Ninguém sabe a verdade
Sabemos muito bem que, para não falar coisas impróprias, devemos analisar bem uma situação antes de fazer julgamentos superficiais e que soam impróprios para explicar o sofrimento e a maldade humana. E muitas pessoas, especialmente as religiosas, ficam dizendo coisas que, analisadas a fundo, revelam-se bastante inconvenientes do tipo: “Ah, foi Deus que quis assim” ou “ isso foi castigo de Deus.” Quando eu analiso essas frases, provando o quanto, além de impróprias, podem ser ridículas, não estou questionando a existência de Deus nem fazendo especulações sobre Ele, dizendo que Ele é um Papai Noel. Aliás, no meu texto, Por que deixei de ser evangélica, deixo bem claro que uma das coisas que me fizeram sair esta religião foi o monte de mensagens ilusórias que O colocavam como alguém que, no tempo certo, iria nos cobrir de bênçãos e mudar nossa vida. E analisar bobagens ditas por religiosos não prova que Deus não existe. Apenas que, independentemente do que acreditamos, precisamos ser sensíveis ao sofrimento das pessoas antes de dizer coisas que, além de não explicarem nada, ainda mostram um Deus cruel, mesquinho, vingativo e indiferente. Também vale salientar que dar diagnósticos sem considerar as circunstâncias de cada caso é bastante errado, porque não podemos esquecer que cada situação tem causas que não podem ser aplicadas a outros casos. Assim, não podemos ir logo generalizando e dando opiniões sem avaliar um caso em suas particularidades.
Num dos meus textos, analisei o que disse o reverendo americano Paul Washer. Ele afirmou, com bastante veemência, que a Aids era castigo de Deus, justificando sua afirmativa com os exemplos do Dilúvio e de Sodoma e Gomorra. Vejamos bem. Dizer que Aids é castigo divino é algo muito sério. Como ele pode afirmar isso com tanta certeza? Ele tem alguma ligação direta com Deus, como Moisés e Abraão? A gente pode dizer que Aids é resultado de uma vida sexual descuidada, mas castigo divino? Deus apareceu para ele dizendo isso? Ou algum anjo lhe fez a revelação? Da mesma forma, perguntemo-nos: Baby do Brasil recebeu algum sinal divino que lhe mostrou que o furacão Katrina foi castigo divino porque a região tem muitos praticantes de vodu? Converter-se a uma religião não torna ninguém mais sábio ou dono da verdade e, mesmo que você acredite em Deus, tome cuidado ao colocar o nome Dele para justificar tudo que acontece, ou você soará arrogante e cruel.
Eu posso dizer que o cigarro causa câncer ou que a Terra é redonda porque outras pessoas o disseram antes de mim e há bases científicas que provam o que eu afirmar, mas não posso dizer algo como: “a África é um continente amaldiçoado por Deus por causa da bruxaria que se pratica lá” ou que “o rock é uma música satânica”. Ademais, quando damos diagnósticos baseando-nos em crenças, sejam religiosas ou não, podemos ser bem preconceituosos. Para reforçar o que se afirma, usemos o exemplo de um professor de História admirador de Hitler e suas teorias eugenistas – já citado por mim na crônica Certas pessoas não deviam ensinar- que afirma que o Brasil é subdesenvolvido por causa da nossa mistura de raças. Esse mesmo professor, ao avaliar a tragédia de Brumadinho, explicou a negligência das autoridades que deviam cuidar da barragem com a seguinte afirmação: “isso é porque para lá iam os piores tipos de pessoas, tudo criminoso, gente gananciosa, querendo enriquecer, já que lá havia muito ouro. Lá, é tudo descendente de ladrão, de desonesto.” Quem é mineiro não deve gostar nada de ouvir isso. Aliás, esse professor deveria saber que, para a Austrália,(país de Primeiro Mundo) a Inglaterra também enviava os criminosos. Será que ele saberia explicar isso?
O problema de muita gente é falar antes de refletir ou conhecer uma situação e, quando vêm nos julgar por analisarmos frases superficiais ditas por gente religiosa, vão logo afirmando que estamos tentando entender Deus através de nosso limitado entendimento humano. Eu não posso entender Deus. Como posso entender algo além do que nossa imaginação, razão e conhecimento possam conceber? O que posso é ver que muitas das tentativas de explicar o mundo colocando o nome de Deus no meio podem ser vazias e sem sentido. E que muitos dos problemas que ocorrem em nossas vidas, se avaliarmos bem, têm explicações bem humanas e lógicas. Todavia, muitos vêm logo colocar comentários arrogantes e vazios na minha escrivaninha, dizendo que meu problema é ver Deus como um Papai Noel e esperar que Ele resolva tudo.
Quando uma senhora disse algo a mim do tipo: “fazemos nossos planos mas Deus tem coisa melhor para a gente”, isso me forçou a analisar. Ela por acaso fala diretamente com Deus para poder dizer isso? Além disso, o argumento dela se provou uma falácia, pois ela acabou com o livre arbítrio, mostrando Deus como alguém que interfere em todos os aspectos de nossa vida pessoal. Foi algo dito para consolar, no entanto soou arrogante e superficial. Muita gente, por causa de suas crenças, acha que pode explicar tudo. Só que a gente nunca deve tentar explicar nada sem antes estudar profundamente o que nos aparece. E que Deus é esse que interfere assim na minha vida e não interfere quando um louco resolve atirar em crianças inocentes numa escola? Vale salientar que, nos Estados Unidos, há muitos cristãos. Então, muitas das crianças que morrem alvejadas são cristãs. Morreram por castigo divino? Entendamos que mostrar tolices ditas por gente religiosa não prova nada acerca da existência ou inexistência de Deus. Prova apenas que nossas crenças não explicam tudo que existe e acontece e que temos de tomar cuidado para não falar coisas superficiais e insensíveis.
Falaram uma vez a uma moça: “quem sabe você ficar solteira não é Deus lhe poupando. Tanto casamento ruim no mundo, tanta gente que tem filhos ruins.” Mais uma frase de consolo que não prova nada. Entre tantas outras mulheres que têm o azar de arrumar péssimos maridos, Deus vai se ocupar dela? Então, é para ela se sentir privilegiada, especial? Se é para Deus poupá-la, então, seria justo exigir que Ele poupasse um monte de crianças inocentes de sofrer abuso sexual, não? Para mim, já disseram: “Não namore essa pessoa, minha filha, ore para Deus lhe mandar o homem certo.” Querer que Deus se dê ao trabalho de me mandar uma pessoa certa em vez de ir namorando e vendo quem é ou não bom para mim não é me achar importante demais? E depois, o certo não é que a gente vá conhecendo as pessoas para adquirir sabedoria e veja com nossos próprios olhos o que nos serve? Não viver a vida para aprender a se defender e esperar que “Deus nos mande a solução no tempo certo” é ficar num estado de permanente infantilização, esperando que Deus resolva tudo para nós como um pai ou mãe que atende a todos os desejos de uma criança mimada.
Uma das coisas que mais me disseram foi para não ir atrás de qualquer emprego, mas ficar fazendo concursos públicos, porque “Deus tinha grandes planos para minha vida” e tinha coisas melhores guardadas para mim, que me daria no tempo certo. Hoje, vejo que isso foi uma grande mentira, algo em que me fizeram acreditar mas que não corresponde à realidade e até me impediu de fazer logo a coisa certa em relação à minha vida. Com tanta gente lutando para arrumar emprego e o nosso país vivendo uma crise que obriga muitas pessoas a arrumarem trabalhos e serviços muito abaixo do seu nível de formação, vou ficar me achando especial e importante, acreditando que Deus vai, como um Papai Noel, mandar um emprego à minha altura embrulhado em fita dourada?
Todo mundo precisa lutar por melhores condições de vida, ninguém pode ficar esperando que Deus mande soluções milagrosas. Pensar assim até transforma o milagre em algo banal, corriqueiro. O Padre Quevedo até salientou em um programa que não podemos dizer que qualquer bobagem é um milagre porque isso significaria que o milagre, então, é uma bobagem.
Entre os motivos mais fortes para ter deixado a religião evangélica está o fato de que eu vi que esses pastores não são diferentes de quem escreve livros de autoajuda. Eles prometem maravilhas, dizem que temos “chuvas de bênçãos” para receber e que, no tempo certo, chegará a “vitória” que nos é reservada. Tudo isso é maravilhoso, mas vazio e irreal. Assim como esses livros de autoajuda pregam besteiras de que basta fazer afirmações positivas ou saber usar a lei da atração que conseguiremos o que queremos, esses pastores – especialmente os do tipo de Edir Macedo – ficam dizendo apenas o que esperamos ouvir e passando um retrato de Deus como o de um grande mágico que resolverá nossos problemas, fará vir um tempo de abundância ou tudo o mais.
A vida mostra que é bem diferente. As coisas boas aparecem nas nossas vidas se nós fizermos com que aconteçam, e as coisas ruins são resultado dos nossos erros, escolhas erradas ou mesmo de fatores que podem estar além do nosso controle, como a crise econômica que nosso país atravessa. E esta crise é fruto de corrupção e descaso, não vontade de Deus. Todos nós estamos sujeitos às desgraças, doenças e a encontrar quem nos faça mal. Por não ter conseguido emprego na minha área, vi-me obrigada a adaptar-me às circunstâncias e vou fazer curso profissionalizante na área de estética para poder trabalhar, porque não quero mais esperar o tempo de passar em concurso ou de aparecer o emprego certo.
Portanto, acho que já dei explicações suficientes que mostram que não estou fazendo especulações sobre Deus nem que espero que Ele seja um mágico que me dará tudo que preciso. Aceitei que, se a vida é dura para todos, não posso esperar que seja mais fácil para mim e que conhecer a verdade da vida nos deixa mais preparados para enfrentar os problemas e até tomar as decisões certas.