EM NOME DO PAI, DO FILHO E…

.

Um dia, trocando mensagens com uma escritora cadastrada no Recanto das Letras a propósito de Paulo de Tarso, expliquei para ela que achei bastante singular o fato de São Paulo ter revelado elementos fundamentais da mensagem de Cristo que não apenas contrastam com a tradição dos Apóstolos da Igreja de Jerusalém, mas entram em contradição com as próprias palavras proferidas por Jesus. Afinal se Deus em pessoa havia inspirado o Filho na escolha de seus seguidores (que ele teve a oportunidade de instruir durante três anos consecutivos) não se entende por qual motivo um perseguidor das primeiras comunidades cristãs –e que jamais conheceu pessoalmente o Mestre- deveria ser titular duma verdade mais profunda daquela que havia sido revelada aos discípulos por Cristo em pessoa. A resposta da escritora foi a seguinte: “Passa pela tua cabeça a existência do Deus Espírito Santo; que atua em espírito na terra, usando as mentes dos homens e mulheres, para desenvolver conhecimento e sabedoria nas pessoas?”. Como lhe devia uma resposta, resolvi escrever mais um artigo onde pretendo expor a minha visão sobre o conceito de Espírito Santo, terceira pessoa da famosa Trindade cristã.

Segundo a tradição, tudo começa com a Ascensão, evento narrado apenas no Evangelho de Lucas (24:51) e nos Atos (1:9-11), que são do mesmo autor. Quanto relatado em Marcos –a partir do versículo 16:9 até o fim- é uma interpolação tardia que não se encontra no Codex Vaticanus e nem no Codex Sinaiticus, ambos da metade do quarto século e que representam os mais antigos manuscritos existentes do Antigo e do Novo Testamento. Em outras palavras, tudo o que nos foi inculcado sobre os acontecimentos post mortem de Jesus foi contado por uma única pessoa (Lucas) que, além de não ser testemunha ocular dos eventos, escrevia sob a indicação de seu mentor (Paulo) que também jamais havia conhecido Cristo pessoalmente. Muitos acreditam ingenuamente que Lucas foi um dos Apóstolos, mas se enganam redondamente pois ele nem sequer era israelita sendo, além de médico, um profundo conhecedor da cultura e da língua grega que encontrou Paulo de Tarso pela primeira vez a Antioquia. Por incrível que pareça, Lucas chega a se contradizer de forma escancarada quando em seu Evangelho afirma que a Ascensão ocorreu no mesmo dia da ressurreição enquanto, nos Atos, declara que a mesma aconteceu quarenta dia depois

Nesses últimos lemos que: “De repente veio do céu um ruído, como que de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. E lhes apareceram umas línguas como que de fogo, que se distribuíam, e sobre cada um deles pousou uma. E todos ficaram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem” (Atos 2:2-4). Essa suposta habilidade de falar outras línguas é chamada de glossolalia cuja definição é a seguinte: “Fenômeno extático no qual um indivíduo emite uma série de sons ou palavras cujo sentido seus ouvintes não podem apreender, senão com o concurso de outra pessoa detentora do dom da interpretação”. Trata-se, basicamente, de palavras sem sentido que, ocasionalmente, podem ser interpretadas como sendo idiomas desconhecidos. Entretanto, não todos acreditaram nesse “milagre” tanto que “outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto.” (Atos 2:13) Pedro, pateticamente, responde: “estes homens não estão embriagados, como vós pensais, visto que é apenas a terceira hora do dia” (Atos 2:15) admitindo, implicitamente, que eles costumavam beber, mas não tão cedo assim. Entretanto, o próprio Paulo de Tarso admite a impossibilidade de entender essa fala pois reconhece que: “Porque o que fala em língua não fala aos homens, mas a Deus; pois ninguém o entende; porque em espírito fala mistérios.” E ainda: “Por isso, o que fala em língua, ore para que a possa interpretar. Porque se eu orar em língua, o meu espírito ora, sim, mas o meu entendimento fica infrutífero.” (1 Cor. 14:2 e 13-14). Até a Conferência Episcopal Italiana (CEI) admite que possa se tratar de “linguagem extática” conhecida pela psiquiatria que a define como “criação de um vocabulário constituído por neologismos e que utiliza uma sintaxe deformada”. Apesar de São Paulo ter profetizado que: “O amor jamais acaba; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão;” (1 Cor. 13:8); esse fenômeno singular continua sendo corriqueiro nas Igrejas Pentecostais.

Voltando ao assunto, observamos que a edição oficial da Bíblia da CEI, em relação ao verbete “Espírito Santo”, se apoia nada menos que no livro do Gênesis, em particular no versículo onde está escrito que: “No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas.” (Gên. 1:1-2). Antes de proceder, seria oportuno sublinhar, pela enésima vez, que o verbo original “bará” não significa criar do nada -tanto que Javé “cria” também Israel, evidentemente não do nada- e todos os dicionários de hebraico alertam o estudioso a não traduzir o verbo “bará” com “criar”, muito menos no sentido de criar do nada. Segue, portanto, que o pilar fundamental de toda a teologia cristã, ou seja a criação do nada, não tem fundamento nas palavras do Gênesis. Além disso, o primeiro versículo da Bíblia fala em águas que não se referem aos mares e aos oceanos sendo que, em seguida, a narração continua assim: “Fez, pois, Deus o firmamento, e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento.” (Gên. 1:7). Exatamente como as antigas culturas do Oriente Médio e do Egito, os Israelitas acreditavam que houvesse águas além das estrelas, as mesmas que em seguida foram utilizadas para o Dilúvio universal.

Quanto ao “espírito” que teria pairado sobre essas águas, os tradutores e os teólogos esqueceram deliberadamente de especificar que a palavra original “ruach” aparece 400 vezes no A.T. tendo vários significados, entre eles: espírito, vento, hálito e respiro. O que pairava sobre as águas nada era se não o hálito, o respiro do Elohim Javé que, tido pelos antigos Hebreus como um ser extremamente poderoso, mas concreto e material, só podia ser uma entidade única e absolutamente indivisível (e, acrescentamos, sem filhos!). Ademais, o conceito de espírito foi desenvolvido muitos séculos depois pelos filósofos gregos e não por um povo de pastores palestinenses que desconheciam até o significado da palavra “geometria”. Do ponto de vista linguístico é importante notar que o vocábulo original “ruach” é feminino, sendo em seguida traduzido em grego com “pneuma” (neutro) e, enfim, em latim com “espiritus” (masculino). A opinião que o Espírito Santo fosse uma figura feminina era comum no Império Bizantino onde foi erguida a famosa basílica Hagia Sophia (Santa Sofia, em português) que significa “Santa Sapiênça”. Para os cristãos Gnósticos Deus, localizado no centro do Universo, não cria mas emana entidades chamadas Éons (faíscas divinas) em pares ativo-passivo (ou masculino-feminino) complementares que, juntos, constituem as Sigízas. Uma delas, a mais importante pela humanidade, teria sido formada por dois Éons: Soter (Cristo, o Salvador) e Sophia (o Espírito Santo, a Noiva de Cristo).

Deixando de lado o problema do sexo do Espírito Santo, sabemos que: “Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, ela se achou ter concebido do Espírito Santo” (Mateus 1:18). Trata-se, por enquanto, de uma figura totalmente imaterial mas que, em seguida, irá aparecer tanto como línguas de fogo (Pentecoste) que como pomba imaculada (Batizado de Jesus), animal manso e emblema da paz. Entretanto, o próprio Jesus anuncia a iminente vinda do Paráclito com essas palavras: “Quando vier o Ajudador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que do Pai procede, esse dará testemunho de mim; e também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio” (João 15:26-27). A expressão “que do Pai procede”, aparentemente inofensiva, foi na verdade uma das principais causas do cisma entre as Igrejas de Roma e a de Constantinopla ocorrido no ano 1054. Aconteceu que, tanto no Credo promulgado no Primeiro Concílio de Niceia (325) como naquele redigido pelo Concílio de Constantinopla (381), o cristão tinha a obrigação de acreditar no Espírito Santo que “procede do Pai”, dogma ainda aceito tanto pelos Ortodoxos (Gregos e Russos) como pelos católicos Orientais (Coptos, Maronitas, Armênios, etc.). O problema surgiu quando o Sínodo de Toledo (447), acatando uma dica de papa Leão I, modificou ligeiramente o texto escrevendo que o Espírito Santo “procede do Pai e do Filho” (Filioque, em latim). Essa alteração, inaceitável pelos cristãos do Oriente que o consideravam quase uma negação do monoteismo, foi abolida no ano 809, mas logo reintroduzida no ano 1014 com o resultado que, em 1054, o papa Leão IX e o patriarca de Constantinopla Miguel I acabaram se excomungando reciprocamente. De nada adiantou a recente tentativa do então cardeal Joseph Ratzinger (futuro papa Bento XVI) de aplanar a disputa publicando uma Declaração oficial (06/08/2000) onde aparece o Credo em latim sem a palavra “Filioque”: a divisão entre as duas Igrejas, ocorrida quase mil anos atrás, continua permanecendo por insignificantes motivos ideológicos dos quais nem o Vaticano se importa mais.

Até agora falamos na terceira pessoa da Trindade, mas a segunda? Embora os modernos cristãos acreditem que Jesus foi logo reconhecido e venerado como Filho de Deus e Deus ele mesmo, mais uma vez demonstram desconhecer os fundamentos históricos da teologia. Para os seus discípulos e para os seus familiares, Cristo era visto apenas como um ser humano, um homem abençoado por Javé, o profeta anunciado por Moisés, o “servo” de Deus, um Messias, mas unicamente no sentido original da palavra, que quer dizer “ungido”, guia político e espiritual do povo israelita. Nada mais do que isso. Essa análise é confirmada pelo mais antigo dos Evangelhos, o de Marcos, no qual Jesus é sempre apresentado como sendo um homem ciente da enorme diferença entre ele e Deus. Lemos, por exemplo, que “E não podia fazer ali nenhum milagre” (Marcos 6:5) mostrando, destarte, de não ser onipotente. Quanto ao fim dos tempos, o Mestre afirma que “Quanto, porém, ao dia e à hora, ninguém sabe, nem os anjos no céu nem o Filho, senão o Pai” (Marcos 13:32) significando que ele não era onisciente e nem infinitamente “bom” como se convêm a um deus: “Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? ninguém é bom, senão um que é Deus” (Marcos 10:18). Por sinal, sempre em relação ao Juízo final, Cristo promete que “Em verdade vos digo que não passará esta geração, até que todas essas coisas aconteçam” (Marcos 10:30). Durante vários anos a parúsia foi tida como iminente, sendo também reforçada pelas palavras de Pedro: “Mas já está próximo o fim de todas as coisas” (1 Pedro 4:7) e “Pois ainda em bem pouco tempo aquele que há de vir virá, e não tardará” (Hebreus 10:37) e de Tiago “Eis que o juiz está à porta” (Tiago 5:9). Mas como Jesus não voltou, a Igreja teve que inventar mirabolantes elucubrações teológicas para adiar a parúsia até um tempo indefinidamente distante.

Retornando ao tema principal, já nos evangelhos de Mateus e de Lucas Jesus começa a ser apresentado como um ser quase divino e essa metamorfose chega a se completar no evangelho de João que identifica Cristo com o Logos, o Verbo, existente antes da Criação. É evidente que essa definição não passa de poesia metafórica, tanto que esse mesmo evangelista relata, de forma mais prosaica, as palavras do Mestre durante a última ceia: “Se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai; porque o Pai é maior do que eu” (João 14:28). Até São Paulo, primeiro artífice da divinização de Jesus, considerava o Filho subordenado ao Pai e jamais idêntico ao Pai. Paulo de Tarso usa o nome grego “Theos” (Deus) quando se refere ao Pai e o nome “Kyrios” (Senhor) quando fala de Jesus querendo reafirmar que considerava Cristo um ser divino, mas sempre um pouco inferior a Deus. O versículo: “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1 Timóteo 2:5) confirma que para Paulo existe uma clara diferença entre o Pai (Deus-Criador) e o Filho (Senhor-Salvador).

O dogma trinitário das três pessoas foi formulado pela primeira vez pelo apologista Tertuliano (160-220 d.C.), tido como autor do famoso aforismo “credo quia absurdum” cujo significado não é apenas “creio embora seja absurdo”, mas “creio porque é absurdo”, ou seja, a verdadeira fé tem de se opor à razão. Como resultado, a teologia cristã começou a abandonar o percurso da lógica e do bom senso obrigando a Igreja, durante os séculos sucessivos, a inventar –e defender com com os poderes da Inquisição- dogmas cada vez mais fantasmagóricos e irracionais criando, destarte, uma teologia que Jorge Luis Borges definiu “um ramo da literatura fantástica”. Graças à invenção da Trindade, por um lado a nascente Igreja cristã conseguiu incorporar à nova doutrina conceitos que eram muito populares seja entre as classes mais humildes seguidoras do paganismo, seja entre os intelectuais seguidores das ideias contidas no neoplatonismo. O sucesso foi enorme e, em breve tempo, o cristianismo tornou-se a religião dominante no Império Romano. Entretanto, esse percurso acarretou o abandono da simples e genuína fé evangélica de Cristo e dos Apóstolos substituída pela teologia doutrinal embutida de conceitos típicos da filosofia grega (hipóstase, substância, essência, Logos, etc.) que tanto Jesus como os primeiros cristãos teriam considerado absolutamente incompreensível.

Em conclusão, por qual motivo a teologia cristã atesta, com absoluta segurança, a existência da Trindade composta por três pessoas denominadas respectivamente Pai, Filho e Espírito Santo? A Igreja responde que os teólogos da Antiguidade e da Idade Média não podiam ter errado devido terem sido inspirados nada menos que pelo… Espírito Santo! Esse é um perfeito exemplo do que a Lógica qualifica de “petição de princípio”, ou seja, uma retórica falaciosa onde a verdade da conclusão é assumida já pelas premissas. Seria oportuno que as pessoas, antes de acreditarem cegamente em qualquer dogma, refletissem e meditassem sobre as seguintes sábias palavras de Buda: “Acredite não porque alguns manuscritos antigos lhe são mostrados, acredite não porque é o seu credo nacional, acredite não porque isso lhe foi feito acreditar na sua infância, mas raciocine para encontrar a Verdade, e depois de tê-la analisada, se descobrir que fará bem a um ou a todos, acredite, viva conforme ela e ajude os outros a fazer o mesmo.”

BIBLIOGRAFIA

Piergiorgio Odifreddi. Perché non possiamo essere cristiani. TEA, Milão (2007).

Leo Zen. L’Invenzione del Cristianesimo. Feltrinelli (2013).

BibleHub https://biblehub.com/interlinear/

O presente texto se encontra também no meu E-book intitulado: "Viagem ao Centro do Cristianismo" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.