ÉTICA E MORAL NA ROMA PAGÃ

.

Antes de entrar no vivo do assunto, é oportuno esclarecer a diferença entre as duas palavras: Ética e Moral. Uma definição de Moral pode ser a seguinte: “Preceitos e regras que governam as ações dos indivíduos, segundo a justiça e a equidade natural”. Quanto à Ética, o dicionário nos fornece a indicação: “Segmento da filosofia que se dedica à análise das razões que ocasionam, alteram ou orientam a maneira de agir do ser humano, geralmente tendo em conta seus valores morais”. Em síntese, a Moral (comportamento regulado pelas leis) é uma condição que se modifica com o passar do tempo e do espaço enquanto a Ética (comportamento tido como correto do ponto de vista filosófico) é o conjunto de valores eternos e imutáveis em sintonia com a Divindade. Se, por exemplo, a decência sempre foi inata em todos os povos do mundo, a forma prática de vivenciá-la, o pudor, depende da época e do lugar. Hoje ninguém se escandaliza (pelo menos no Ocidente) diante de uma moça vestindo uma minissaia mas, cem anos atrás, essa moda teria sido um caso de polícia. Atualmente, a visão que quase todos temos sobre a Moral na Roma pagã é o resultado de séculos de propaganda enganosa e maniqueista. De um lado havia os cristãos: limpos, honestos, pacíficos e democráticos; do outro, os gentios: feios, arrogantes, sórdidos e violentos. Uma literatura de baixo quilate, aliada com uma cinematografia totalmente parcial e ante-histórica, fizeram com que a palavra paganismo se tornasse sinônimo de depravação, principalmente no que diz respeito aos costumes sexuais. O público, assistindo filmes e novelas, aprendeu logo a reconhecer a arquétipo do pagão, quase invariavelmente apresentado como sendo um vilão turvo, falso e covarde ao extremo. Entretanto, a realidade histórica é totalmente diferente dos padrões de Hollywood ou das Redes televisivas do Brasil e, nesse texto, serão apresentadas e explicadas as grandes virtudes éticas e morais da civilização que está à base de todo o moderno mundo ocidental: a de Roma pagã.

No mundo romano a vida sexual das pessoas era sujeita a regras aparentemente contraditórias e estranhas à nossa mentalidade moderna. Se, por um lado, o sexo era tido como uma dádiva dos deuses e, portanto, lícito em quase todas suas formas nos ambientes oportunos (casa, postríbulo, etc.) ninguém podia se beijar em lugares públicos, nem os casais, que estavam até proibidos de manter o mais inocente contato físico, como andar de mãos dadas. No mundo clássico a nudez feminina não era apreciada e as mulheres romanas se ofereciam a seus amantes rigorosamente penteadas e enfeitadas com vários adornos (gargantilhas, braceletes, armilas, tornozeleiras, etc.) enquanto que nas estátuas e nas pinturas havia sempre algum acessório cobrindo, pelo menos, os seios. Somente os deuses e os heróis eram representados nus, ou seja, despidos dos instintos e de todas as formas mentais que podiam cobrir a verdadeira essência divina do ser humano. Por sinal, nas estátuas dos guerreiros e dos atletas o pênis era exageradamente pequeno, quase infantil, a significar a grandeza moral do personagem distante dos prazeres carnais. A própria palavra Eros tem a mesma raiz que a palavra herói, sendo este último aquele que incorporava o amor puro, ou seja, a força que o fazia ascender ao Olimpo depois de ter enfrentado os monstros escondidos nas profundezas da alma humana. Destarte, os deuses romanos e gregos simbolizavam forças cósmicas retratadas em sua beleza absoluta, em equilíbrio e em harmonia com a Natureza. Quando um antigo Romano (um Grego ou um Egípcio) entrava num templo, sempre se deparava com imagens esplendorosas de beleza e triunfo que apontavam o caminho da realização espiritual portadora, por sua vez, de glória, alegria e felicidade. Os Antigos pagãos valorizaram sumamente a justiça, jamais a ignomínia, a traição e o perdão dos malfeitores; eles viveram o reino de Júpiter na terra, sem cultivar em suas mentes a ilusão de que um dia ele iria descer do Olimpo para salvá-los.

O alicerce da cultura romana, desde os tempos mais antigos, foi o respeito dos costumes (mores) dos antepassados. “Mores” é o plural de “mos” de onde deriva a moderna palavra morigerado e representavam as crenças e os ritos cuja função era agregar as várias camadas sociais num só corpo harmônico e funcional. Em época imperial os “mores” adquiriram uma conotação ainda mais profunda de ideal social, virtudes necessárias para a realização do bem coletivo e do próprio Estado visto não como aparelho de domínio e de repressão, mas como expressão da coesão popular. Não é por nada que, nos lábaros, nas moedas, nos edifícios público e nos templos, sempre aparecia o acrônimo S.P.Q.R. (Senatus PopulusQue Romanus) que significa O Senado e o Povo Romano, ainda utilizado como símbolo da moderna cidade de Roma. Na Roma antiga a Lei, emanada pelo poder legislativo do Senado em nome e no interesse do “Populus”, era tida como o princípio ético mais elevado, em oposição ao qual nem mesmo Júpiter, o maior de todos os deuses, podia ir: isto porque Júpiter era a personificação da própria Lei e, por isso, não podia ir contra si mesmo. De forma geral, e com as devidas exceções, o respeito pela Lei era tão incontestável que, apesar de seus fortes sentimentos paternos, uma pública Autoridade não teria hesitado em punir o filho, mesmo quando a punição tivesse sido a pena capital: é o caso do cônsul Tito Mânlio Torquato que baniu seu filho Décimo, acusado de malversação, o qual acabou se suicidando pela vergonha. Pense agora o leitor se um político de hoje teria o mesmo rigor moral do pagão Tito Mânlio ou se os corruptos, quando flagrados, costumam cometer suicídio...

A palavra Mores deriva do grego “Moirai” que, na mitologia grega, eram as três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses, quanto dos seres humanos e, do ponto de vista ético e moral, todos os preceitos dos Antigos Romanos podiam ser sintetizados em cinco virtudes fundamentais: Fides, Majestas, Virtus, Gravitas e, talvez a mais importante, Pietas.

Essa palavra não deve ser confundida com o moderno vocábulo “piedade”. Ela tinha mais os significados de devoção, patriotismo, proteção e respeito pelos deuses, pela Pátria, pelos pais, pelos parentes, pelos subalternos e até pelos escravos. Na começo da época republicana a Pietas se referia à família, à confiança e ao respeito entre os cônjuges, em seguida passou a indicar a relação entre o homem e a divindade, no sentido de dever moral na observância dos ritos (o Cultus) e de respeito aos deuses. Cícero dizia que "a piedade é justiça dirigida aos deuses" e, como tal, requeria a observação cuidadosa dos rituais e a execução adequada de acordo com as prescrições duma tradição milenar; por outro lado, a mesma palavra indicava também a retidão da pessoa. Por esse motivo os cristãos, recusando-se de observar os ritos (mesmo que de maneira puramente formal), eram considerados ímpios e inimigos não apenas dos deuses, mas de toda a humanidade. A prática ritual da Roma antiga colocava o homem diretamente em relação com as forças divinas e o aparato da Pietas se baseava principalmente no respeito pela palavra dada na interação com a divindade. O fiel era forçado a fazer o que havia prometido em troca do que havia pedido e recebido; caso ele não cumprisse com sua palavra o castigo divino iria atingi-lo inexoravelmente. Com esse sistema ritual os cidadãos tiveram que se acostumar a uma correta postura de responsabilidade moral que, com o advento do cristianismo, tornou-se desnecessária. Graças à política de perdão ilimitado obtida em troca de uma confissão, de umas jaculatórias e de uma penitência simbólica, até os meliantes mais depravados se acostumaram a não ter que pagar -pelo menos espiritualmente- por seus erros e crimes.

Ao contrário da moral cristã, que se contentava com a salvação individual do fiel sem se preocupar com a dignidade pessoal e coletiva, a Pietas pagã estimulava o desenvolvimento espiritual do cidadão e a difusão dos mais altos valores éticos do ser humano -aqueles que o sublimavam para a Ascensão Olímpica- para que novas estrelas pudessem se acender na escuridão da noite mental. O filósofo empirista britânico David Hume (1711-1776) sublinhou essa diferença citando o caso do general espartano Brásidas que, por ter sacrificado a sua vida na batalha de Anfípolis (421 a.C.), recebeu a honra excepcional de ser enterrado no interior das muralhas daquela cidade. Narra a lenda que o próprio Brásidas uma vez capturou um rato mas, tendo sido mordido, o soltou dizendo que “Não existe nenhum ser que, mesmo sendo desprezível, tendo a coragem de se defender não possa se salvar”. Com o ocaso da Antiguidade, os heróis pagãos foram substituídos com os santos católicos. Em lugar de Hércules, Teseu, Hector, Rômulo, etc. surgiram Francisco, Domingo, Catarina, Antônio e muitos outros. As portas do Céu, que antes se abriam seletivamente para receber os intrépidos que haviam vencido monstros, derrubado tiranos, defendido a pátria, expulso invasores, debelado epidemias, agora se escancaravam diante daqueles que haviam praticado a penitência, a covardia, a humildade, a vil submissão e a obediência servil. Tudo isso enquanto o mundo precipitava numa nova Era das Trevas, as mesmas que o último hierofante de Elêusis profetizou quando, em 396 d.C., a multidão cristã, cheia de loucura mística, atacou o santuário para destruí-lo e pôr fim àqueles Mistérios clássicos que haviam permitido aos homens de boa vontade de por em prática o aforismo “Conhece a ti mesmo”.

A Fides significava, lealdade, fé, e confiança recíproca entre os cidadãos, mas também verdade, honestidade e a capacidade de confiar na palavra dada, sem contratos escritos ou testemunhas. Da palavra Fides derivou a expressão “Bona Fides” (boa fé) que se tornou um termo legal, um importante princípio jurídico no qual se presume que as pessoas agem com boas intenções na realização dos negócios. No direito romano, a fides era extremamente importante, pois, como em todas as culturas antigas, os contratos verbais eram muito frequentes no cotidiano. Destarte a boa fé permitia transações comerciais feitas com maior confiança. Inclusive a Fides era também fundamental no relacionamento entre os cônjuges: caso a boa fé tivesse sido traída, a pessoa lesada podia apresentar queixa contra a outra que não respeitou a boa fé. É interessante notar que a Fides era representada como uma idosa de cabelos brancos, sendo entendida como mais velha que o próprio Júpiter. Desta maneira pretendia-se transmitir a noção que a palavra dada, o compromisso, eram a base mais antiga e segura da sociedade e da ordem política. Atualmente alguém se arriscaria a acreditar na boa fé dum político, em suas promessas mesmo que proferidas de forma solene diante das câmeras da TV?

A Majestas indicava a dignidade do Estado como representante do povo e, de reflexo, o orgulho patriótico de ser parte desse mesmo povo. Essa virtude, transitando das primeiras instituições republicanas ao império, fez com que o próprio Imperador estivesse investido da mesma majestade dos antigos Pais da Pátria. Daí o crime de lesa majestade, ou seja, crime contra o Estado para aqueles que, por exemplo, deturpavam obras públicas, celebravam festas em dias de luto ou se recusavam a mostrar respeito para com o Imperador ou o Senado; nesse caso as punições podiam ser graves, porque o crime era visto não apenas como ofensa a uma pessoa física, mas como um agravo dirigido a toda a comunidade que os órgãos do governo romano apenas representavam. Para os Cristãos, que –em oposição aos Romanos- se consideravam o “povo eleito”, homenagear a figura do Imperador era tido como ato de apostasia, uma forma pecaminosa de venerar a encarnação do mal absoluto e, consequentemente, inaceitável. Quando núcleos cada vez mais numerosos de Cristãos não apenas se recusaram de jogar uns grãos de incenso sobre os altares dedicados à divindade imperial, mas começaram a comparar o Estado romano à Grande Babilônia, à Grande Meretriz, iniciaram, inevitavelmente, as perseguições que, nunca vou me cansar de repetir, jamais tiveram um caráter religioso (os Romanos foram o povo mais tolerante do mundo!), mas exclusivamente político.

A Virtus vem da palavra latina “vir” que significa virilidade, e era a disposição da alma para o bem, a capacidade de uma pessoa se sobressair em alguma coisa, de realizar um certo ato de maneira ideal, de ser virtuoso como "forma perfeita de ser" vindo a constituir o ideal do verdadeiro homem romano. O poeta Caio Lucílio afirmava que era Virtus saber o que é bom, mau, inútil, vergonhoso ou desonroso. Originalmente, a palavra designava o valor do guerreiro ou do herói durante uma batalha, extendendo-se, em seguida, a outras atividades. A Virtus era tal apenas se não fosse colocada ao serviço de objetivos pessoais, como a busca pelo poder, mas pelo interesse da comunidade romana. A Virtus transmitia-se de pai para filho e os descendentes de homens virtuosos eram moralmente obrigados a seguir os passos de seus pais e provar que eles mesmos tinham Virtus. Então a partir do primeiro século a.C. surgiu a ideia de que essa virtude não era apenas hereditária, mas também um liberto podia obtê-la com seus atos e superar os feitos dos ancestrais. Sucessivamente, para os filósofos estoicos como Sêneca e Epiteto, a Virtus era interpretada como a atitude justa e positiva em relação aos sofrimentos, às doenças e à morte. Era uma ética do dever resumida por Epiteto no famoso lema "suporta e abstenha-te", que não deve ser entendido como um convite para suportar a dor e abster-se dos prazeres, mas para ter a hombridade de acolher serenamente aquilo que o destino nos reserva evitando o inútil envolvimento emocional.

Gravitas não deve ser confundida com a palavra moderna gravidade, mas resume todas as regras de conduta do romano tradicional: respeito pela tradição, seriedade, dignidade, autoridade e autocontrole. Perante as adversidades, um "bom romano” devia permanecer imperturbável, como Caio Múcio Cévola que, ameaçado de tortura pelo rei etrusco Porsena caso não tivesse fornecido informações militares sobre Roma, colocou sua mão direita no fogo com grande Gravitas, de modo que o rei, surpreendido por tanto valor, renunciou à conquista de Roma.

Outro valor importante era o Cultus que consistia na correta execução dos rituais, única forma para satisfazer aos deuses e obter seus favores, pouco importando o real sentimento dos fiéis. Com efeito, os deuses romanos não pediam para serem amados e nem que alguém se sacrificasse para eles. As doações nunca visavam agradá-los de antemão. Somente depois de eventualmente terem recebido uma graça as pessoas agradeciam com epígrafes ou estatuetas especificando que a Divindade havia se comportado bem com o fiel e que, por isso, estava sendo recompensada com o dom de um objeto. O conceito de “bom comportamento de Deus” causaria arrepios entre os adeptos das religiões monoteístas, onde o amor para com Deus é o mesmo do escravo para o seu patrão pois, objetivamente, tudo o que Deus faz (ou se reputa que faça) é bom, até mesmo uma catástrofe ou a morte dum familiar, porque Deus tem o direito de castigar sem motivo, apenas para testar a fé. Para os antigos romanos, quando ocorria uma catástrofe natural, os deuses ficavam tristes, e se uma batalha era perdida, eram culpados outros deuses devendo, no caso, serem multiplicadas as ofertas. De alguma forma o castigo divino estava fora de cogitação. O homem não devia apenas suportar os desastres com resignação, mas intervir e se esforçar para mudar o curso dos eventos. Com o advento do Cristianismo, começaram a prevalecer sentimentos de fatalismo e de passividade total que, juntos, serão entre as causas principais da queda do Império.

Em resumo, a sociedade romana, embora não isenta de vícios, pôde contar com uma classe política composta, em sua grande maioria, de homens virtuosos (Viri) que, incorporando uma ética superior, se dedicaram à administração da realidade social, tendo sempre em mente as necessidades da totalidade dos componentes do Estado: os plebeus, os patrícios, os idosos, os órfãos e até os escravos. Neste processo, a legislação e a construção do direito desempenharam um papel importante, uma vez que a Lei era o denominador comum fundamental que unia as várias culturas conglobadas pelos Romanos. Eles nunca impuseram sua religião oficial e suas tradições, permitindo, pelo contrário, o cultivo daquelas dos inúmeros povos do Império.

Essa foi Roma, uma sociedade que fincava seus profundos alicerces no respeito da Lei e na meritocracia; uma cultura onde o poder público, desdenhando ser mantido pelos cidadãos, não poupava esforços para socorrer as classes mais humildes e garantir, àqueles que haviam conquistado o título de cidadão romano, os direitos que lhe eram devidos. Até quando em Roma continuaram vigorando os antigos valores (os Mores) o Estado conseguiu superar todas as crises políticas, militares e sociais garantindo o constante avanço do bem coletivo. Quando, porém, as virtudes foram substituídas pela nova ideologia religiosa -intolerante e totalizante- o fim não demorou muito para aniquilar o que, por mais de mil anos seguidos, havia sido o mais fantástico Império de todos os tempos.

O presente texto se encontra também no meu E-book intitulado: "Viagem ao Centro do Cristianismo" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 24/06/2018
Reeditado em 08/12/2019
Código do texto: T6372739
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.