As perguntas que não querem calar - ponto de vista de Marcio Poccioti

Entrevista

1- Se Deus é um só e deve ser seguido por todos e as entidades seguidas por outros povos como os hindus (Vishnu ou Oxum) são demônios e falsos deuses, por que Ele não apareceu logo para todos os povos em vez de, inicialmente, aparecer apenas para os hebreus? Desta forma, ele não impediria que esses povos adorassem os deuses errados? E, sendo Onisciente e Onipotente, aparecer logo para todos não seria fácil? Se Ele quer que todos sejam salvos, por que permitiu que, por séculos, povos que só tiveram o azar de nascer em outros lugares, adorassem seres diabólicos?

RESPOSTA: Sendo deus onipotente, ele poderia fazer tudo o que é logicamente possível, até mesmo convencer todos os habitantes do planeta que ele é mesmo o ser supremo, acima de qualquer coisa (identificado com o deus do cristianismo, judaísmo e islã, por exemplo). Digo, convencer de maneira incontestável, com um simples "estalar de dedos". A disputa entre religiões é prova de que isso não ocorreu. Não consigo produzir uma razão lógica para que deus não se declarasse com clareza e de maneira a não deixar dúvida. As explicações de cada religião não são convincentes em relação ao modo com que deus decidiu se declarar.

2- O que o senhor pensa das famosas aparições de Nossa Senhora – Fátima, Guadalupe, Lourdes – e do fato de só acontecerem em países católicos e da santa só aparecer para pessoas devotas e ignorantes, facilmente manipuláveis?

RESPOSTA: Quando eu me iniciei no cristianismo - igreja evangélica -, logo percebi que entender por que milhões de católicos acreditam nas aparições de Fátima era algo importante. A resposta do pastor foi "O diabo pode fazer muitas coisas..."; o que nos lança a uma nova questão "como pode o diabo ter tanto poder assim". Mas, voltando à pergunta, acredito que não passa de sugestão e "vontade de acreditar" dos fiéis, aliada a uma forte promoção da igreja católica.

3-Como explicar que Deus tenha feito tantas maravilhas, interferindo diretamente no destino e história dos povos no passado, matando os primogênitos do Egito, abrindo o Mar Vermelho e hoje ele não ajuda um desempregado a conseguir um emprego nem interfere diretamente no Oriente Médio?

RESPOSTA: Aqui, as tradições teístas vão recorrer à soberania de Deus. Vão dizer que ele é senhor do tempo e, por ser deus, conhece todas as coisas e também decide o que conceder e quando conceder. O que aponto em meu artigo, como sendo de se admirar, é que não se registrou nenhum milagre nos moldes dos milagres dos evangelhos e da igreja primitiva desde os tempos da igreja primitiva. Nos tempos modernos não há milagres; nada de ressurreições, membros crescendo em crianças que nascem sem pernas ou braços, etc.

Em relação ao Oriente Médio, entra "O problema do mal" que há séculos é a maior objeção à existência de deus (de um deus bondoso, particularmente). Não há explicação convincente, de novo. No caso do cristianismo, se explica pela queda do homem - acontecimento que transformou um mundo perfeito, sem mal, no mundo caído que vemos todos os dias. Ou seja, "não vivemos no mundo que deus planejou para nós". Daí tanto mal e desastres naturais. Dada a imensa quantidade de atrocidades que vemos diariamente e a possibilidade de um ser onipotente poder acabar com elas só com um estalar de dedos e mesmo assim não o fazer, a conclusão que se chega é que ele não existem. Além disso, a doutrina do inferno é incompatível com um ser infinitamente bom: nenhum pecado cometido por seres finitos pode merecer um castigo eterno, qualquer que seja.

4-O senhor não acha contraditório que tenhamos o livre arbítrio e, ao mesmo tempo, Deus tenha planos para nós? As duas ideias não parecem contraditórias?

RESPOSTA: Sim, são contraditórias. Em última análise, se existe um ser onipotente, é impossível que outros seres tenham liberdade completa. A liberdade num mundo com deus pode ser comparada a uma criança brincando num parquinho delimitado por uma cerca. Dentro do parquinho, ela pode se mover como quiser, mas não pode sair do parquinho. Ou seja, não podemos tomar decisões em nossas vidas que entrem em conflito com os planos de Deus. O que o cristianismo fez, foi definir "livre arbítrio" de uma maneira que explicações para a incompatibilidade pudessem ser criadas, como no famoso livro 'Freedom of the Will' de Jonathan Edwards. Assim, a criança poderia escolher livremente se quer brincar no escorregador ou no gira-gira, mas não pode sair do parquinho. Além disso, só o fato de deus conhecer a nossa mente e saber qual a escolha a criança vai fazer já causa problemas para o livre arbítrio. Esse assunto é bem explorado por William Lane Craig em seu livro "The Only Wise God."

5-Como se explica que não haja ruínas de Sodoma e Gomorra, do Templo de Salomão, da Torre de Babel nem registro da passagem dos hebreus pelo Egito?

RESPOSTA: Pela religião é facilmente explicado: tudo foi completamente dizimado, ou por deus, ou por intempéries, ou outros povos. O assunto é bem explorado em livros como "E a bíblia tinha razão" de Werner Keller. As explicações são superficiais demais para serem consideradas científicas ou conclusivas - como no caso do dilúvio, por exemplo, onde o autor tenta mostrar que as perfurações "confirmam" uma camada de solo mole, encharcada, da idade do dilúvio - portanto, que o dilúvio realmente ocorreu.

6-O que o senhor pensa sobre as epístolas de Paulo de Tarso e do que ele diz sobre as mulheres deverem ser submissas e caladas e sobre os “efeminados não herdarem o reino dos céus”?

RESPOSTA: Acredito ser uma forma de tentativa de organização da sociedade para a manutenção do status quo, mas nunca pesquisei com o detalhe suficiente para ter uma opinião completamente formada. Acho que a análise deve ser feita a partir de dois pontos de vista: antropológico/social e econômico. Os motivos podem ser muitos, mas acredito que haja sempre um motivo fundamental: a supremacia da força física masculina para exercer o controle. Noutras sociedades primitivas, como os índios americanos, o controle era matriarcal e passou a ser patriarcal (inclusive na questão das heranças - fator econômico). Recomendo a leitura do livro "A origem da família, da propriedade privada e do Estado" de Friedrich Engels.

Quanto à questão dos efeminados, não me parece que seja algo relacionado com a espiritualidade, ou sexualidade. Eu não vejo o porquê um deus onipotente se sentir tão contrariado, atingido ou incomodado, por homens ou mulheres terem relações homossexuais. Não faz sentido. Outra coisa seria a procriação. Também não acho que poria em risco os planos de deus de povoar a terra. Mesmo porque, significaria que o homossexualismo não seria mais um problema após o planeta alcançar uma grande população e, assim, o homossexualismo deixaria de ser pecado. Portanto, de novo, acredito ser algo relacionado à economia. Geralmente, as sociedades se organizam sobre interesses econômicos, mesmo estando sutilmente disfarçados sob uma narrativa religiosa.

7-Falaram muito para mim que eu receberia um emprego no tempo determinado por Deus, mas reparei que, em países ateus como Noruega e Suécia, ninguém precisa orar e esperar pelo tempo de Deus para conseguir um emprego? O que o senhor pensa sobre isso?

RESPOSTA: Penso que o que te falaram tem o mesmo sentido do "fique tranquila, vai dar tudo certo". São palavras de alento, mas sem fundamento, nem sequer religioso - como alguém pode conhecer a vontade de deus para a sua vida? E se ele não quiser ter dar um emprego? Ou seja, o que dá certeza a essas pessoas para poderem falar assim? Penso que Deus não existe, portanto.

8-Alguns tentam explicar o sofrimento pelo karma? Então, todas as pessoas morrendo de fome na África têm de pagar o mesmo karma? E, em situações como a de Hiroshima e Nagasaki, podemos dizer que todas as pessoas atingidas pela bomba atômica tinham um karma a pagar?

RESPOSTA: Sim, se você se basear no significado de karma, sim. Eu não acredito que haja transcendência, portanto, karma não significa nada. Veja que reencarnações e karma são tentativas de resolver o problema da justiça, ou seja, sofrimentos numa vida podem ser compensados com felicidade numa outra, ou vice-versa. No cristianismo, a compensação vem após a morte, no paraíso.

9-Falam que homossexualidade é uma abominação aos olhos de Deus, um problema espiritual. Mas outras espécies animais apresentam casos de homossexualidade, como golfinhos e leões. Isso provaria que a homossexualidade é natural e não um pecado?

RESPOSTA: Não, não prova. O fato de animais apresentarem comportamentos semelhantes aos que a sociedade chama de homessexualismo, não constitui homessexualismo pois os animais comportam-se assim por instinto. Para eles não faz diferença se é macho ou fêmea, gordo ou magro, alto ou baixo. É claro que várias espécies têm mecanismos para atrair machos ou fêmeas mas, outra vez, não passa de instinto. Com a humanidade é diferente; somos os únicos que escolhem a sexualidade com a consciência, para agir ou reprimir.

10-Falam que Deus não dá uma cruz maior do que a pessoa pode carregar. Mas não parece cruel e sádico deixar alguém sofrer até o limite? E por que tanta gente não aguenta e comete suicídio? Vale salientar que o suicídio tem se tornado um problema de saúde pública, pois os casos só aumentam.

RESPOSTA: Sim, parece sádico. Mesmo quem é religioso não devia acreditar nesse "ditado", pois nunca é possível saber o limite - só deus poderia saber o limite. Assim, a pessoa estaria sempre sofrendo e esperando, podendo ter de esperar para sempre, caso deus não queira resolver o problema. Se ele é deus soberano, essa é uma possibilidade; caso em que a cruz deveria ser carregada para sempre.

Sobre o suicídio, a convenção social é de que é algo necessariamente ruim, mas a filosofia tem visões que concordam e que discordam sobre o assunto. O filósofo ganhador do prêmio Nobel, Albert Camus, coloca a seguinte reflexão logo no início de The Myth of Sisyphus And Other Essays - "O mito de Sísifo e outros ensaios":

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.

Ou seja, o suicídio pode acabar com qualquer sofrimento e, se não há continuidade após a morte, não há mais um ser que possa ser influenciado em qualquer medida por acontecimentos anteriores à sua morte. Não há mais nada. Cada pessoa deve pensar seriamente se deve continuar vivendo ou deve acabar com a vida. Por mais frio que isso possa parecer, é algo que todos nós deveríamos estudar a fundo.

No caso da religião, não é possível estabelecer uma relação de causa e efeito entre "cruz pesada demais" e suicídio, os fatores podem ser complexos demais para estabelecermos uma relação tão simples assim.

Para pensar: viver com Jesus no paraíso após a morte é infinitamente melhor do que viver na Terra. Então porque os cristãos todos não se suicidam? Pelo menos os evangélicos, já que a vida eterna está garantida (e também o perdão aos pecados de ontem e do futuro) pelo sacrifício de Jesus?

11-Se Deus é onisciente, por que resolveu testar Jó, apostando com Satanás? A atitude de Deus nesta parábola não parece mais própria da de uma pessoa irresponsável e insensível? Porém, muitos que são confrontados com essa questão dizem que não podemos contestar Deus. O senhor pensa que essas pessoas não querem admitir que Deus não exista ou talvez exista e não se importa com nosso sofrimento?

RESPOSTA: Sou da opinião de que essas pessoas consideram pecado contestarem deus e "exigirem" uma explicação. Estão satisfeitas em aceitar como sendo um mistério. Veja que a história de Jó nos faz acreditar que a justiça está na compensação em dobro que ele recebeu, mesmo tendo perdido dez filhos num único dia. Deus o compensou com o dobro de tudo que tinha. Como a perda de dez filhos pode ser compensada com qualquer outra coisa que seja? Mesmo que sejam outros dez ou vinte filhos? Veja que toda a justiça é feita em termos do que ele tinha, do que ele perdeu e do que ele voltou a ter.

O livro de Jó existe para convencer os cristãos que sofrer é normal e que precisam perseverar. Deus está vendo tudo e fará justiça um dia. O problema é que se a sua situação ruim não mudar a culpa é que você não tem fé suficiente ou o "tempo de deus" ainda não chegou.

12-O senhor acha que alguém se torna melhor depois que se converte? Muitas pessoas são ateias ou agnósticas e têm bom caráter. Outras, cristãs, têm péssimo caráter. Claro que há cristãos bons. Mas isso não provaria que o caráter independe da crença ou descrença em Deus?

RESPOSTA: De maneira geral, as pessoas se tornam melhores depois que se convertem, mas não existe relação de causalidade entre ser cristão e ter um bom caráter, como você observou. Não é necessário ser cristão para ter bom caráter. Aliás, é praticamente impossível para um cristão viver obedecendo aos preceitos da bíblia, terá de ser hipócrita com relação a algum deles. Ironicamente, a hipocrisia mais aparente está na própria base: conhecer de onde a bíblia vem e porque pode acreditar nela. Quanto a comportamentos do cotidiano, cabe perguntar o que significa "ser melhor". Quais os critérios usados para julgar o que é bom ou ruim? Os próprios princípios cristãos? Obedecer as leis dos homens?

13- Se todos temos de carregar nossa cruz, isso significa que todas as pessoas sofrendo nos países miseráveis da África, no Oriente Médio, na Venezuela e outros países pobres da América Latina precisam sofrer para ser salvas?

RESPOSTA: Ao contrário do que a Igreja Universal quer que as pessoas acreditem, o cristianismo não diz que sem sacrifício não há salvação. Essa é só uma doutrina para justificar que as pessoas tenham de "dar tudo para a igreja". Pelo contrário, a única condição para a salvação é crer em Jesus.

A bíblia diz que "no mundo teremos tribulações", o que pode ser entendido como sendo uma cruz a carregar, mas não diz que para sermos salvos teremos de carregá-la. A bíblia quer instruir as pessoas dizendo que os sofrimentos fazem parte da vida e que precisamos nos acostumar com eles. Aliás, que há mais sofrimentos do que felicidade, de maneira geral.

Sobre esse assunto, eu posso dizer que a vida nos mostra que começamos a sofrer assim que deixamos o útero (o lugar em que todas nossas necessidades são atendidas) - temos de respirar com o próprio pulmão, temos dores, vamos crescendo, ficamos doentes, amamos alguém que não nos ama, nos envolvemos em acidentes de todos os tipos, perdemos alguém que amamos, etc. No meio desses sofrimentos, temos momentos de felicidade que são breves, apesar da sociedade querer nos imputar a noção de que são duradouros e "somos felizes" ao mesmo tempo que quer nos fazer acreditar que o mundo é obrigado a nos fazer felizes de qualquer jeito e que, se não nos sentimos felizes, então estamos fazendo algo errado e precisamos nos esforçar mais.