O DEMÔNIO EXISTE DE VERDADE?

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De acordo com a doutrina cristã, a própria Bíblia atestaria a existência do demônio já no primeiro livro do Antigo Testamento exatamente com estas palavras: “Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo, que o Senhor Deus tinha feito ” (Gên. 3:1). Mas o que justifica a legitimidade da equação “serpente = diabo” que nos foi ensinada durante dois milhares de anos seguidos? Será porque esse animal sabe falar? Se esse foi o motivo, então também a jumenta de Balaão sabia falar “Tornou a jumenta a Balaão: Porventura não sou a tua jumenta, em que cavalgaste toda a tua vida até hoje? Porventura tem sido o meu costume fazer assim para contigo?” (Num. 22:30). Ou será porque a cobra aconselhou Eva a desobedecer ao principal e único mandamento estabelecido pelo Elohim senhor absoluto do jardim do Éden? Outrossim, a atitude de dar maus conselhos, parece ser uma característica peculiar desse réptil já nas literaturas de muito anteriores ao A.T. Afinal é justamente a cobra que causa a inevitabilidade da morte na Epopeia de Gilgamesh, assim como também se observa num mito menor cretense. Se, por outro lado, junto aos Israelitas a serpente tivesse sido considerada a encarnação de um ser inimigo de Javé, o versículo seguinte não teria o menor sentido: “Então disse o Senhor a Moisés: Faze uma serpente de bronze, e põe-na sobre uma haste; e será que todo mordido que olhar para ela viverá.” (Números 21:8). Pois, objetivamente, seria absurdo Deus mandar erigir um monumento comemorando o seu maior arquirrival.

Tudo o que se pode deduzir do versículo Gên. 3:1 é apenas que esse animal é caracterizado por uma boa dose de astúcia e de sabedoria, mas nada a ver com o diabo, figura espiritual do cristianismo, do qual não se fala nem no Gênesis e nem em outros livros do Pentateuco. Inclusive, afinal das contas, a serpente bíblica –apesar de tanta esperteza- não parece ser assim tão enganadora como afirma categoricamente a doutrina cristã. Para o leitor se convencer basta analizar atentamente o diálogo entre os dois protagonistas: “E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? Respondeu a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.” (Gên. 3:1-3). A própria serpende replica a Eva com essas palavras: “Disse a serpente à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal.” (Gê. 3:4-5). É evidente que não existe enganação pois, como sabemos, nem Adão nem Eva morrem, mas são expulsos do jardim. Na verdade, quem mentiu foi Javé quando alertou que, caso os dois tivessem apenas tocado no fruto, teriam morrido na hora, fato que objetivamente não acontece.

Os teólogos cristãos rebatem que a morte do primeiro casal veio em seguida, como consequência do que passou a ser considerado o “pecado original”. Isso implicaria o fato que ambos, antes de serem caçados, eram criaturas imortais. Mas a proposição é impossível, pois o próprio Javé ordena o seguinte: “Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem se tem tornado como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Ora, não suceda que estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente.” (Gên. 3:22) e, para se certificar que os dois não voltem, “pôs ao oriente do jardim do Éden os querubins, e uma espada flamejante que se volvia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida.” (Gên. 3:24). Esses dois últimos versículos comprovam que nem Adão nem Eva gozavam da imortalidade e que Javé resolveu se precaver para que essa possibilidade não viesse a se concretizar se, por ventura, os dois tivessem se apossado também dos frutos da árvore da vida. Outrossim, aqueles que afirmam que quem tentou enganar a Eva não podia ser um simples animal, com base no mesmo raciocínio, terão que admitir a impossibilidade dum fruto possuir a propriedade intrínseca de dar o conhecimento do bem e do mal (e, muito menos, a imortalidade!), pois somente Deus em pessoa tem essa prerrogativa.

Mesmo assim os Cristãos insistem em sua tese necessária para justificar e sustentar o mito da ação salvífica do “Filho de Deus” cujo sacrifício, sem a existência de um “pecado original”, teria sido totalmente inútil. Quanto ao nome próprio Satã, ele aparece uma única vez no A.T. quando “Então Satanás se levantou contra Israel, e incitou Davi a numerar Israel” (1 Crôn. 21:1), mas é fácil demonstrar que se trata de uma grosseira interpolação de época cristã sendo que esse versículo contradiz completamente outro passo da Bíblia onde está escrito: “A ira do Senhor tornou a acender-se contra Israel, e o Senhor incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, numera a Israel e a Judá.” (2 Sam. 24:1). Inclusive, o nome satã (em hebraico, onde não há as vogais, se escreve stn) não possui nenhum atributo específico de ser demoníaco, mas significa simplesmente “acusador” como pode ser deduzido lendo esse trecho: “Ele me mostrou o sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do anjo do Senhor, e Satanás estava à sua mão direita, para se lhe opor. Mas o anjo do Senhor disse a Satanás: Que o Senhor te repreenda, ó Satanás; sim, o Senhor, que escolheu Jerusalém, te repreenda!” (Zacarias 3:1-2). Embora nas traduções da Bíblia o nome tenha a letra inicial “S” maiúscula, como se fosse nome de pessoa, na verdade trata-se de nome comum, sendo precedido pelo determinativo; portanto a tradução correta seria mesmo “acusador” que nada tem a ver com aquela figura espiritual conhecida como Diabo!

Na tradição hebraica aparecem muitos outros oponentes de Javé como, por exemplo, Astarte, Belfagor, Belzebu, Belial, Asmodeus, Moloch, Quemós, etc. que nada são se não os nomes dos outros Elhoim (plural de El) que lutam pela posse da Palestina e do Oriente Médio. Não há nada de espiritual, nada de trascendental na guerra travada entre Javé e os outros Elohim que, embora possantes e vingativos, não são criaturas imortais, mas poderosos generais liderando as suas tropas. Muitas vezes Javé ordena o “herem” que significa “destruição total” não apenas das cidades, mas também de todos seus habitantes: homens, mulheres, velhos e até crianças. Ocasionalmente são poupadas as mulheres virgens, a partir dos três anos de idade, para finalidades que o leitor pode facilmente imaginar. É óbvio que a arma mais importante do Elohim Javé não é o amor, mas o terror. Como, do ponto de vista prático, para os Israelitas –que não acreditavam numa vida no além- o que mais importava era ter um líder supremo que os ajudasse a conquistar e povoar um território, frequentemente buscavam outro chefe que, talvez, oferecesse mais vantagens e isso suscitava a ira de Javé que os punia de forma implacável. No A.T. jamais se fala em “salvação” e Javé não se importa com “pecados originais”, nem promete redenções ou futuras ressurreições. Cada sua palavra serve para incitar à próxima batalha, para direcionar a luta, para exterminar o maior número possível de inimigos e não é por nada que é frequentemente apelidado de “Senhor dos Exércitos” (Salmos 24:10).

Vamos enfim considerar o nome que simboliza o mal por antonomásia: Lúcifer, o mais medonho de todos, o príncipe dos demônios que Dante, na Divina Comédia, põe bem no fundo do Inferno onde dilacera e devora eternamente os piores dos traidores: os dos benfeitores, ou seja, Bruto e Cássio (que assassinaram Júlio César) e Judas, que traiu Cristo. Etimologicamente o nome Lúcifer (em grego Phosphoros) significa “portador de luz” e era usado para designar o planeta Vênus, que é o objeto mais luminoso no céu, a “estrela da manhã”. Na Bíblia, tanto no A.T. como no N.T. o nome Lúcifer significa apenas Vênus ou até indica Jesus Cristo, como poder ser constatado no versículo seguinte: “Et habemus firmiorem propheticum sermonem: cui benefacitis attendentes quasi lucernæ lucenti in caliginoso donec dies elucescat, et Lucifer oriatur in cordibus vestris.” (2 Pedro 1:19) cujo significado é: “E temos, mui firme, a palavra dos profetas, à qual bem fazeis em estar atentos, como uma luz que alumia em lugar escuro, até que o dia esclareça, e a estrela da alva [Cristo] apareça em vossos corações” ou nesse outro “Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas a favor das igrejas. Eu sou a raiz e a geração de Davi, a resplandecente estrela da manhã.” (Apoc. 22:16). Como se pode ver, as traduções modernas evitam de usar o nome Lúcifer para designar Jesus, no entanto fazem com que o nome “Estrela da alva” seja interpretado como o do Príncipe das Trevas nesse passo do A.T. “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao Seol, ao mais profundo do abismo.” (Isaías 14:12-15). O fato é que o profeta não fala no demônio e sim no rei Nabucodonosor que, após ter arrasado Jerusalém, leva os Judeus a Babilônia como prisioneiros. Trata-se duma distorção em óbvia má fé, mas que agora está bem consolidada na mitologia cristã, corroborada pela profecia de Ezequiel (28) sobre a queda do rei de Tiro, usada com o mesma desonestidade intelectual.

Realmente, nos primeiros séculos da Igreja, o nome Lúcifer foi considerado um título de Cristo como, por exemplo, no ino Carmen aurorae, ou como nome oportuno para crianças cristãs. Existe até um santo com esse nome, Lúcifer Calaritano, bispo da cidade italiana de Cagliari (na Sardenha) que viveu no III século. Mas, voltando ao demônio de modo geral, ocorre sublinhar que quando se fala nele no N.T. é sempre de forma simbólica assim como a moderna locução “Fulano é um diabo!” significa apenas uma metáfora e não se refere a um ser espiritual antitético a Deus encarnação do mal absoluto. Essa interpretação é comprovada pelo fato que, além da total ausência de endemoninhados em todo o A.T., no N.T. não existem pessoas possuídas pelo diabo, mas apenas pelos demônios que eram figuras populares e retóricas, usadas pelos evangelistas no intento de representar doutrinas que, recebidas voluntariamente pelos homens, os tornavam refratários aos ensinamentos de Jesus. Com essas pessoas Cristo nunca pratica exorcismos, mas os liberta com apenas o poder da sua palavra “E todos se maravilharam a ponto de perguntarem entre si, dizendo: Que é isto? Uma nova doutrina com autoridade! Pois ele ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem!” (Marcos 1:27).

“É, portanto, bastante esquisito –observa o teólogo Pe. Alberto Maggi atual Diretor do Centro de estudos bíblicos de Montefano- ver como a figura do diabo, irrelevante nas Escrituras, assumiu ao longo do tempo dimensões exageradas na vida dos crentes, a tal ponto que muitos cristãos parecem acreditar mais na onipresença do tentador que na do Salvador. Os cristãos fizeram muito mais danos e continuam prejudicando com sua obsessão com o demônio do que aqueles que negam a sua existência. Basta pensam no massacre de dezenas de milhares de mulheres torturadas e queimadas vivas por terem sido consideradas culpadas de comércio carnal com o diabo enquanto, atualmente, temos inúmeras mulheres vítimas de exorcistas autointitulados que, sob o pretexto de libertá-los do diabo, as submetem a todas as formas de violência psíquica e física.”

Se chegamos a esse ponto, se os cristãos mantiveram seus olhos fechados durante quase mil anos, a responsabilidade é exclusivamente da Igreja que foi sempre ferrenha inimiga da verdadeira cultura, até daquela religiosa, tanto que o Concílio de Toulouse de 1229, além de criar a Inquisição, proibiu que os leigos possuissem cópias da Bíblia. Para maior segurança, o sucessivo Concílio de Tarragona de 1234 ordenou que todas as Bíblias escritas em vulgar fossem queimadas. A prova que o obscurantismo cultuar sempre representou o alicerce indispensável para o poder da Igreja católica é confirmado pelas palavras de papa Pio IX (1792-1878) o qual chegou a afirmar que a instrução obrigatória devia ser considerada uma “verdadeira tragédia”. Foi portanto nesse contexto de ignorância e superstição que a figura do demônio teve como se desenvolver plantando a semente do terror entre milhões de cristãos muitos dos quais continuam acreditando nele em detrimento da mensagem de esperança contida nas palavras de Jesus.

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Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 08/01/2019
Reeditado em 01/12/2019
Código do texto: T6546155
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