O que significa não estarmos mais "debaixo da lei"?

Esse artigo foi motivado pela leitura de um texto sobre esse tema do blog "Reação Adventista" [1]. Ele começa levantando um problema importante: O apóstolo Paulo é muitas vezes visto pelas pessoas como alguém que se opôs à Lei. Parte disso é pela ênfase dele na graça contra pessoas que queriam se justificar através da Lei, ensinando que ela não podia salvar ou santificar qualquer pessoa, de modo que nós não estamos mais debaixo dela. A implicação que muitos cristãos fazem disso é descartar totalmente a Lei. Entretanto, como Caldas aponta, o mesmo Paulo cita alguns mandamentos da Lei como normativos para os cristãos, dando assim autoridade não só aos mandamentos citados, mas à sua fonte. O que significa, então, que nós não estamos mais debaixo da lei?

Creio que, nas palavras de Kaiser[2], as partes da lei de Deus que tratam das cerimônias e rituais foram cumpridas e abolidas com a morte e expiação de Jesus. Todavia, a ética revelada no Antigo Testamento permanece. Em hipótese alguma a Lei deve ser usada como meio de acesso à vida eterna, mas ela é importante. Devemos ler a ênfase de Paulo na graça tendo em perspectiva também a preocupação de Tiago, que alerta os cristãos a não se envolverem com o mundanismo e negligenciar a lei de Deus.

A FUNÇÃO DA LEI

O ponto de partida de Caldas, que tomarei também em meu texto, é o propósito da Lei na teologia paulina. Em Romanos 7, lemos que a Lei tem domínio sobre uma pessoa por toda a vida, mas em Cristo nós morremos para a lei, de modo que ela já não tem domínio sobre nós. Não porque a Lei fosse ruim, mas ela serve para nos mostrar o nosso pecado. Quando ele vivia sem lei (provavelmente quando era pequeno demais para compreender as sagradas letras), estava vivo; mas quando veio a Lei, ela trouxe o pecado, então ele morreu. O mandamento que era para ser para a vida, acabou trazendo a morte; a lei é santa e o mandamento, santo, justo e bom, mas nós somos pecadores, de modo que a lei serviu para nos matar. Nossa natureza é pecaminosa, mas precisava da Lei para manifestar essa maldade. Qual era a intenção de Deus com tudo isso?

Em Gálatas 3, Paulo chama os gálatas de insensatos, pois estavam trocando a pregação da fé pelas obras da lei, ou seja, eles haviam começado a caminhada cristã pelo poder do Espírito Santo, e agora queriam continuá-la pelas suas próprias forças. Esse é um uso errado da lei, torná-la um substituto da fé, uma maneira de ganhar seu caminho para o céu através da sua própria capacidade de cumprir mandamentos. Paulo cita Abraão (v.6), uma das mais importantes figuras do judaísmo, como exemplo de alguém que se relacionou com Deus através da fé, e não através das obras. Por isso, os verdadeiros filhos de Abraão são aqueles que crêem no Deus de Abraão. Aqueles que tentam se aproximar de Deus através de suas próprias boas obras é que estão debaixo da lei, de modo que estão debaixo de maldição (v.10). Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (v.13), por isso os cristãos não estão debaixo da lei dessa maneira. Ao invés de maldição, nós recebemos todas as bençãos da lei através da obediência Dele.

No versículo 15, Paulo afirma que ainda que uma aliança seja meramente humana, uma vez ratificada, ninguém a revoga ou lhe acrescenta coisa alguma. Portanto, quando dizemos que não estamos debaixo da lei, isso não significa que Deus simplesmente quebrou suas promessas, mas que, em última instância, a promessa de Deus a Abraão visava um descendente específico, Jesus Cristo. Nós, que estamos em Cristo, estamos nessa promessa. A lei, que veio depois, não pôde aboli-la. Para que servia a lei, então? "Foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem se fez a promessa" (19). Ela não foi entregue para dar vida aos homens, mas para apontar para Cristo, a verdadeira vida (Jo 14.6). A lei serviu como um tipo de tutor para conduzir os homens a Cristo e levá-los a ser salvos pela fé Nele. Mas, agora que Cristo veio em carne, "já não permanecemos subordinados" (25) ao tutor.

No capítulo 4, Paulo faz uma analogia para explicar isso. Durante o tempo em que o herdeiro é menor, em nada difere de escravo, pois, embora seja senhor de tudo, não exerce domínio sobre nada, estando sob tutores e curadores até ao tempo predeterminado pelo pai. Assim também um judeu, antes de encontrar-se com Cristo, está debaixo da lei. Entretanto, Cristo veio e nos resgatou da lei, para que recebêssemos a adoção de filhos. Estar debaixo da lei é ser um escravo, mas estar em Cristo é ser um filho.

Algo semelhante acontece com os gentios. Quando não conhecíamos a Deus, estávamos escravizados no serviço aos falsos deuses. Agora, porém, conhecendo a Deus, estamos livres. Baseado nisso ele questiona os gálatas: como vocês, sendo gentios, libertos dos falsos deuses, querem voltar à escravidão da lei? No versículo 10, Paulo menciona especificamente a guarda de "dias, e meses, e tempos, e anos" prevista na lei, mas daqui podemos aplicar isso a todo o cerimonial do Antigo Testamento. Guardar essas leis é se colocar debaixo da escravidão. No final do capítulo Paulo tira uma ilustração da própria Torá. Abraão teve dois filhos, um da mulher escrava e outro da livre. O da escrava nasceu segundo a carne; o da livre, mediante a promessa de que ela teria um filho a partir do qual Deus criaria muitas nações. Essas duas mulheres representam duas alianças, a Abraâmica e a Mosaica. A Mosaica é a aliança da escravidão, a Abraâmica é a aliança da promessa. Nós, que estamos em Cristo, somos filhos da promessa, como Isaque.

Desse modo, tanto Gálatas quanto Romanos concordam: A lei era uma forma de informar e lembrar aos homens aquilo que Deus queria moralmente, a fim de que todos fossem condenados, e o que Deus prometia para a solução vindoura e definitiva do problema do pecado. Em outras palavras, "o fim [telos: finalidade, propósito, objetivo] da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê" (Rm 10.4).

A FUNÇÃO TERMINOU

Uma vez que entendemos quais eram a função da lei para Paulo, é possível entender o que ele queria dizer quando afirmava que não estamos mais sob a Lei: isso não significa que a nova aliança aboliu os preceitos morais da antiga, mas que esta já cumpriu sua função de nos conduzir a Cristo, nós não estamos escravizados mais pela lei, ela não tem domínio sobre nós como um tutor tem sob um herdeiro menor de idade. Estarmos livres da lei, nesse sentido, significa que todas as promessas que os santos do Antigo Testamento esperavam são nossas em Cristo (Hb 11.39-40). Fomos comprados por Deus, somos Dele, e devemos nos livrar de todo pecado por conta disso. Devemos obedecer ao nosso Senhor com alegria. As maldições da Lei não têm poder nenhum sobre nossas vidas, nem mesmo a maldição da morte, de modo que já temos vida eterna (Rm 6.22-23).

Agora, o Espírito Santo está em nós para nos santificar. Ele nos livra da lei de Moisés, mas também da lei do pecado e da morte. Ele faz o que a lei não pôde fazer, nos santificar. A nova aliança não é como a antiga, que os judeus anularam pelo seu pecado. A lei foi gravada no nosso coração, na nossa mente, de tal maneira que as coisas básicas nem precisam ser ensinadas para os crentes, pois o próprio Espírito nos ensina (Jeremias 31.31-34).

Caldas afirma que três tipos de pessoas permanecem sob a Lei: os judeus que não acreditaram que Jesus é o Messias; os judeus que acreditaram, mas insistiam em impor a lei cerimonial e as tradições aos gentios; e os gentios que faziam uso legalista, ascético e distorcido da lei. Todos esses, a seu modo, negavam a eficácia do sacrifício de Cristo. Os três grupos são criticados nas epístolas paulinas. O problema, para Paulo, não era seguir a Lei, mas continuar vendo-a com a função de tutora quando Cristo já veio. A lei não justifica, não salva e não santifica. Ela apenas aponta o pecado e a solução, que é Jesus.

Quero enfatizar a questão de que a lei não nos santifica, especialmente a lei cerimonial. Em Gálatas 5, Paulo nos convoca a permanecer na liberdade para a qual Cristo nos libertou, não nos submetendo "de novo, a jugo de escravidão". Aquele que se submete às leis cerimoniais do Antigo Testamento está negando a Cristo. Aqueles que separam dias santos, seguem a dieta judaica ou outros mandamentos abolidos não entenderam ainda a liberdade que temos em Jesus. Estão rejeitando a graça de Deus, estão rejeitando o caminho da salvação que é "pela santificação do Espírito e fé na verdade" (2Ts 2.13).

Na nova aliança, nós nos santificamos pela "esperança da justiça que provém da fé" (Gl 5.5) por meio do Espírito Santo. Essa esperança consiste em uma confiança, não na nossa própria capacidade de vencer o pecado, mas no poder de Deus agindo em nós, para que Deus seja glorificado. Em Cristo, não são as cerimônias que importam, mas a fé que atua por meio do amor. Saber que não estamos mais debaixo da lei não é suficiente, o que importa é a confiança total em Jesus Cristo, é construirmos um relacionamento real com Jesus, o que a tentativa de ser aceito por Ele mediante a obediência à lei impede, segundo Gl 5.4.

Devemos inclusive tomar cuidado com pessoas como essas, que podemos chamar de legalistas, dentro de nossas igrejas. "Um pouco de fermento leveda toda a massa" (v.9). Eles podem contaminar a congregação e convencer os mais fracos a entrarem no mesmo caminho de condenação. Também devemos tomar cuidado com nosso próprio coração, para exterminamos de dentro de nós qualquer menor sentimento de tentar alcançar alguma justiça própria. O legalismo não é santidade, é rebeldia (v.12). Você não é mais santo por seguir restrições antibíblicas, mas rejeita a cruz do Calvário, que nos garante a salvação por meio Cristo fez e não por quão esforçados nós somos em cumprir mandamentos.

Isso não significa, por outro lado, que podemos simplesmente fazer o que tivermos vontade. Você é livre, "porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (v.13-14). A lei aponta para Cristo porque a lei aponta para o amor, ele é a essência da ética bíblica.

Mas, se a nossa natureza é essencialmente má (como a lei tão habilmente demonstra), como nós podemos viver esse amor? Não seguindo nossa própria vontade, mas seguindo a vontade do Espírito que habita em nós: "andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne" (v.16). Se fizermos isso, não estaremos debaixo da lei (v.18). Não precisamos mais da lei para sabermos o que devemos fazer, o Espírito nos guiará. "Ora, as obras da carne são conhecidas" (v.19), mas, por causa da nossa fraqueza, precisamos do Espírito para orientar o nosso coração pelo caminho que devemos seguir. O Espírito substitui a lei na função de apontar o pecado. Ele nos diz o que é certo e errado.

Mas o Espírito, diferente da Lei, não apenas nos guia moralmente, como também produz em nós aquilo que Ele deseja que nós façamos. Ele mata a nossa vontade pecaminosa, e substitui pela fé que atua pelo amor. Se a carne anseia por se alegrar naquilo que Deus odeia, a fé anseia por se alegrar em Jesus Cristo. A ética do Espírito é superior à da lei, mas não contrária, já que contra aquilo que o Espírito produz em nós "não há lei" (v.22-23). Se o Espírito nos conduz ao amor, e a essência da lei é o amor, então, mesmo que aqueles que são guiados pelo Espírito não busquem necessariamente obedecer à lei, eles acabam a cumprindo.

Claramente o apóstolo opõe em Gálatas viver/andar no Espírito e estar debaixo da lei. Aquele que está debaixo da Lei tem orgulho de si mesmo e se sente auto-suficiente diante de Deus e do homem[3], mas o que anda no Espírito é humilde, não busca sua própria glória e é completamente consciência da sua dependência.Portanto, fica claro: a função da lei acabou porque Deus pessoalmente faz aquilo que a lei fazia.

A LEI DE CRISTO

Os cristãos não estão mais debaixo da lei, não no sentido de não terem lei alguma, mas no sentido de estarem sob a lei de Cristo (1Co 9.20-21). Não é exatamente uma lei nova, como vimos, porque a lei de Cristo é, assim como a lei de Moisés, essencialmente amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo. Por isso Caldas diz que a lei de Cristo é a Torá depois que Cristo cumpriu em si mesmo todos os antítipos que apontavam para ele e tirou dela o encargo de ser tutora. Quando recebemos o Espírito Santo e praticamos o amor, alcançamos o propósito da Torá.

Caldas tentou deixar claro que o problema somos nós, os pecadores, e não a Lei de Deus. Está claro que não basta a Lei estar gravada em tábuas de pedras, mas precisa ser escrita em nosso coração pelo Espírito do Deus vivo. Nós somos participantes "de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica" (2Co 3.6). Mas a carne rejeita isso, porque ela quer ser senhora de si, e não servir à vontade de Deus[4]. Portanto, a verdadeira religião não consiste em simplesmente seguir um monte de regras, mas em ser um só espírito com o Senhor (1Co 6.17) e ter a mente de Cristo (1Co 2.16), por meio da qual podemos julgar todas as coisas.

Ora, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de glória, a ponto dos hebreus não poderem fitar a face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que desvanecente, como não será de maior glória o ministério do Espírito! Se o ministério da condenação foi glória, em muito maior proporção será glorioso o ministério da justiça! Se o que se desvanecia teve sua beleza, muito mais beleza tem o que é permanente!

Não podemos desprezar a lei. Ela foi muito importante na infância do povo de Deus, e ainda tem seu valor, pois "toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2Tm 3.16-17). Contudo, "o que, outrora, foi glorificado, neste respeito, já não resplandece, diante da atual sobreexcelente glória" (2Co 3.10).

Dessa forma, o fato de não estarmos debaixo da lei não significa que a lei foi abolida no sentido de que já não tem mais qualquer utilidade para nós. Mas não somos como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos de Israel não percebessem que a glória se desvanecia. O véu foi retirado, pelo Espírito nós podemos ler a antiga aliança e retirar delas coisas boas e úteis. "E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito" (2Co 3.18). Pelo Espírito Santo, nós podemos ver Cristo no Antigo Testamento. Assim, mesmo que sigamos a lei, já não é mais algumas palavras gloriosas que seguimos, mas uma pessoa. Por isso não estamos mais debaixo da lei de Moisés, mas sob a lei de Cristo.

REFERÊNCIAS

[1] CALDAS, Davi. Seguir a Lei não significa estar “debaixo da Lei”. Disponível em: <https://reacaoadventista.com/2018/12/23/seguir-a-lei-nao-significa-estar-debaixo-da-lei/>

[2] KAISER JR, Walter. O Plano da Promessa de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2011.

[3] PIPER, John. Walk by the Spirit! Disponível em: <https://www.desiringgod.org/messages/walk-by-the-spirit>

[4] KYLE, Ted. The Letter Kills, But the Spirit Gives Life. Disponível em: <http://www.disciplemagazine.com/www/articles/166.740>