NERO E A PERSEGUIÇÃO AOS CRISTÃOS

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Os fatos

Na noite entre 18 e 19 de Julho do ano 64 d.C. bem no centro de Roma, metrópole com quase dois milhões de habitantes e capital do Império, eclodiu um incêndio que, durante nove dias seguidos, devorou 10 dos 14 bairros de Cidade Eterna. Embora as fontes antigas considerem o evento de natureza dolosa, é importante lembrar que, naquela época, os incêndios eram corriqueiros nas grandes cidades sendo a madeira utilizada como principal material de construção; além disso, numerosas chamas livres serviam para a iluminação, o aquecimento dos ambientes e a preparação dos alimentos. A alarmante frequência dos incêndios fica comprovada pela presença, em Roma, de sete quartéis abrigando, ao todo, 7.000 bombeiros cuja corporação tinha também função de polícia urbana.

Os três mais importantes cronistas romanos: Tácito (56-117 d.C.), Suetônio (69-141 d.C.) e Dião Cássio (155-229 d.C.) relatam, perplexos, a rapidez com a qual o fogo se alastrou em todas as direções sem seguir a direção do vento; esses historiadores acharam surpreendente o fato que as chamas destruíram até edifícios de pedra e que o incêndio se reacendia em áreas por onde já havia se manifestado. Esses três eventos, aparentemente inexplicáveis, foram interpretados como a prova da origem criminal do evento. Na verdade, a ciência moderna explica que nos incêndios de grandes proporções, como os causados pelos bombardeiros Aliados sobre a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, na medida em que o oxigênio é consumido, as chamas se deslocam em busca de outro oxigênio de forma aparentemente aleatória, independente da direção do vento. Outrossim, as altas temperaturas podem consumir até as pedras, inclusive aquelas usadas nos prédios públicos de Roma. Sabe-se, também, que as brasas debaixo da cinza possuem a capacidade de reativar as chamas várias horas depois delas terem se apagado.

Os motivos pelos quais escritores como Tácito, Suetônio e Plínio o Jovem mostram hostilidade em relação a Nero, chegando a levantar a suspeita dele ter sido o mandante do incêndio, derivam do fato que todos eles tinham cargos importantes na administração de imperadores posteriores à dinastia Júlio-Claudiana, apresentada como inepta e corrupta (o leitor confira lendo a Vidas dos Doze Césares de Suetônio). Entretanto, historiadores modernos reavaliaram a administração de Nero chegando a excluir que ele tivesse tido alguma responsabilidade no desastre; entre outras considerações, os autores modernos citam a narração do próprio Tácito o qual afirma que Nero tomou, com procedimento de urgência, uma série de valiosas providências aptas a amenizar os grandes problemas causados pelo desastre.

Os culpados

De acordo com Tácito (Annales XV,44), já nos primeiros dias depois da tragédia a população, devido a má fama dessa nova seita, começou a culpar os cristãos. Segundo o historiador Gerhard Baudy, com base em estudos anteriores de Carlo Pascal e Léon Herrmann, foram realmente os cristãos a atear fogo na cidade para que se cumprisse uma antiga profecia egípcia segundo a qual o surgimento da estrela Sírio, da constelação Canis Major, teria marcado a queda duma “cidade grande e malvada”. Mais recentemente, o estudioso italiano Dimitri Landeschi reafirma a inocência de Nero e põe a responsabilidade da calamidade sobre um grupo extremista da comunidade cristã de Roma que agiu com o suporte de uns senadores inimigos do imperador. Esses seguidores de Cristo, imbuídos de conceitos apocalípticos, teriam proclamado publicamente que o incêndio era um castigo divino pelos "pecados" dos romanos preanunciando, ao mesmo tempo, o novo advento do Redentor.

Trata-se, contudo, de conjecturas despidas de qualquer fundamento concreto, e nenhum historiador sério e competente pôde chegar a uma conclusão definitiva devido a falta de documentos originais. O único códice que relata o famoso trecho de Tácito sobre Cristo, os cristãos e a perseguição supostamente ordenada por Nero é o “Codex Laurentianus Mediceus MS 68 II” conservado a Florença e redigido no século XI, ou seja, mais de mil anos depois da morte do escritor latino. Nos Annales (XV,44), Tácito fala expressamente de uma “multidão” de cristãos sendo devorada pelas feras, crucificada e queimada viva. Entretanto, todos os outros códices de Patrologia grega e latina, escritos seja antes que depois do Laurentianus, mesmo relatando as atitudes depravadas de Nero, nada dizem a respeito do massacre dos cristãos. Isso significa que autoráveis Padres da Igreja como Clemente de Roma, Ireneu de Lyon, Eusébio de Cesaréia, Orígenes e Ambrósio de Milão ignoram, em seus escritos, a persecução desencadeada por Nero.

Até Santo Agostinho de Hipona, em seu livro “De Civitate Dei” faz uma lista exaustiva dos acontecimentos de Roma até o ano 410 d.C. sem sequer acenar à essa horrível perseguição. Para não falar no apóstolo João e no evangelista Lucas (falecido em 93 d.C.) os quais, mesmo tendo vivido naquela época, nada falam a respeito do martírio de tamanha “multidão”; enfim, nada aparece nos Atos, nas Epístolas e no Apocalipse. Nem sequer os bispos Inácio de Antioquia e Policarpo de Esmirna, autores de importantes epístolas entregues dois séculos depois ao apologista Eusébio, acenam à matança ordenada por Nero.

Mas o que nos deixa ainda mais desconfiados é o absoluto silêncio do historiador Flávio Josefo que, encontrando-se em Roma justamente no biênio 64-65 d.C. foi testemunha ocular duma das piores tragédias do Mundo Antigo. Apesar de Flávio Josefo, autor da “Guerra Judáica”, ser um cronista extremamente atento até aos pormenores ao ponto de nos contar que o rei Herodes tinha o costume de tingir seus cabelos, do incêndio que destruiu a capital do maior império do mundo e da grande perseguição não narra absolutamente nada em seus livros! Como explicar esse inacreditável lacuna se não admitindo uma censura sucessiva da Igreja? Obviamente o Vaticano não podia permitir que um dos maiores cronistas da época mencionasse o incêndio sem, ao mesmo tempo, contar do martírio duma “multidão” de cristãos: consequentemente, resolveu eliminar os capítulos relativos ao desastre. Então de onde vem essa afirmação da Igreja a qual sustenta, com absoluta segurança, que durante o reinado de Nero uma multidão de cristãos, acusada injustamente, sofreu suplícios terrificantes?

Poderíamos considerar um capítulo, quase idêntico ao de Tácito, registrado pelo historiador cristão Sulpício Severo (360-420 d.C.) na sua “Historia Sacra” (II:29) escrita no IV século e tida como uma coletânea de fatos parcialmente inventados, embora bem redigidos. Mesmo com toda a nossa boa vontade, não podemos deixar de observar que no relato de Sulpício Severo, além dele jamais nomear Jesus e Pilatos, falta qualquer referência a Tácito, único, entre os cronistas imperiais, a descrever o evento sensacional ocorrido no século I. Devido Sulpício ter vivido quase quatro séculos depois de Nero, uma pergunta legítima fica sem resposta: de onde ele tirou essas informações se nenhum Apóstolo, Padre da Igreja ou apologista havia falado antes desses eventos? Por isso deduzimos que as crônicas de Sulpício Severo, contidas no "Codex Vaticanus Palatinus Lat. 825" também do século XI, foram adulteradas e os manuscritos originais destruídos.

Resta uma única fonte importante: os Annales de Tácito e, mais exatamente, o citado Livro XV, parágrafo 44 onde ele escreve que: “Um boato acabrunhador atribuía a Nero a ordem de pôr fogo na cidade. Então, para sufocar os boatos, Nero imaginou culpados e entregou às torturas mais horríveis esses homens detestados pela sua má fama, que o povo apelidava de cristãos. Este nome vêm-lhes de Cristo, que sob o reinado de Tibério, foi condenado ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos. Esta seita perniciosa, reprimida a princípio, expandiu-se de novo, não somente na Judéia, onde tinha a sua origem, mas na própria cidade de Roma”. Seria portanto o depoimento de Tácito a prova definitiva do martírio dos cristãos da primordial Igreja romana?

A mentira

A resposta é não! Não porque nesse breve parágrafo é contido um erro que revela quanto o texto foi adulterado (interpolado) por escribas cristãos da Idade Média. Tudo gira em torno da palavra “procurador”. No evangelho de Lucas lemos o seguinte: “Anno autem quinto decimo imperii Tiberii Caesaris, procurante Pontio Pilato Iudaeam…” que significa “No décimo quinto ano do império de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos procurador da Judéia...” (Lucas 3:1). Acontece, porém, que Pilatos não era Procurador e sim “Praefectus” fato, isso, confirmado por uma descoberta efetuada por arqueologistas italianos, em 1961, na cidade de Cesaréia, capital imperial da província da Judeia. Numa lápide, achada dentro do anfiteatro da cidade, está gravada na pedra a seguinte inscrição: TIBERIEUM PONTIUS PILATUS PRAEFECTUS IUDAEAE.

Tácito, alto funcionário imperial, que já havia sido Procurador na Ásia e Cônsul em Roma, e que conhecia, por experiência direta o significado dos títulos atribuídos aos funcionários públicos, jamais teria confundido um Procurator com um Praefectus! Seria como se um moderno Governador no Brasil confundisse o cargo de Prefeito com o de Presidente da Câmara dos Vereadores! Simplesmente impossível! Mas, como o evangelista Lucas havia cometido esse erro, um ignoto escriba medieval, a mando de algum bispo poderoso, resolveu interpolar o texto de Tácito imaginando que a fraude passasse despercebida. A Igreja católica, quando se deu conta dessa incongruência, mandou que a palavra Procurator fosse substituída com a mais genérica de Governador e umas modernas traduções chegam ao absurdo de inventar o ridículo título de “Presidente”: “...sendo Pôncio Pilatos presidente da Judéia...” (Lucas 3:1).

Além disso, Tácito, em suas “Historiae” não fala uma palavra sequer sobre Jesus, Pôncio Pilatos, os Apóstolos e a persecução. Destarte os Annales e as Historiae apresentam uma discrepância que só pode ser explicada admitindo uma interpolação dos Annales.

A suspeita que se trate de uma interpolação encontra confirmação nos escritos de São Jerônimo de Estridão (347-420 d.C.), sacerdote cristão, teólogo, historiador e Doutor da Igreja. Em seu livro “Commentarium in Zachariam” (3:14) o santo fala que “Cornélio Tácito redigiu trinta manuscritos sobre as vidas dos Césares, desde a morte de Augusto até a morte de Domiciano” atestando, implicitamente, que ele havia lido os Annales de Tácito. Entretanto, no livro “De Viris Illustribus” escrito pelo próprio Jerônimo, no qual se encontra a lista dos primeiros gloriosos fundadores do cristianismo, nada se fala a respeito das crucificações de Nero sucessivas ao incêndio do ano 64 d.C. Como o livro “De Viris Illustribus” chegou até nós mediante o “Códex MS 2 Q Neoboracensis” redigido na segunda metade do século IX, ou seja, cerca de 150 anos antes do “Codex Laurentianus Mediceus MS 68 II”, fica evidente que esse último sofreu um interpolação na parte relativa ao parágrafo 44 dos Annales de Tácito.

Surge, nessa altura, um pergunta fundamental. Por qual motivo a Igreja falsificou o texto de Sulpício Severo e o de Tácito na metade do século XI? Decerto não foi por motivos puramente apologéticos, pois naquela época, a Igreja dominava toda a Europa e os povos pagãos haviam sumidos há vários séculos. A verdadeira razão está na origem do Grande Cisma, iniciado já no século IX e que chegou ao clímax no ano 1.054. As disputas entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla não eram apenas de natureza teológica e doutrinal, mas tinham a ver com a supremacia do bispo de Roma que, considerando-se legítimo herdeiro de São Pedro, supostamente crucificado em Roma durante a perseguição de Nero, pretendia exercer o poder espiritual e temporal sobre todas as Igrejas do ecúmeno cristão. No entanto, sem a grande perseguição, sem o martírio de Pedro em Roma, como poderia o bispo da ex-capital imperial justificar a autoridade moral para se erguer acima dos bispos das outras dioceses do Império? É a partir dessas considerações que se compreende a necessidade de forjar documentos aptos a comprovar a primazia da sede de Roma.

Mas afinal, Nero perseguiu alguém? Na verdade Suetônio fala sim de uma perseguição de Nero contra “Cristãos” em Roma, mas fora do contexto do incêndio e sem mencionar Jesus, Pilatos e as crucificações. Visando interpretar os escritos de Suetônio temos, porém, que lembrar outro fato histórico relevante, ou seja, a revolta na Palestina iniciada no ano 66 d.C. dois anos depois do grande incêndio. Devido a grande maioria dos (poucos) cristãos de Roma serem judeus, é bastante provável que uns deles tenham sido confundidos com os judeus que estavam se levantando contra os romanos em todas as cidades do Império. É também plausível que com a palavra “Cristãos” o historiador, que escrevia em latim, tenha se referido a grupos de judeus simpáticos à causa dos revolucionários os quais aguardavam a vinda de um Messias que os livrasse do jugo romano. Como em latim Messias se traduz com o vocábulo (grego) Cristo, também o relato de Suetônio fica esclarecido no sentido que quando o autor fala em cristãos, na verdade se refere a messianistas judeus.

Entretanto, se alguém duvidar dessa explicação, simplesmente confira o "Epistolarum X96" que Plínio o Jovem, governador da Bitínia, enviou ao imperador Trajano. Plínio cita sim o nome “Cristo” e a palavra cristãos, mas omite o nome desse Messias chamando-o apenas de Cristo, não Jesus. De fato, na Bitínia não existiam seguidores de Jesus, pois Deus em pessoa havia proibido os Apóstolos de converter os habitantes daquela região: “E, passando pela Frígia e pela província da Galácia, foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia. E, quando chegaram a Mísia, intentavam ir para Bitínia, mas o Espírito não lhes permitiu” (Atos 16:6-7). O que havia naquela província eram Essênios messianistas que enfrentaram o suplício, mas, por não reconhecer Jesus, não foram considerados mártires pela Igreja. Se realmente no começo do II século houve um grande Messias, um Salvador, um “Cristo”, ele foi o combatente Simão bar Kokhba que liderou a terceira revolta judaica contra o Império Romano, ocorrida de 132 a 135 d.C. O então líder do Sinédrio de Jerusalém, Rabi Akiva, declarou: “Uma estrela surgiu de Yaacov Bar Koziva descende de Yaacov: ele é o Mashiach [o Messias]” (Bamidbar 24:17).

Conclusões

Muito foi dito e escrito sobre o incêndio do ano 64 d.C. que destruiu boa parte de Roma e sobre o qual, em tempos relativamente recentes, foram publicados romances e produzidos filmes mostrando uma perseguição que jamais existiu. Os únicos fatos concretos dos quais temos uma relativa segurança são os seguintes:

1) O desastre foi acidental. Nem Nero, nem os cristãos estão relacionados com as causas do incêndio;

2) Nenhum historiador da época, com a exceção de Tácito, fala na perseguição;

3) Nenhum Padre da Igreja, nenhum Apóstolo, nenhum Evangelista relata o martírio dos cristãos durante o reinado Nero;

4) O parágrafo de Tácito contem um erro crasso que só pode ser explicado como sendo uma interpolação de época medieval.

5) São Pedro não foi martirizado, pelo menos não em Roma;

6) Pode ser que uns “Cristãos” tenham sido executados por ordem de Nero no âmbito da insurreição iniciada na Palestina dois anos depois do desastre, mas sem crucificações, feras, fogueiras e, acima de tudo, não por motivos eminentemente religiosos. Contudo, seria oportuno esclarecer que a palavra “Cristãos” podia se referir tanto a messianistas judeus quanto a seguidores de Jesus. Como os textos originais não existem mais, essa ambiguidade vai permanecer para sempre.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 07/01/2018
Reeditado em 18/02/2021
Código do texto: T6219572
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