Até onde podemos usar o argumento do livre arbítrio
“Nenhuma religião é superior à verdade”
Helena P.Blavatsky
É incrível como se usa a figura de Deus conforme aquilo que achamos conveniente. Ora dizemos que tal coisa “foi a vontade de Deus” para nós ou então que temos nosso livre arbítrio e não podemos culpa-Lo quando algo de ruim acontece. Porém, se prestarmos bastante atenção, os dois argumentos não se sustentam. Não há como alguém que nos dá total liberdade fazer planos para nós, fazendo com que certas coisas acontecessem na nossa vida ou atrapalhando nossos sonhos porque, segundo alguns religiosos, essa foi “Sua vontade”. Pais que dão liberdade aos filhos, com certeza, não fazem planos para eles, mas deixam que tenham seus próprios planos. Alguém pode dizer que, muitas vezes, o que queremos não é o que Deus quer, mas acontece que esse tipo de argumento transforma Deus num ser com características humanas, egoísta e opressor, que manipula as pessoas como fantoches. Se a gente não acha certo que um pai obrigue um filho a ser médico ou queira que uma filha fique solteirona para cuidar dele até o dia de sua morte, podemos achar justo um Deus que, de acordo com Sua vontade, frustra os planos de uma pessoa para que se realizem seus supostos planos divinos? Ou Deus faz planos para nós ou então temos total livre arbítrio para decidir nossas vidas. Ou uma coisa ou outra. Não podemos usar argumentos de que foi nosso livre arbítrio ou o “plano de Deus” de acordo com o que achamos conveniente para convencer alguém de que tal coisa foi o melhor para ela.
Falar de livre arbítrio é pisar num terreno bastante escorregadio. Mas é algo que precisa ser refletido, pois precisamos entender uma coisa. A vida é complexa e nada do que acontece tem uma causa única. Também não podemos nos achar detentores de nenhum conhecimento especial que nos dê autoridade para dizer que aquilo foi resultado de uma suposta vontade divina ou fruto do mau uso da nossa liberdade de decisão. Nosso entendimento é limitado. E também se precisa deixar claro que não se pretende dizer que Deus não existe nem desrespeitar nenhuma pessoa que tenha crenças religiosas. Pretende-se expor uma reflexão, deixar claro que talvez as coisas não sejam exatamente como fomos ensinados a acreditar. Quando dizemos que algo é verdade, muitas vezes nós o fazemos baseando-nos em coisas que nos foram ensinadas automaticamente. Do mesmo jeito que alguém pode acreditar que uma tragédia foi da “vontade do Criador” muita gente acreditava que os trovões eram o rugido do deus Thor e que gatos eram bruxas que tinham mudado de forma. Ainda há quem acredite que gatos pretos dão azar e que não se deve passar por baixo de uma escada.
Então, falemos do livre arbítrio. Que podemos entender que seja? A nossa liberdade de decidir, de dizer aonde queremos ir, o que fazer de nossas vidas? Certo. Então, falemos de algo que muita gente diz: “tudo só acontece no tempo de Deus”. Façamo-nos uma pergunta: se Deus interfere no tempo em que tal coisa deve acontecer na minha vida, Ele não está interferindo no meu livre arbítrio? Não está desrespeitando minha liberdade? Na verdade, Ele está agindo como um pai que não deixa a filha sair de casa ou namorar, talvez usando a desculpa já bem batida de que “ela é muito criança para namorar”. Podem dizer que Deus sabe qual o tempo certo de algo acontecer mas, se Ele nos dá o livre arbítrio, não significa que temos liberdade de fazer qualquer coisa e que, se tomarmos a decisão errada, teremos que arcar com as consequências do nosso erro? Uma mãe não pode querer que uma filha se vista de uma determinada forma porque ela acha que ela fica bonita daquele jeito. A filha é uma outra pessoa, com outros gostos. Mesmo que seja um gosto péssimo, a mãe deve respeitar.
Essa história de que tudo é só no tempo de Deus, especialmente para conseguir emprego, começa a parecer sem sentido depois que vemos a realidade de países como Noruega, Suécia e Finlândia, habitados por populações majoritariamente ateias e nos quais ninguém tem de orar e esperar o tempo de Deus para conseguir qualquer emprego. O que dá para concluir? Claro que não se pode dizer que Deus não existe, mas pode-se dizer que não sabemos realmente qual é a verdade e não dá para afirmarmos com certeza que tal coisa é assim porque “Deus quis” ou não soubemos usar nossa liberdade. E temos de avaliar bem a questão do livre arbítrio porque nossas decisões e erros afetam muitas pessoas além de nós. As pessoas que pagam pelos erros dos outros estão sofrendo porque não usaram bem seu livre arbítrio?
Livre arbítrio, isto é, liberdade, existe, mas não é absoluto. Eu sou livre para escolher minha profissão, mas não para dar um tapa na cara de uma pessoa simplesmente porque antipatizo com ela. Minha liberdade, como a de qualquer pessoa, está condicionada por fatores externos como costumes, cultura e condições econômicas e sociais. Eu posso ir à praia de vestido de gala ou andar nua na rua? Não. Sofrerei sanções sociais. Da mesma forma, não podemos dizer que, se não estou conseguindo emprego, é por vontade de Deus ou do meu livre arbítrio. É porque está difícil consegui-lo. Quem nasce numa ditadura tem liberdade? Na Coreia do Norte, não há imprensa nem Internet. Qual o livre arbítrio de meninas submetidas à mutilação genital ou obrigadas a casar antes de chegar à puberdade nesses países muçulmanos e de costumes rudes?
Digamos que uma mulher casa com um homem violento. Talvez ela não soubesse quem ele era. Ela tem filhos com ele, que depois vai oprimi-la e bater nela e nos filhos. Ela foi livre para decidir, claro, mas se ele, durante o namoro, não dava sinais de ser uma pessoa abusiva, é simplista demais falar de livre arbítrio. E onde está o livre arbítrio das crianças que não pediram para nascer? Como vemos, é fácil demais apontar uma causa única para tudo.
Usa-se muito o argumento do livre arbítrio quando se tenta dizer que Deus não interfere nas desgraças do mundo porque Ele não irá desrespeitar nossa liberdade. Isso também soa simplório. Cadê o livre arbítrio da criança abusada por um pedófilo? Não posso usar uma desculpa dessas ao ver o sofrimento de quem não pode se defender, pois não é justo. Qualquer pessoa com o mínimo de compaixão não irá pensar que não pode interferir ao ver um pedófilo abusando de uma criança indefesa. Aliás, não soa justo nem razoável que eu diga que não vou interferir no livre arbítrio de alguém para impedir que algo errado aconteça. Na vida real, é frequente que se tenha de interferir no livre arbítrio de alguém para que haja justiça e se impeça que haja danos. Por que prendemos um serial killer? Para fazer justiça às vítimas e impedir que ele mate outras pessoas. Prendemos um ladrão para que ele não cause prejuízos ao patrimônio dos outros e porque, como ele não respeita as leis, ele com certeza não hesitará em matar alguém para conseguir o que deseja. Sabemos muito bem que muitas pessoas, ao saber que não serão pegas nem punidas, não hesitam em cometer certos atos.
Portanto, que podemos dizer? Não podemos tirar conclusões, mas é necessário que reflitamos, que não usemos velhas desculpas de que foi o que Deus quis ou que sofremos por conta de nosso livre arbítrio. Quantos de nós não estamos sofrendo por coisas que não causamos e que já existiam quando viemos a esse mundo?