Reminiscência - Uma Religião De Verdade.
Nos fundos da igreja havia um depósito de vidros, ossos, e outro de metais. Íamos para missa dos domingos, levando o material já separado.
O lixo ia para a igreja, e com ele o Padre realizava as obras. Era um homem rude, dedicado ao trabalho. As suas mãos eram calejadas, e a batina preta, que nunca deixou de usar, geralmente estava suja. Morava numa casa de madeira, em desordem, entre diversos objetos.
Ele tinha um objetivo, e às vezes me parecia que os rituais religiosos, até atrapalhavam a obrigação real, que o Padre assumira com Deus.
Naquele homem forte, de origem italiana, eu não conseguia definir o sexo. Eu via apenas um operário de Deus.
Quando eu era menino, saia com o padre num Jipe velho, para coletar ossos, vidros e metais. O único diálogo entre nós era pela oração. Durante todo o tempo, o Padre sisudo e autoritário rezava, e eu respondia.
Depois fui me tornando adulto, e profissional da Eletrônica, então pude ter mais intimidade com o Padre. Ele admirava o meu trabalho, e ficava ao meu lado observando, e fazendo perguntas.
Nunca falamos sobre religião, nem teologia, nem dogmas. Coisas de teóricos e sofistas, de mãos lisas, e poucas obras.
Falávamos sobre a vida, e sobre trabalho. Uma única vez, após a janta, falamos sobre o Milagre de São Genaro na Itália. Pareceu-me que ele não acreditava muito naquilo.
Já faz muito tempo que havia uma igreja que recebia lixo, e eu participei dela.
Hoje esta talvez seja a única religião que ficou em mim. A religião daquela igreja, no exemplo daquele saudoso Padre. A religião que oferecia a Deus trabalho, mais que palavras e rituais.
Quando me encontro coberto de barro, com as mãos sangrando, e carregando pedras de mais de sessenta quilos, eu vejo em mim aquele Padre, e no meu pátio eu vejo aquela Igreja.
Me vejo como ele.
Estava na casa Paroquial, com o meu amigo Monsenhor Elcy, quando o Padre, já com o título de Monsenhor, vindo dos seus aposentos, se postou na porta da sala, admirado, com os olhos fixos na tela do computador me disse:
- Acioly o homem faz coisas não é mesmo?
Então lhe respondi:
- Padre, a mulher também faz!
Numa larga risada, ele retornou aos seus aposentos.
Eu não poderia imaginar que com aquele riso fagueiro, o Padre sisudo, que habitou a minha infância, se despedia de mim para sempre, talvez feliz por deixar um pouco dele, permanentemente comigo.
Aquela bela imagem foi a última, que eu tive, do meu querido amigo, Monsenhor Orestes.
Acioly Netto - www.guiadiscover.com