É necessário ser cristão?
Os esforços para corromper a cultura indígena por meio da cristianização me levaram a questionar a necessidade de se tornar cristão. A impressão que se tem é de que a cristianização é tão essencial que justifica movimentos que não toleram crenças alheias. Mas será que o cristianismo é realmente necessário? Será que é tão importante converter-se a essa religião relativamente recente? Supondo que aceitássemos como verdadeiros os argumentos a favor da existência de Javé, a afirmação de que Jesus realizou milagres e ressuscitou — o que envolve fantásticas suspensões das leis da física, química e biologia — e que cada trecho da Bíblia foi inspirado pela divindade que ela menciona, teríamos razões suficientes para nos tornarmos cristãos? Vamos refletir brevemente sobre alguns pontos importantes a esse respeito.
O culpado pelo pior cenário não é você
Imagine que eu tenha acesso à mais recente inteligência artificial disponível no mercado e decida criar um mundo habitado por pessoas simuladas. Vale ressaltar que, nessa inteligência artificial, a dor e o sofrimento são simulados de forma extremamente realista. Então, começo, no computador, a esboçar meu projeto de mundo. Nesse esboço, decido quais ações desses humanos serão consideradas boas e quais serão consideradas más. Decido que a recompensa pelas boas ações será a adoração eterna numa dimensão onde a dor estará desativada e a alegria maximizada. Também decido que a punição pelas más ações será a permanência numa sala que chamarei de “sala do fogo”. Dentro dessa sala, a dor e o sofrimento estarão sempre presentes. Por fim, concedo livre-arbítrio a todos.
Antes de criar o mundo, decido rodar um teste para ver como as coisas se desenrolarão dentro desse ambiente regrado que criei. É como se eu tivesse onisciência e pudesse antever o futuro. Ao rodar o teste, descubro que milhões de pessoas irão para a sala do fogo. Constato que muitas irão para a dimensão de adoração, mas fico decepcionado com o grupo que irá para a sala do fogo, pois não quero que ninguém permaneça eternamente em um lugar de sofrimento constante. Então, resolvo fazer alguns ajustes. Decido que a tortura e o derramamento de sangue de uma cópia minha seriam motivos suficientes para perdoar aqueles que iriam para a sala do fogo, desde que aceitassem minha cópia como salvador e seguissem seus preceitos (que refletem os meus) por toda a vida. Então, decido enviar uma cópia minha, em um determinado período da história desses seres, para que essa expurgação ocorra.
Rodo um novo teste desse mundo para ver o que ocorre. Me decepciona ver que, ainda assim, milhões terão que ser enviados, segundo minhas regras, para a sala do fogo. Uma nova análise do problema revela que muitos não se convenceram de que eu existo (eu poderia ter garantido boas razões para isso), outros seguiram crenças e regras diferentes das minhas (é natural do ser humano criar religiões e mitos para explicar o que não entendem e criar esperanças de uma vida melhor), outros tentaram seguir minhas regras, mas falharam, e assim por diante.
Nesse momento, me restam duas opções: usar meu conhecimento avançado para ajustar as regras e suas consequências ou simplesmente abandonar o projeto e não trazer o mundo à existência. Qualquer pessoa com bom senso deve notar que, se eu colocar esse mundo em operação no computador sem mudar as regras e suas consequências, estarei sendo responsável pelo sofrimento de milhões na sala do fogo, pois eu posso impedir esse sofrimento de duas formas: não criando esse projeto de mundo ou mudando a forma como as regras (pecados) e suas consequências (recompensa e punição) funcionam.
Aquele que criou e fez o mundo descrito acima é a base moral e o alvo de adoração de muitos cristãos. Digo "muitos cristãos", pois nem todos acreditam na "sala do fogo". Alguns, ao notarem a maldade descrita aqui, interpretam as escrituras de forma que o inferno é considerado simbólico. No caso dessas vertentes, o preço pago por não seguir os preceitos do criador do mundo é simplesmente desaparecer para sempre. Sobre essa vertente, falarei mais adiante.
Seguir regras ou ser punido sem nunca consentir com o trato
Ao contrário do que muitos pensam e demonstram, para ser cristão não basta apenas dizer que segue Cristo; é preciso agir de acordo com os requisitos bíblicos (ou da igreja) ao longo de toda a vida. Não se trata de uma única lei, mas de várias que devem ser aplicadas todos os dias para que você escape do lago que arde com fogo e enxofre. Isso significa que há uma jornada árdua pela frente, que envolve constante vigilância. Você foi colocado aqui por Javé para abrir mão da forma como gostaria de viver a fim de seguir todas as suas leis, mas ele não se preocupou em saber se você concordava com isso. Alguns certamente perguntarão: "Como ele poderia perguntar se você não existia antes de ser criado?" A resposta está em uma palavra que os cristãos usam quando convém e esquecem quando não convém: onisciência. Deus, sabendo de tudo, sabia que muitas pessoas não consentiriam em viver de acordo com suas leis e com seu sistema binário, mas as criou mesmo assim. Resta a essas pessoas fazer o que não querem por toda a vida (em troca de uma vida eterna, adorando e servindo seu criador mesmo sem o desejar) ou passar a eternidade no inferno. Em outras palavras, sob essa perspectiva, o mundo no qual as pessoas entram à força oferece duas opções: seguir essas regras e viver eternamente servindo o criador do universo ou ignorar essas regras e ir para o inferno. Para uma pessoa que deseja viver eternamente servindo o criador, a primeira opção pode parecer objetivamente boa. Mas para alguém que não deseja o inferno nem uma vida eterna de servidão, essa pessoa vive neste mundo como um escravo das escolhas divinas. A questão é que, sem violar o livre-arbítrio nem nada do tipo, Javé poderia ter criado um mundo moralmente superior ao incluir uma terceira alternativa. Essa terceira alternativa poderia ser não permitir o nascimento daqueles que não consentem com esse sistema binário de punição e recompensa. Faça um experimento mental: qual versão de Javé é moralmente superior, aquela que oferece duas opções às suas criaturas ou aquela que oferece três? Lembre-se de que somente a versão com três opções pode evitar que as pessoas vivam como escravas de uma vontade exterior.
Amarás o teu próximo como a ti mesmo
Esta é a lei que, juntamente com amar Javé acima de tudo, resume todas as outras leis. É, portanto, o pilar fundamental do cristianismo. Mas será que os cristãos ponderam o suficiente sobre essa lei? Um cristão honesto que refletisse minimamente notaria que ela é simplesmente inaplicável! Em Mateus 10:37, Jesus diz que as pessoas devem amá-lo mais do que a seus pais e filhos para serem dignos dele. Qual a similaridade entre essa passagem e o pilar fundamental do cristianismo (amar o próximo como a ti mesmo)? A semelhança está no fato de que o messias entendia o amor de maneira equivocada, pois supunha que as pessoas tinham controle sobre quem amar e com que intensidade. Sabemos, contudo, que sentimentos não são controlados pela vontade nem pela escolha. A lei fundamental de amar o próximo como a ti mesmo também implicaria que um estuprador de crianças merece tanto amor quanto seus pais. É com essa carga emotiva que o cristão vê um estuprador? Definitivamente não!
O cristão que amasse o próximo como a ti mesmo certamente deixaria a porta de casa destrancada quando fosse dormir, pois assim não negaria abrigo e comida àquele a quem ama tanto quanto a si mesmo. O cristão que amasse o próximo como a ti mesmo não poderia dormir em paz enquanto seu próximo — ao menos aqueles que estão ao seu alcance — sofresse de fome, sede e falta de um lar. O cristão que amasse o próximo como a ti mesmo não poderia aceitar que Javé lhe concedesse qualquer vantagem na vida (como um emprego melhor ou a cura de uma doença) enquanto crianças morrem de fome, sede ou estupro. Em suma, o pilar fundamental do cristianismo não só é inaplicável, mas também gera a maior hipocrisia já vista!
Sacrifício de Jesus
É dito que Cristo morreu por nós para lavar nossos pecados, e isso deveria ser razão suficiente para ser cristão. Suponha que você não concorde com as ideias de um determinado filósofo. Suponha agora que esse filósofo faça algo que você considere um sacrifício. Certamente, você se sentiria agradecido, mas passaria a aceitar a ideologia dele? Passaria a viver de acordo com o que ele falou?
A mesma lógica usada anteriormente pode ser aplicada aqui: o suposto sacrifício foi realizado sem o seu consentimento. Alguns podem achar essa última frase absurda ou ingrata, mas quando algo é feito por você com a intenção de cobrar algo futuramente — e nesse caso a cobrança é sua dedicação por toda a vida — é sensato saber, com antecedência, se você consente com aquilo, pois a maneira como conduzirá sua vida (o bem mais importante que você tem) está em jogo. Novamente, a onisciência divina ignora a vontade daquele que não deseja viver de acordo com as regras bíblicas e o coloca em uma situação onde deve escolher entre fazer o que não quer ou ir para o inferno. Isso não parece estar em consonância com a ideia de livre-arbítrio.
De qualquer modo, consideremos os seguintes pontos adicionais: 1 - Jesus se sacrificou sabendo que ressuscitaria, o que elimina o virtuosismo do ato. Compare isso com os três indivíduos que se sacrificaram no incidente de Chernobyl para evitar que a ameaça nuclear se alastrasse: eles o fizeram cientes de que a morte seria definitiva e de que nunca mais participariam da realidade. 2 - Jesus se sacrificou para nos livrar dos erros de Adão e Eva. Mesmo que seja comum na Bíblia punir os filhos pelos pecados dos pais e avós, o bom senso nos diz que não devemos pagar pela falha de outras pessoas. 3 - A regra de sacrifício com sangue para expurgação dos pecados foi criada pelo mesmo Deus que sabia, antes de criar o mundo, que seu filho seria torturado até a morte. Essa tortura só foi necessária devido a essa regra que ele mesmo estabeleceu. Pense nisso.
Crença e punição
A despeito do que se ouve por aí, as pessoas não escolhem no que acreditar. Quem escolheria acreditar em algo doloroso, como a morte de um ente querido, se tivesse controle sobre suas crenças? O que leva alguém a crer que uma pessoa amada morreu vem de fatores externos que a convencem disso e pouco tem a ver com a vontade pessoal. O processo cognitivo que leva alguém a crer é o mesmo que leva alguém a descrer. Se o cérebro foi criado por Javé, o processo de crença e descrença também foi. Em Marcos 16:16 lemos: “Aquele que crer e for batizado será salvo. Todavia, quem não crer será condenado!”. Jesus acredita que crer ou não crer em algo merece punição. Ele ignora que o processo de crença não é uma escolha deliberada, como o ato de matar. Assassinos merecem punição porque fazem a escolha deliberada de matar e sabem que isso causará sofrimento alheio. O sujeito que está convencido de algo, ou seja, que crê em algo, não passa pelo momento em que escolhe, deliberadamente, crer nisso. Eis a grande diferença entre o ato que merece punição e o ato involuntário que não merece. Avaliar o que uma pessoa merece com base no que ela acredita, e não pelo que ela fez em vida, é como avaliar o sabor de uma comida pelo seu peso.
Conclui-se que te torturar no inferno por não acreditar que Javé é real, que Jesus foi mais do que um homem comum, ou que a Bíblia não foi modificada ao bel-prazar dos copistas, seria injusto para um ser minimamente bom e que conhece o funcionamento do cérebro humano.
Não fazer a vontade de Javé conduz ao sofrimento eterno
É perfeitamente aceitável que nenhum pai, minimamente bondoso, torturaria um filho que escolhesse seu próprio caminho em detrimento do caminho sugerido pelo pai (mesmo que o pai tenha certeza de que sua sugestão seja mais saudável). Permitir que o filho escolha como conduzir o que pode ser sua única vida significa respeitar a liberdade que os cristãos chamam de livre-arbítrio. Sendo assim, qualquer ameaça de punição eterna induz a crer em um Deus maligno, pois esse Deus daria o direito à escolha, mas puniria com sofrimento eterno quem fizesse uso desse direito. Impressiona a capacidade de aceitar, como parte de uma decisão justa, uma punição que envolve sofrimento eterno por um erro cometido temporariamente. Como os cristãos afirmam que Javé é misericordioso e amoroso, não há motivos para se preocupar. Conclui-se que escolher sua própria forma de vida, em detrimento dos padrões do cristianismo, não pode acarretar uma punição, tampouco eterna.
Sem inferno para alguns, mas ainda com paraíso
Os que acreditam no inferno como um lugar literal também acreditam no paraíso, mas parece que a motivação principal para serem cristãos é escapar desse lugar de tormento. Alguns, porém, não consideram literal as menções bíblicas ao inferno e são aqueles poucos sensatos que reconhecem que um lugar de tormento estaria totalmente fora do campo de cogitação de uma entidade boa e justa. Os que creem no inferno, no entanto, não o fazem sem razão, pois Jesus ensinou sobre ele como um lugar contendo um “fogo que nunca se apaga e onde há ranger de dentes” e considerava sábio sacrificarmos partes de nossos corpos para nunca merecermos esse lugar, conforme lemos em Marcos. No evangelho de Lucas, temos esse cenário de punição bem claro, e o livro de Jó retrata o diabo como uma entidade causadora de sofrimento, e não como um mal interior.
Ainda assim, supondo que os cristãos que não acreditam no inferno estejam certos, o que resta ao pecador desobediente que simplesmente escolhe seguir seu próprio caminho? Resta o desaparecimento. Aqui, o que tenta te convencer a ser cristão não é a escapatória do inferno, mas o ganho de uma vida eterna no paraíso! Isso convence, porque o ser humano tem dificuldade em aceitar a mortalidade e se julga merecedor de uma vida eterna. Mas o que acontece se você arriscar seguir sua própria vida e perder o paraíso? Você deixará de existir. E o que acontece se você deixar de existir? Você nunca saberá que perdeu o paraíso! É como se você devesse ficar triste por não ter jogado o número sorteado na loteria: se você não sabe que perdeu algo, isso não faz diferença para você.
Resumidamente, temos dois possíveis cenários: ou você desaparece na morte e não perde nada, ou Javé abriu mão de seus atributos principais, como amor e misericórdia, e fará com que você sofra eternamente por causa de uma simples escolha. Como esse último ponto é inaceitável em se tratando de uma divindade bondosa, conclui-se que você não perde nada ao rejeitar o cristianismo.
O desserviço de Paulo de Tarso
É sensato esperar que uma religião, ao menos inócua, ofereça ensinamentos que colaborem para a boa convivência em sociedade. Muitos dos ensinamentos cristãos para uma convivência harmoniosa podem ser encontrados em escritos mais antigos do que os fragmentos bíblicos, como o Código de Hamurabi e o Livro dos Mortos, e, portanto, não parecem tão originais. Talvez o apóstolo São Paulo tenha dado uma contribuição original para a boa convivência entre as pessoas. No entanto, ele resumiu o que o cristianismo espera do crente em 1 Coríntios 6:10, dividindo a humanidade em duas categorias: os que herdarão o reino de Javé e os que não herdarão. Para isso, citou uma série de adjetivos característicos daqueles que não herdarão esse reino. Com efeito, aquele que não se enquadra nos adjetivos negativos tem seu lugar garantido no céu. Uma pessoa que se julga cristã considerará a si mesma fora da lista negra de Paulo, mesmo que não esteja. Quais são os efeitos negativos desse tipo de crença? Acreditar que você faz parte de um grupo santificado, que tem a aprovação do criador do universo, pode influenciar a forma como você encara o grupo contrário. Quais são as chances de que preconceito, intolerância e ódio – nitidamente vistos em muitos cristãos declarados – surjam desse pensamento? E quais os efeitos positivos dessa crença? Ainda não vejo o lado bom em convencer as pessoas de que elas fazem parte de um grupo ungido, enquanto seus vizinhos estão condenados por não serem tão dignos quanto elas. Isso, no entanto, serve muito bem para engrandecer o verdadeiro inimigo – o ego.
Metodologia questionável
O conteúdo a seguir foi extraído do episódio 696 do programa “The Atheist Experience”. A fala é de Matt Dillahunty.
“Segundo o cristianismo, existe um Deus que tem uma mensagem importante para a humanidade. De alguma forma, Ele só revela essa mensagem a certos indivíduos, que, em seguida, a registram. Milhares de anos depois dessa revelação, temos que confiar em cópias de cópias de traduções de cópias por autores anônimos, sem originais. Não há relatos externos suficientes sobre os milagres, como o da multiplicação dos pães e peixes, que poderiam justificar a crença de que realmente ocorreram como estão escritos. Qualquer entidade que se qualificasse como Deus claramente entenderia isso e, se quisesse transmitir essa informação de forma crível, não dependeria de textos para fazê-lo. Para mim, isso é o prego no caixão do cristianismo. O Deus em que os cristãos acreditam é incrivelmente estúpido se deseja alcançar seu objetivo de espalhar essa mensagem para a humanidade confiando em textos, em línguas que morreram, e em testemunhos anedóticos. Isso não é um caminho para a verdade, e qualquer entidade que se qualificasse como Deus deveria saber disso. Isso significa que esse Deus não existe ou não se importa o suficiente com aqueles que compreendem a natureza da evidência.”
O interlocutor responde que seria preciso fé para crer nessas coisas. Matt prossegue:
“Fé não é um caminho para a verdade. Toda religião tem algum tipo de fé. Se a fé é seu critério, você não pode distinguir entre Cristianismo, Hinduísmo, Judaísmo, etc. Como é possível usar a razão como um caminho para a verdade em todos os aspectos da vida e, quando chega à verdade mais importante de todas, afirmar que é preciso fé? E como isso se reflete em um Deus que supostamente existe e quer que você tenha essa informação? Que tipo de Deus exige fé no lugar de evidência?”
O interlocutor diz que Matt também possui fé em várias coisas. Ele prossegue:
“Eu tenho expectativas razoáveis baseadas em evidências. Tenho confiança, que foi adquirida, e posso conceder confiança provisoriamente. Eu não tenho fé; fé é a desculpa que as pessoas usam para crer em algo quando não possuem evidências. Se você apontar algo em que eu acredite sem evidência, adivinha o que eu farei? Eu vou parar de acreditar. Essa é a natureza de uma mente racional.”
Essa falha metodológica de Javé em espalhar uma mensagem tão importante me lembra uma crítica que tenho ao evento do dilúvio. Em Gênesis 6:6, lemos que o Deus onisciente se arrepende de ter criado o homem, pois ele seguia um mau caminho. O criador então decide se livrar dessas criaturas e recomeçar o que, mais uma vez, fracassaria. Em vez de adotar um método mais eficaz para suspender a vida, decide inundar o planeta e afogar tudo que respira, incluindo crianças e animais. Tal como apontado por Matt, não é preciso ser onisciente para encontrar alternativas menos horrorosas e menos sofríveis para lidar com esse problema. Além disso, o dilúvio é um recomeço para a humanidade, mas a entidade que realizou esse recomeço sabia, antes de criar o mundo, que isso tudo chegaria a esse ponto. Então, não seria melhor ter criado a humanidade a partir da família de Noé (que foi preservada durante o dilúvio) e poupado as pessoas e animais que sofreram com o afogamento? Será que esse evento serviu de exemplo para os humanos posteriores? Os rumos que tomaram depois mostram que o dilúvio só causou sofrimento desnecessário aos que morreram. O que se espera de algo que se qualifica como Deus? Encerro este tópico com o seguinte polissilogismo:
P1: Ou Javé existe e deseja ver os céticos livres do tormento eterno (ou destruição eterna) ou não existe — não desejar o bem das pessoas nega seus atributos inerentes como amor, benevolência, misericórdia, etc.
P2: Se Javé existe, é onisciente e sabia que os céticos, suas criações, seriam assim: eles só tiram conclusões através de boas evidências.
P3: Portanto, se Javé deseja ver os céticos livres do tormento eterno, ele deve ter providenciado boas evidências para a conclusão de que ele — e apenas ele — existe.
P4: As evidências existentes também são usadas por outras religiões em favor da existência de seus deuses (suposta criação do universo, suposto ajuste fino, suposta moral absoluta, etc.), logo ele (Javé) não forneceu boas evidências para sua própria existência.
P5: Segue-se que ou Javé existe e não deseja ver os céticos livres do tormento eterno ou não existe.
P6: Em qualquer um dos casos, seus atributos inerentes (citados em P1) não são reais.
C: Portanto, Javé não existe.
Alternativas ao cristianismo
Um erro muito comum em debates é a conclusão de que o Deus específico do cristianismo é a única possibilidade capaz de preencher os argumentos em prol da existência de um Deus. A necessidade de um ser divino quando se argumenta sobre a criação do universo, a existência de uma moral objetiva ou o ajuste fino, por exemplo, pode ser saciada (dentro desse argumento) com qualquer outra entidade que tenha alguns dos atributos atribuídos a Javé; que tenha o poder para realizar tais ações. Muitos deuses foram citados antes de Javé e a eles também se atribuiu a origem das coisas. Portanto, o que leva à conclusão de que Javé seja a única possibilidade para essas questões? A divindade do deísmo de Voltaire, por exemplo, criou as coisas, mas não interfere nos problemas humanos. Ela é, portanto, coerente com um mundo de miséria, dor e sofrimento desnecessário. Já um Deus pessoal que possui atributos como onipotência, onisciência, misericórdia, amor infinito e interesse na humanidade não é coerente com o mundo atual. Javé quer que você tenha um relacionamento com ele para evitar a destruição e ganhar o paraíso. Qual a última coisa que ele deveria fazer nesse caso? Ocultar-se. Onde ele pode ser encontrado? Em lugar algum (exceto nos fenômenos puramente psicológicos daqueles que desejam muito que ele esteja em algum lugar). Já no caso do deus do deísmo não há incoerência alguma, pois ele realmente não esperava nada de ninguém e, portanto, não providencia para ser encontrado em canto algum. Muitas alternativas ao cristianismo podem ser encontradas, como: panteísmo, panteísmo naturalista, pandeísmo, acosmismo, pampsiquismo, transteísmo, politeísmo, misoteísmo, entre outras. Essas e outras alternativas ao cristianismo mostram que os problemas filosóficos e cosmológicos não requerem o Deus específico da Bíblia para serem solucionados, como muitos pensam. E se os problemas filosóficos e cosmológicos podem ser explicados por diversas alternativas, isso significa que eles (os problemas) não apontam para uma específica, como pensam os apologistas cristãos. Certamente surgirão incongruências dentro dessas crenças, assim como há no cristianismo. Mas, sejamos sinceros, com um pouco de criatividade e sofisma é possível solucionar (ou dar a impressão de ter solucionado) essas incongruências da mesma forma que milhares de apologistas fazem com os problemas do cristianismo.
Sobre a identidade desse Deus
Há muitos anos, dois amigos subiram numa montanha e clamaram a Javé. Lá, tiveram uma visão: uma entidade que emanava luz apareceu diante deles e pediu que matassem seus filhos primogênitos como prova de fidelidade. Um deles saiu de lá com a certeza de que o Deus de Abraão havia aparecido a eles. O outro, porém, saiu de lá com a certeza de que Satanás, o pai da mentira, fingiu ser Javé com o propósito de causar-lhes prejuízo. A questão que surge é a seguinte: como um cristão pode concluir qual dos dois está certo? Tenha em mente que o filho de um desses amigos pode ser assassinado por algo que seu pai concluiu. Pare um momento e medite sobre isso. Qual é o parâmetro para dizer que a conclusão está correta se a entidade em questão insiste em ocultar-se de sua criação?
Ademais, de onde vem a certeza de que esse Deus não pode mudar a percepção da realidade das pessoas? Ele já fez isso antes (“E por isso Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam na mentira.” 2 Tessalonicenses 2:11). A defesa que vem à mente é a passagem bíblica que garante que Javé não pode mentir. Mas, pense: para que uma mentira tenha efeito, é preciso que o enganado não saiba disso. Quem mente quer que o outro pense exatamente o contrário, ou seja, a passagem bíblica em questão seria previsível se esse Deus mentisse. Portanto, a questão permanece: como você garante a si mesmo que a entidade poderosa que o criou não manipulará sua percepção da realidade? Você depende de sua percepção da realidade para fazer julgamentos e tomar decisões. Seus julgamentos e suas decisões afetam direta ou indiretamente as pessoas ao seu redor, como afetou negativamente a vida do filho de um dos amigos no exemplo anterior.
Sofrimento desnecessário não condiz com um Deus de amor
A Associação Torre de Vigia oferece uma solução para o problema da incompatibilidade entre o sofrimento desnecessário e um Deus de amor e justiça. Segundo essa visão, Javé garante que Seu governo sobre os homens será melhor do que o governo do próprio homem sobre si mesmo. Isso justificaria a dor e o sofrimento no mundo, pois Deus estaria permitindo que o homem governe a si mesmo por um tempo. Essa suposta permissão se daria para que, no futuro paraíso, alguém pudesse questionar a eficácia do governo humano comparado ao governo divino. Mas essa resposta é convincente? Ela explica e justifica o sofrimento de inocentes no mundo? Levanto aqui alguns pontos:
1. Quem, em sã consciência, questiona uma entidade onisciente e que não mente? Faz parte dos atributos de Javé a onisciência e a impossibilidade de mentir. Questionar a garantia que Ele dá sobre a eficácia de Seu governo sobre os homens equivale a questionar Seus atributos básicos. Deus teria que fazer um esforço para provar que Seus atributos básicos condizem com Sua realidade. Mas Ele fez tal esforço? Segundo a Torre de Vigia, Ele fez questão de provar que o governo humano é um fracasso, mesmo que para isso fosse preciso submeter milhões à miséria, dor e sofrimento. Mas há algum esforço em provar algo primordial e mais simples, como Sua própria existência? Se você acha que Ele provou Sua existência através de fragmentos de cópias de textos de autores desconhecidos, questione Sua onipotência e a eficácia de Seu método.
2. Um ser onipotente não teria outra forma de mostrar que o governo humano é um fracasso? Talvez criando um tipo de holograma que simulasse os efeitos catastróficos do governo humano? Dessa forma, nenhum inocente precisaria sofrer. Imagine dizer a uma criança submetida à tortura que o que ela está sentindo é necessário para provar, aos herdeiros do reino, que o homem não consegue governar a si mesmo com sucesso. Segundo a Torre de Vigia, o sofrimento de milhões ao redor do mundo está justificado pela possibilidade de alguns, no futuro, questionarem o governo de Javé. Pense nisso.
3. Qualquer entidade religiosa que creia no que foi dito acima deveria fechar suas portas e interromper suas atividades, pois as atividades religiosas influenciam as pessoas e as privam de viver como viveriam sob um governo humano. Em outras palavras, as atividades religiosas comprometem o resultado final do fracasso do governo humano. Se o que está ocorrendo é uma espécie de prova, ninguém deveria influenciar no resultado.
Breve nota sobre o livre-arbítrio
O termo "livre-arbítrio" foi utilizado várias vezes ao longo do texto, demonstrando como essa ideia está associada ao cristianismo. Essa relação se dá por causa das escolhas que as pessoas precisam fazer ao longo de suas vidas. Mas será que a ideia de livre escolha existe como imaginamos? Embora haja uma negação dessa ideia através da neurociência, vou me concentrar em um simples pensamento filosófico para incentivar a reflexão: nossas escolhas são feitas por um motivo ou sem motivo algum. Se nossas escolhas forem feitas sem motivo, elas são aleatórias. Se forem feitas por um motivo, elas são determinadas por esse motivo. Essa dicotomia é verdadeira, e não há espaço para o livre-arbítrio, pois ou fazemos nossas escolhas e ações por um motivo ou razão (nesse caso, são determinadas pelo motivo ou razão) ou fazemos nossas escolhas sem motivo algum (nesse caso, são aleatórias).
Para ilustrar, imagine uma pessoa cuja dieta se baseia apenas em comida gordurosa. Ela pode achar que escolheu livremente o que está comendo, mas, na verdade, ela foi determinada pelo desejo de comer aquilo e nunca escolheu livremente esse desejo. Agora, suponha que alguém convença essa pessoa de que ela precisa de uma dieta saudável para evitar problemas de saúde. Se ela não deseja ter problemas de saúde, pode acabar mudando seu hábito alimentar para um mais saudável. Mas essa foi uma escolha livre? Bem, ela foi determinada a fazer essa escolha pelo reconhecimento de que o hábito alimentar anterior prejudicaria sua saúde e pelo desejo de evitar se prejudicar (o desejo, como mencionado, não é algo que se escolhe livremente). Alguém pode argumentar que ela escolheu livremente não prejudicar sua saúde e, portanto, fez essas outras escolhas, mas a escolha de não querer prejudicar a saúde foi determinada por outras razões, como não querer sentir dor ou sofrimento, e essas são determinadas por instintos biológicos que estão longe da ideia de livre escolha. Em suma, temos mais um princípio fundamental do cristianismo que se revela ilusório.
Conclusão
Fica claro que não há razões definitivas para converter alguém ao cristianismo. Acredito que o indivíduo que deseja se tornar uma pessoa melhor não precisa recorrer à religião, mas sim tentar combater a raiz de todo o mal do mundo: o ego. Aquele que dominar seu ego será um ser mais evoluído e disciplinado do que qualquer religioso.
Post Scriptum – Textos do Novo Testamento, como Marcos 11:23, Marcos 16:18 e João 14:12, indicam que aqueles que acreditassem e seguissem Jesus seriam capazes de realizar milagres. Alguns desses milagres envolvem mover objetos imensos com o poder da palavra, receber imunidade total a venenos, curar doenças e reproduzir, de forma mais intensa, aquilo que Jesus foi capaz de fazer! Ora, não é difícil notar que os seguidores de Jesus não são capazes de realizar tais feitos. Se eu prometesse a você o dom da levitação, caso você entrasse para o meu grupo, e mesmo após anos como membro você nunca fosse capaz de levitar, o que pensaria de mim? Como avaliaria qualquer promessa futura que eu fizesse? E se você alegar que essas passagens devem ser interpretadas de forma não literal, eu poderia, pelo mesmo argumento, elaborar uma interpretação diferente para cada passagem da Bíblia, evidenciando que nada ali pode ser ensinado, pois depende da interpretação escolhida por conveniência. É certo que muitos afirmam que os textos citados não estão presentes em manuscritos mais antigos, mas isso só agrava a situação do livro sagrado que afirma: "Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor, vosso Deus, que eu vos mando" (Dt 4, 2).
Recomendação: "Jesus: Madman or Something Worse?" de Peter Brietbart
O canal Left4Coragem possui uma versão legendada do vídeo, o título é:
"Jesus - louco ou algo pior?"
Alexandre de Freitas Grasselli
https://www.recantodasletras.com.br/autores/grasselli