalmente porque foi exacerbado pela criação da fé, da crença em algo que pudesse explicar o mundo real através do mundo irreal, o que levou o homem a inventar deuses e, depois, a religião, uma estrutura extremamente sofisticada de explorar essa fé e, com isso, auferir prestígio, dinheiro e poder.

A religião foi fundada como um dos mais poderosos exercícios de palavras. Porque a fé depende da palavra e só sobrevive a partir da palavra. Alias, deus é apenas uma metáfora, um exercício de linguagem, poderoso, mas apenas isto: o verbo, nada mais que o verbo. Tanto que os escribas do evangelho de João, no novo testamento, dão eles mesmos a pista de tudo o que é fé, quando, inadvertidamente - ou com um senso de humor negro - iniciam a sua narrativa dizendo; "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus".

Nenhum exegeta da bíblia explica convenientemente esse versículo. Porque é uma das muitas escorregadelas dos que codificaram e elaboraram as histórias da bíblia cristã. Levados eles mesmos pela beleza das palavras, criaram essa pérola que nos dá a pista de tudo o que é realmente a religião: discurso, apenas discurso. Palavras que se repetem como mantras e que, por sua poesia, fixam-se de forma indelével na mente do homem, ajudando a imbuir nele a ideia de que deus é o princípio de tudo, como o próprio versículo parece induzir.

No entanto, se examinarmos todas as histórias da bíblia, veremos que mesmo aquilo que se conta como História, ou seja, que pudesse ser documentado como verdade, aparece sob o manto da metáfora, como se o fato, o acontecido, precisasse não apenas da comprovação história mas, para se tornar realmente verdadeiro, tivesse que se vestir de uma roupagem metafórica, de um discurso poético e envolvente.

Abro a bíblia - como os crentes o fazem - à revelia, numa página qualquer e posto os olhos num versículo. É Samuel 11-4: "E, vindo os mensageiros a Gibeá de Saul, falaram estas palavras aos ouvidos do povo. Então todo o povo levantou a sua voz, e chorou".

Não sei do que se trata - nem me interessa saber. Mas veja-se o tom cerimonioso para informar que alguns mensageiros deram uma notícia qualquer, não a outra pessoa, mas a todo o povo - os ouvidos do povo (o que, por si só já é uma metáfora) - e observe a redundância da metáfora, sob a forma de exagero, ao dizer que o "povo levantou a voz, e chorou". Ou seja, não se individualiza que as pessoas choraram, mas o tom de totalidade absoluta contido da palavra "povo", que se repete, amplia um acontecimento prosaico ao grau de uma possível tragédia.

E é assim em toda a bíblia: o dilúvio (uma enchente ocorrida em algum vilarejo perdido) transforma-se em universal; as cinzas de um vulcão que destrói uma cidade transformam-se em vingança de um deus poderoso etc. etc. etc.

O próprio deus é só um discurso - às vezes doutrinário, outras vezes de grande sabedoria humana, outras ainda ameaçador. Mas sempre discurso. A bíblia toda é uma sucessão infindável de metáforas, de exercício de linguagem, de poesia. Até quando entra no terreno erótico - o que é uma excrescência discursiva interessante - o jogo é sempre jogado com metáforas, com imagens avassaladoras, buscando a poetização que leve o indivíduo a buscar não a realidade pura, mas realidade filtrada por palavras, até que as palavras se tornem a realidade.

Portanto, não há nada de sagrado ou de proibido na religião. Tudo é prestidigitação, tudo são fogos de artifícios linguísticos muito bem articulados, embelezados e repetidos até à exaustão, como são todos os discursos religiosos: deus foi sempre vendido aos gritos, para entorpecer o raciocínio. A hipérbole é a metáfora do exagero. E é ela que pontifica o discurso religioso. Ao lado da reiteração. Exagerar e repetir para entorpecer. Exagerar e repetir até que o conteúdo falso do discurso se apresente como verdadeiro. E deus, então é isto: discurso, somente discurso, nada mais que discurso.

TRAPICHE DO ATEU II

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