PORQUE NÃO SOU CRISTÃO

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Talvez, o título certo desse texto deveria ter sido o seguinte: “Porque não sou mais cristão” pois, além de ter sido criado e educado num País católico, até os 22 anos de idade não apenas fui um fervente cristão e um catequista esforçado, mas também dediquei muito tempo ao estudo da teologia moderna lendo livros que pedia emprestados a um padre meu amigo.

Objetivamente, o fato duma pessoa ser católica, protestante, ortodoxa, judia, budista, etc. é, essencialmente, um fator geográfico. A grandíssima maioria dos fieis seguem um certo credo pela simples razão de terem nascido no âmbito duma determinada cultura. Muito raramente uma pessoa escolhe a sua religião, mas simplesmente adota aquela que lhe foi transmitida pelos genitores e a segue acriticamente, um pouco por medo de errar, um pouco por simples comodismo intelectual.

No meu caso tudo se desenvolveu num ambiente católico, do qual me desprendi por vários motivos que passo e elencar, começando pelos motivos pessoais. Portanto, quem não estiver interessado em simples anedotas, pode pular o parágrafo que segue.

Motivos pessoais

Nas famílias católicas, nos anos ’50 do século passado, era costume dar aos filhos as primeiras noções religiosas já dentro de casa, antes da idade escolar. Quando se aproximava o Natal, sempre havia uma avó por perto mostrando, orgulhosa, a estatueta do menino Jesus, pedindo para dar beijinhos e ensinando o sinal da cruz. Nada além de inocentes palavras de carinho, um pouco come se fazia com a figura de Papai Noel, com a diferença que, com o passar dos anos, os meninos descobriam que a do velhinho entregador de presentes era uma simples figura lendária. Mas no caso de Cristo aprendemos logo que se tratava de uma mensagem séria densa de consequências potencialmente terríveis.

As aulas de religião eram compulsórias e, além disso, era praticamente obrigatório participar do catequismo na paróquia. Era simplesmente inimaginável que uma criança se ausentasse do catecismo, pois toda a família teria sido apontada como grosseira, ímpia e inimiga de Deus. Casamento no civil, nem pensar. Em 1958 o bispo da cidade italiana de Prato estigmatizou o comportamento de um casal que não havia celebrado o casamento religioso, apelidando-os, durante a homilia dominical, de “públicos pecadores e concubinos”. Uns dias depois o esposo foi agredido, xingado e espancado, enquanto a loja dele acabou perdendo mais da metade dos fregueses.

Os padres e os catequistas nos aterrorizavam narrando, com requintes de sadismo, as imaginárias penas do inferno que, para nós, eram tidas como absolutamente reais. Fiquei bastante traumatizado e ainda lembro as imagens do texto de religião onde eram mostradas as torturas que aguardavam nós pecadores. Confesso que, apesar de tantos anos, essas imagens ainda permanecem bem gravadas na minha mente e lembro do pavor que causaram em mim.

Nem precisa explicar que o pecado pior era o onanismo: além de acarretar graves distúrbios físicos e psíquicos, a masturbação, sendo pecado mortal, maculava a alma do menino que, de consequência, se tornava pronto a ser lançado nas chamas do inferno. Obviamente é difícil imaginar que crianças sadias conseguissem reprimir de forma inatural o que era uma simples função fisiológica. Os padres sabiam disso e não perdiam a oportunidade para nos amedrontar. É evidente que para jovens ainda em desenvolvimento psicossexual, esse conflito interior acabava gerando casos de complexos de culpa. Pois, como podia um garoto ser tão insensível e egoista ao ponto de infligir novos sofrimentos ao coração imaculado de Jesus que tanto havia sofrido para a nossa salvação? Nós tentávamos manter a castidade, mas era uma missão impossível.

A lavagem cerebral continuou nos anos seguintes, nas escolas que, mesmo sendo públicas e, portanto nominalmente laicas, eram impregnadas por uma pesada cultura clerical. Jamais nos ensinaram o pensamento de filósofos como David Hume, Voltaire, Bertrand Russell, etc. dos quais desconheciamos até a existência. Se, porventura, um aluno tivesse feito uma pergunta a um padre pedindo explicações sobre uma das inúmeras contradições contidas nas Escrituras, a resposta ia ser sempre a mesma: “É um mistério divino: aceite-o sem questioná-lo”. A televisão só mostrava (e continua mostrando!) filmes religiosos, biografias de santos, de papas e histórias de milagres fictícios. Só recentemente uns estudiosos livres de dogmas tiveram a possibilidade de divulgar as suas ideias na TV, mas num contexto ainda hostil a essa forma de pensamento.

De forma geral, o ambiente onde cresci era tão impregnado de cristianismo que até os comunistas se casavam na igreja, batizando e crismando os filhos, e empurrando as esposas na missa do domingo.

Motivos históricos

Mesmo no âmbito do Cristianismo, há importantes diferenças entre católicos e protestantes, e muitas vezes me perguntei por qual razão as nações católicas (Espanha, Itália, Portugal, etc.) sempre foram mais atrasadas do que as protestantes. A resposta é óbvia. Enquanto a ética protestante valoriza o sucesso econômico pessoal, considerando-o um sinal de benevolência divina, no mundo católico o modelo a ser seguido é o pauperismo.

Não é por acaso que nos Estados Unidos, onde os protestantes são maioria, o rico é tido como exemplo a ser seguido e elogiado pelo seu dinamismo e coragem empresarial, tanto que a Disney em 1947 criou o simpático personagem de Tio Patinhas, um clássico exemplo de “self-made-man” bem sucedido que começou a sua carreira trabalhando braçalmente nas minas do Yukon. Ao contrário, o padroeiro da Itália é Francisco de Assis, o mais pobre dos santos e dos púlpitos ouvia-se sempre o mesmo refrão: “Ai de vós, ricos! Deem aos pobres!”. Quer dizer, deem à Igreja que, mesmo não sendo pobre, sabe o que fazer com o vosso dinheiro.

Precisa reconhecer que, efetivamente, não todas as nações católicas perdem na comparação com as protestantes. Por exemplo, a França, embora católica, é bastante rica e avançada. O mesmo vale para Bélgica, Áustria e Irlanda. A situação da Itália é peculiar pois, além de ser católica, sofreu durante mais de 1.500 anos a influência nefasta do poder temporal da Igreja.

Diferente de Espanha e Portugal, a “bota” jamais teve um seu estado nacional e isso afeta ainda hoje o carater nacional dos italianos, mais propensos a cuidar de seus negócios particulares que dos problemas de interesse coletivo. Objetivamente, após a fundação do Reino de Itália, em 1861, os governos laicos que a governaram conseguiram inculcar nos italianos sentimentos de patriotismo, honestidade, dedicação e civismo mas, infelizmente, com o Tratado de Latrão, assinado em 1921 pelo governo de Mussolini, a Igreja voltou a ter imensos privilégios que foram até reforçados durante os governos democratas-cristãos sucessivos à queda do regime fascista.

Em síntese, os estragos causados pela Igreja católica na Itália podem ser resumidos assim:

1) Impediu, durante muitos séculos, a formação de um estado nacional deixando que a península fosse invadida e dominada pelos exércitos de França, Espanha e Alemanha. Em várias circunstâncias o próprio papa solicitou a intervenção militar de soberanos estrangeiros. Como iria reagir um brasileiro se o papa pedisse à Argentina de invadir o Brasil?

2) Condicionou o desenvolvimento cultural, perseguindo o saber

científico e filosófico (veja, por exemplo, os casos de Galileu Galilei, Giordano Bruno, Tommaso Campanella, etc.).

3) Com a instituição em Roma do Santo Ofício (1542), toda a vida cultural da Itália acabou sendo sufocada e o povo mantido na ignorância mais absoluta. Qualquer livro que tivesse a ousadia de questionar as verdades impostas pela Igreja era sequestrado e queimado. Ás vezes até o próprio autor era queimado na estaca.

4) Enquanto no século XVIII o Iluminismo avançava na Europa, inclusive na França católica, na Itália conseguiu se afirmar apenas timidamente no norte, longe da jurisdição dos Estados Pontifícios. O Sistema Heliocêntrico só foi aceito em 1835. No Vaticano a pena de morte continuou vigorando formalmente até 2001.

5) Com a louvável exceção dos anos em que a Itália foi governada por partidos laicos (seja de direita que de esquerda), durante a ditadura fascista a Igreja católica voltou a ter um papel de destaque na vida política e cultural italiana, papel que não apenas não terminou com a queda do regime de Mussolini em 1945, mas continua até hoje. Em 1946, quando a Assembleia Constituinte antifascista e republicana deliberou se na nova Constituição devia ser mantido o Tratado de 1921, o então Partido comunista votou a favor. Temas fundamentais como divórcio, eutanásia, liberdade de ensino, laicismo, testamento biológico, etc. sofrem constantemente a ingerência da CEI (Conferência Episcopal Italiana). Nesses últimos dez/quinze anos, a posição do Vaticano em realação à questão da imigração clandestina, que tanto prejudica o povo italiano, acabou coincidindo com a dos partidos de esquerda.

O marco deixado pelo domínio cultural católico na Itália é tão profundo e arraigado que nenhum partido político, apesar do estado italiano pagar anualmente nove bilhões de euros ao Vaticano, tem a coragem de denunciar esse escândalo. Muito pelo contrário, todos os vários líderes políticos, inclusive os de esquerda, são católicos praticantes e frequentam a missa aos domingos. As emissoras de TV, públicas ou particulares, dedicam espaço exagerado a seriados dedicados às biografias dos santos, às palavras de papa Francisco e a debates sobre temas religiosos onde aos hóspedes laicos é permitido só formalmente a livre expressão de suas ideias. Vários pensadores laicos (por exemplo os professores Mauro Biglino e Piergiorgio Odifreddi) são frequentemente censurados chegando até a sofrer ameaças. Quem tiver a ousadia de negar publicamente a vericidade das aparições de Lourdes, Fátima e Medugorje corre riscos reais de ser agredido. É difícil encontrar nas livrarias cópias de livros contrários à religião e uns autores (por exemplo, Leo Zen) preferem publicar usando pseudônimos para não sofrerem retaliações.

Motivos culturais

Um dos mitos mais radicados na mentalidade das pessoas é que, com o advento do Cristianismo, a sociedade teria avançado em todas as direções, saindo de uma época de barbárie e gerando melhores condições de vida para todos. Todavia, a História nos ensina que aconteceu o contrário.

Durante o Império Romano, a sociedade alcançou níveis de desenvolvimento consideráveis bem próximos aos do mundo moderno. Todos tinham o suficiente para satisfazer as necessidade básicas. Havia água potável encanada, um sistema de esgotos eficientes, sanitários públicos, termas quase de graça para a higiene cotidiana, centenas de bibliotecas, escolas públicas, museus, teatros, ruas limpas, uma fantástica rede de estradas interligando três continentes, um correio eficiente e, acima de tudo, uma medicina bastante avançada capaz de aliviar muitos tipos de doenças. O médico Aulo Cornélio Celso relatou detalhadamente a preparação de numerosos medicamentos, incluindo um preparado anestésico de opioides; também descreveu muitos procedimentos cirúrgicos praticados no primeiro século, como a remoção de catarata, o tratamento de pedras na bexiga e a consolidação de fraturas. Celso sublinhou a importância da higiene e afirmou que era melhor prevenir as doenças de que curá-las.

Todo esse patrimônio de conhecimentos foi progressivamente perdido já antes da queda do Império, quando o Cristianismo tornou-se o alicerce do poder político. É verdade que muitas destruições materiais vieram dos bárbaros (que por sinal eram cristãos), mas quem conhece a História sabe que logo surgiram, na Europa ocidental, os Reinos romanos-barbáricos que teriam sido aptos a absorver a cultura clássica. Não existem motivos lógicos para que que isso não tenha ocorrido, assim como aconteceu quando os Árabes conquistaram o Egito e a Síria. A verdade é que o poder da Igreja condicionou o ambiente cultural começando a substituir o conceito de medicina científica com elementos sobrenaturais deduzidos das Escrituras e toda a Ciência passou a ser considerada inútil ou até obra do demônio. Em 391 d.C., na cidade egípcia de Alexandria, o patriarca Teófilo instigou uma tropa de monges exaltados a atacar e destruir totalmente o magnífico Serapeu, santuário monumental considerado uma das maravilhas do Mundo Antigo. Naquela ocasião os cristãos não apenas saquearam e assolaram o edifício, mas atearam fogo na biblioteca composta por milhares de livros contendo boa parte da Ciência da época. Outro golpe contra o saber veio do Edito de Constâncio II (356 d.C.) contra bruxos e adivinhos, seguido por outro do imperador Teodósio (385 d.C.) conta os que praticavam artes mágicas. Mas qual era o significado da palavra “magia”? No Codex Theodosianus (9,16,5) se fala explicitamente “de maleficis et mathematicis et ceteris similibus”. Ou seja, a geometria e a matemática passaram a ser consideradas obras do demônio e, portanto, perseguidas com extrema dureza.

Os lindos templos erguidos durante a Idade de ouro da cultura greco-romana foram abatidos, as estátuas despedaçadas, os obeliscos derrubados e uma onda de violência varreu todo o território do Império Romano. Aos 8 de março de 415, em Alexandria, a eminente matemática e filósofa neoplatonista Hipátia foi sequestrada, esfolada viva e queimada pelo monges às ordens do Patriarca da cidade, o fanático São Cirilo, proclamado santo e Doutor pela Igreja católica em 1882. O clima geral de ordem e tranquilidade que havia caracterizado as cidades do Império Romano (onde os crimes eram raros, pois a Lei obrigava os cidadãos a não saírem de casa armados) acabou e todos começaram a carregar armas. Os assassinados se tornaram corriqueiros. Ao mesmo tempo, aquedutos e esgotos foram considerados inúteis e as maravilhosas termas fechadas. Enquanto isso, no lado meridional do Mediterrâneo os Árabes preservaram boa parte da cultura greco-romana, principalmente no que diz respeito à medicina. Esse povo é tido como prono ao integralismo religioso e isso é verdade, mas poucos sabem que o Islã teve a sua origem na Bíblia e nos Evangelhos apócrifos. Portanto, sem o Cristianismo, também a religião muçulmana não existiria.

Enquanto os muçulmanos tomavam banhos frequentes e ensinavam que era boa norma lavar as mãos antes das refeições, os cristãos submeteram-se à superstição de que a higiene era um grave erro. Tomar banho era considerado um abomínio. Em 1163 o Concílio de Tours estabeleceu que todos os estudos de natureza física, incluindo-se a medicina, deviam ser considerados pecaminosos. Durante toda a Idade Média, mas também em épocas sucessiva, o ideal cristão mais elevado, um verdadeiro preceito, era manter uma existência hostil ao corpo e aos instintos naturais como a alimentação e a sexualidade. Ao contrário, eram tidas como sinal de santidade as atitudes que patologicamente renegassem qualquer forma de prazer, ou seja, a abstinência, os jejuns, as lágrimas, a sujeira, a insônia forçada e todas as práticas masoquísticas como o cilício e a flagelação. Qualquer forma de anestesia foi proibida sob a alegação que se Deus desejava o nosso sofrimento, tínhamos que aceitá-lo sem procurar amenizá-lo.

Do ponto de vista social erra quem afirma que o advento do Cristianismo significou o fim da escravidão, a qual continuou, pelo menos no Brasil, até 1888. Ao contrário, a condição dos escravos piorou e a Bíblia forneceu a base legal para justificar uma escravidão ainda pior daquela praticada no Mundo Antigo. Na Europa cristã e no continente americano, a escravidão adquiriu um cunho racista, fato esse, simplesmente inimaginável no Império Romano que teve até um imperador africano! Os Doutores da Igreja dos séculos IV e V concordavam sobre a legitimidade da escravidão: Santo Ambrósio definiu a escravidão uma “dádiva de Deus” (Ambrósio, De paradiso 14,72) enquanto Santo Agostinho de Hipona afirmava a escravidão ser justificada pela natural desigualdade entre os homens (Agostinho, Ennarrationes in psalmos 124,7). As mulheres, que em época romana haviam alcançado uma posição de paridade com o homem, foram rebaixadas e consideradas instrumentos do demônio. Negar hoje essas verdades é como tentar esconder o sol com a peneira!

Se alguém ainda duvidar dos incalculáveis prejuízos causados na Europa ocidental pela teocracia cristã, compare o estilo de vida de França, Inglaterra, Espanha, etc. durante a Idade Média, com o do Império Bizantino que, embora profundamente cristão, jamais tolerou que a Igreja se tornasse mais poderosa que o próprio imperador. Muitos conhecimentos científicos e médicos de época clássica haviam sobrevivido naquele Império no qual a filosofia neoplatônica pagã era ainda cultuada. O estado lastimável da medicina na Europa ocidental melhorou na Renascença só em virtude das trocas culturais com estudiosos bizantinos, e é por esse motivo que ainda hoje a grande maioria dos termos usados na medicina moderna deriva da língua grega. Essa fase positiva durou até à Contrarreforma, quando uma capa de opressão e de terror voltou a abafar a Europa ocidental.

O Cristianismo, religião totalizante, alcançou o totalitarismo quando tornou-se teocracia. Toda e Europa ocidental sofreu a opressão dessa teocracia cristã a partir do V até o XVIII século, período durante o qual o dogmatismo não apenas limitou o avanço dos conhecimentos científicos, mas também provocou a perda de um imenso patrimônio cultural acumulado durante a Antiguidade. Surge, legítima, uma pergunta: como seria o mundo de hoje se todo esse tempo e tantos conhecimentos não tivessem sido perdidos?

Motivos racionais

Quando alguém me pergunta porque não sou cristão, logo respondo dizendo que é ele(a) que deve explicar o motivo pelo qual escolheu essa religião. Frequentemente a resposta não é racional e se fundamenta sobre o que está escrito na Bíblia, principalmente no Novo Testamento.

Nesse caso tento explicar que o problema é que os Evangelhos não são livros de História e nem crónicas de uma época em que não existiam filmadoras e gravadores. Esses livros não foram escritos pelos Apóstolos, pessoas analfabetas que não entendiam a língua grega. Ao contrário, trata-se de textos apologéticos redigidos muitos anos depois da morte de Jesus sendo o mais antigo o de Marcos (discípulo de São Paulo) escrito depois do ano 70 d.C. O Evangelho de Marcos, em grego, é sem dúvidas o mais sintético entre os canônicos mas, ao mesmo tempo, o mais genuíno e retrata mais fielmente a vida real de Cristo. Nele Jesus, que jamais é apresentado como sendo preexistente e idêntico a Deus, é chamado de “Mestre” e de “Rabi”; quanto à expressão “Filho de Deus”, cansei de explicar que, junto aos Israelitas, era apenas um título de distinção usado também pelos reis Davi e Herodes, que não deve ser tomado em seu significado literal.

No texto marcano os atos de Jesus são despidos de seu significado milagroso parecendo mais aqueles atuados por um hábil curandeiro: “E, tirando-o à parte [um surdo], de entre a multidão, meteu-lhe os dedos nos ouvidos; e, cuspindo, tocou-lhe na língua.” (Marcos 8:33); “E, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia; e, cuspindo-lhe nos olhos, e impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe se via alguma coisa” (Marcos 8:23). De acordo com o relato de Marcos, Jesus morre crucificado sendo o corpo posto no sepulcro; o Evangelho termina com a presença de um desconhecido vestido de branco e as mulheres que fogem assustadas. Quanto ao “Epílogo de Marcos” (Marcos 16:8-20) onde se fala na aparição à Maria Madalena, aos discípulos e na Ascensão, foi acrescentado em épocas posteriores e não se trata de elementos originais desse autor.

Nos sucessivos Evangelhos de Mateus e de Lucas, a figura de Cristo começa a receber atributos semidivinos como, por exemplo, a concepção virginal de Maria, a infância descomunal, a realização de antigas profecias, a perseguição de Herodes, a genealogia real de Jesus, e outras mitologias.

Quanto ao Evangelho de João, Jesus é finalmente divinizado tornando-se igual ao Pai. Trata-se de uma evolução ulterior dos textos Sinóticos, cujo alicerce é um dos conceitos essenciais da filosofia helenística: o de Logos. É uma visão distorcida da doutrina original de Cristo, oportunamente adaptada para que se tornasse apetível aos gregos e aos romanos. O autor, dirigindo-se a um público culto e abastado, não enaltece mais os pobres e nem estigmatiza a riqueza. Desaparece a linguagem simplória das parábolas enquanto a descrição de Deus se torna abstrata e intelectualizada. A moderna bibliologia crítica estabeleceu que esse Evangelho foi escrito durante o II século. Também esse livro foi redigido em grego, mas num estilo bem mais culto adaquele dos Sinóticos.

Nos sucessivos Concílios de Florença (1442), de Trento (1546) e Vaticano I (1870) a Igreja católica emanou o dogma da infalibilidade da Bíblia. Portanto, qualquer objeção de natureza crítico-histórica dos livros do Antigo e do Novo Testamento foi e continua sendo inaceitável, apesar das inúmeras contradições, incongruências e absurdos neles contidos. A doutrina da Igreja é, portanto, anticientífica e autoreferencial.

Diante dessas simples constatações, uns cristãos rebatem que inúmeros milagres comprovam a verdade das Escrituras. Nesse caso costumo responder que os milagres simplesmente não existem.

Ninguém nega a realidade de umas pessoas curadas depois de uma romaria a um dos vários santuários marianos: trata-se de fatos espontâneos, ainda não esclarecidos pela medicina, mas que pertencem ao âmbito natural da biologia. A prova é que até doentes de câncer em fase terminal saram repentinamente sem explicações aparentes. A frequência, medida estatisticamentente, é de um em cada 60.000 doentes e o fato pode ocorrer em qualquer lugar do planeta, em casa, nos hospitais, entre povos que nada sabem de cristianismo ou até entre os ateus. Ainda não se sabe por qual motivo o sistema imunológico recomeça a funcionar, mas um dia a ciência ira esclarecer também esse fenômeno. Inclusive, esse tipo de “milagre” era conhecido nos antigos santuários pagãos.

O que sabemos é que jamais foi registrado um fato realmente milagroso, como um braço amputado que cresce de novo, uma criança Down que sara ou um anão que alcança a altura normal no espaço de uma noite. Se realmente Deus agisse no mundo operando milagres, por qual motivo nunca se viu um avião despedaçado se recompor e voltar a voar ou um Titanic prestes a afundar ser sustentado pela mão de Deus? Se houve realmente milagres, eles foram ao contrário, pois Adolf Hitler escapou de mais de 40 atentados podendo, destarte, planejar e realizar o assassinato de milhões de inocentes. Os cristãos afirmam que o ditador nazista foi protegido pelo diabo, mas isso significaria admitir que o Demônio é mais poderoso que Deus!

A atitude de negar a ação da Providência não implica necessariamente o ateismo, assim como é possível acreditar num Grande Arquiteto do Universo mesmo recusando o Cristianismo e as outras religiões reveladas. Essa postura, em filosofia, é chamada de Deísmo, e é também conhecida como Religião natural. Trata-se duma visão filosófica sem dogmas, sem rituais e extremamente tolerante; basicamente uma teologia fundada sobre a razão que todos podem aceitar principalmente se, como dizia David Hume, à existência de Deus dermos o valor de probabilidade e não de verdade absoluta.

Existem também os cristãos que teimam em apresentar “provas” da existência de Deus, mas já o filósofo alemão Immanuel Kant, mesmo acreditando em Deus, desmontou todas essas as provas.

Pessoalmente respeito quem acredita na religião cristã, desde que isso represente um puro ato de fé, sem a pretensão de justificá-lo mediante textos apologéticos exibidos como se eles contivessem verdades comprovadas. Nisso o meu pensamento é comparável ao do filósofo espanhol Miguel de Unamuno que escreveu: “Mas, ai de nós, a própria Igreja se contaminou de racionalidade. Transformou a fé em teologia, tentou dar fundamentos filosóficos à crença, e, com isso, abriu flanco às dúvidas e às críticas da Razão. Mas provar racionalmente a imortalidade da alma, como tentaram tantos teólogos e filósofos, é puro sofisma.”

O presente texto se encontra também no meu E-book intitulado: "Viagem ao Centro do Cristianismo" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 08/03/2018
Reeditado em 20/12/2019
Código do texto: T6274350
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