O Deus Verdadeiro - Análise de Alguns Textos Bíblicos Trinitários

ROMANOS 9.5

“Dos quais é Cristo segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente”[1]. Essa passagem afirma categoricamente que Cristo é o Deus bendito eternamente. A Tradução do Novo Mundo coloca um ponto final ali, vertendo assim: “descendeu o Cristo segundo a carne. Deus, que está sobre tudo, seja louvado para sempre”[2]. Mas isso torna a doxologia totalmente desconexa do contexto. Se Paulo está falando sobre Cristo, Ele está exaltando a divindade de Jesus para destacar a importância dos judeus, pois o Cristo veio deles, para mais adiante discorrer a respeito do assunto em pauta, que é a salvação dos mesmos. Fora isso, essa doxologia ficaria totalmente sem nexo, e pareceria mais um erro de copista do que a inteligentíssima coerência paulina. Até porque o contexto é mais um lamento (pela queda de Israel) do que um motivo de louvor ao Senhor.

O Reverendo William Sanday[3] argumenta que a construção grega do versículo também favorece que a benção se aplica a Cristo, uma vez que se fosse uma doxologia formal a expressão “Deus bendito eternamente” deveria estar no começo do parágrafo.

Note que não apenas a plena divindade de Cristo é mencionada aqui, mas também sua plena humanidade. Cristo é um homem, de carne e osso, que tem uma ascendência verificável, uma genealogia.

I JOÃO 5.7-8

“Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um.” Esse é um versículo bastante debatido, pois segundo Daniel Wallace[4], diretor do Center for the Study of New Testament Manuscripts, a maioria dos estudiosos contemporâneos defende que a clausura que fala das três testemunhas celestes é um acréscimo apócrifo, o que explica porque algumas traduções trazem essa parte entre parêntesis ou simplesmente omitem, não apenas as modernas, mas algumas antigas, como nas edições do Novo Testamento de Erasmo de Roterdã de 1516 e 1519[5].

Até Martinho Lutero[6] argumentou contra o acréscimo dessa clausura a partir do fato de que no céu não precisaremos de testemunho, já que a Trindade se revelará diretamente para nós. Esse é, contudo, um argumento muito ruim, uma vez que o texto está dizendo que as três testemunhas atestam de Cristo AGORA desde o céu, e não que irão testificar futuramente no céu.

Ainda que nós tiremos da Bíblia esse versículo que tão claramente fala sobre a Trindade, isso não afetaria em nada a nossa crença na doutrina, pois há muitos outros que a corroboram. Por isso mesmo a maioria desses estudiosos que não creem que essa clausura é inspirada creem ainda assim na Trindade.

COLOSSENSES 2.9

Esse versículo diz que em Cristo "habita corporalmente toda a plenitude da divindade". Em Cristo a divindade não apenas se manifestou, mas Nele habita eternamente. Cristo não é apenas uma emanação de Deus, mas é o próprio Deus em carne. Portanto, quem nega a divindade de Cristo nega o próprio Cristo, pois Deus é aquilo que Ele é, e uma vez que TODA a divindade habita Nele, não há Deus sem Cristo, de modo que negar a Cristo é negar Deus mesmo.

Esse texto também enfatiza a humanidade de Cristo, uma vez que a plenitude da divindade habita em um corpo. Isso mostra que a relação entre as duas naturezas de Cristo não é negação. A onipresença divina não anula a limitação espacial inerente a um corpo, nem a atemporalidade anula a temporalidade corporal, nem a onipotência anula as limitações físicas da humanidade, etc.. "As duas naturezas, inteiras, perfeitas e distintas - a Divindade e a humanidade - foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão; essa pessoa é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, porém, um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem" (CFW, VIII, II)[7].

O Expositor's Greek Testament[8] interpreta "corporalmente" não como uma referência ao corpo de Cristo, mas no sentido de "um todo orgânico", ou seja, Paulo está dizendo que a divindade habita em Cristo não fragmentariamente ou parcialmente, mas de maneira completa. Essa interpretação enfatizaria outro aspecto da Encarnação, uma conclusão lógica da doutrina da Simplicidade Divina, que Cristo não é apenas uma "parte" de Deus, mas Deus todo. As três pessoas não são três divisões no ser divino, mas Deus é todo Pai, todo Filho e todo Espírito Santo.

GÊNESIS 19.24

"Então, fez o SENHOR chover enxofre e fogo, da parte do SENHOR, sobre Sodoma e Gomorra"[9]. Nessa passagem conhecida, em que Deus destrói Sodoma e Gomorra, vemos um tipo de distinção no Senhor; há o Senhor que faz sofrer fogo e enxofre (provavelmente o anjo que estava com Ló), e o Senhor no céu da parte de quem o fogo vem.

Judas 1.4-7 parece lançar uma luz sobre essa ideia. No versículo 4, o irmão de Tiago chama Jesus de "Deus, único dominador e Senhor nosso". Daí nos versículos seguintes ele mostra que, após termos sido chamados por Deus (ou seja, Jesus), não devemos abusar da Sua graça, mas temermos ao Senhor. Então ele dá três exemplos do castigo do Senhor (ou seja, Jesus) àqueles que brincaram com a Sua graça. O primeiro é os judeus da geração de Moisés, que tentaram ao Senhor no deserto (e Paulo afirma categoricamente que o Senhor a quem eles tentaram era Cristo em 1Co 10.9). O segundo é o de anjos traidores. E o terceiro é Sodoma e Gomorra.

Uma vez que no versículo 4 Judas fala de Cristo, e no primeiro exemplo sabemos que o Deus que lemos no Antigo Testamento era Cristo, podemos inferir que o Senhor no segundo e no terceiro exemplo também era Cristo. Além disso, alguns intérpretes, como Matthew Henry[10], entende que João 5.22 implica que toda execução de juízo divino na história da humanidade foi feita pela segunda pessoa da Trindade, pois "o Pai a ninguém julga, mas deu ao Filho todo o juízo". Assim, voltando para Gênesis 19.24, podemos concluir que o Senhor que fez chover enxofre e fogo era o Filho, que se revelou a Abraão e a Ló, e o Senhor da parte de quem o fogo vem é o Pai, sendo esta, portanto, uma revelação um pouco velada da distinção de pessoas na Trindade.

SALMOS 2.7

Proclamarei o decreto: o Senhor me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei". O Novo Testamento aplica esse texto diversas vezes a Jesus Cristo, e o Credo Niceno afirma que Jesus é "o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o Pai"[11].

Quando foi determinado esse decreto? Ora, todos os decretos de Deus foram determinados na eternidade, portanto esse também. Mas o decreto da filiação de Jesus é diferente da filiação de todos os outros a quem a Bíblia chama de "filho de Deus", porque quando Deus determinou que eu me tornaria filho Dele pela fé, podemos pensar Nele dizendo "o Raphael será meu Filho, eu O gerarei", mas quando se trata de Cristo, Ele diz "tu és meu Filho, eu hoje te gerei". Ou seja, Cristo já existia antes do tempo, e Deus O gerou como Seu Filho eternamente. Nesse sentido Jesus é o Unigênito de Deus (Jo 3.16), uma vez que só Ele foi gerado dessa forma. Isso exige que Cristo seja atemporal. Se Ele é atemporal, Ele também não pode ser constituído por matéria, energia ou ocupar um lugar no espaço, uma vez que nenhuma dessas coisas existia.

Lemos em Hebreus 1.3-6 o que essa geração eterna significa: Jesus é o resplendor da glória de Deus, a expressa imagem do Seu ser, e por isso até os anjos devem adorá-lo, conclusão a que chega também o versículo 12 do salmo 2: "Beijai o Filho". Como só Deus é digno de ser adorado, vemos que a filiação de Cristo é diferente da nossa, pois ela é tal que Cristo é verdadeiramente Deus.

SALMOS 45.6-7

Esse texto, que Hebreus 1.8-9 atribui a Jesus Cristo, e o próprio contexto já deixa bem claro que todo salmo é um hino ao Messias, diz: "o teu trono, ó Deus, é eterno e perpétuo; o cetro do teu reino é um cetro de equidade. Tu amas a justiça e odeias a impiedade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria mais do que a teus companheiros." Aqui vemos claramente a divindade de Jesus e a sua distinção em relação ao Deus Pai. Uma vez que a unção frequentemente simboliza o Espírito Santo na Bíblia, podemos perceber inclusive uma distinção da terceira pessoa da Trindade nesses versículos, o que significaria que o Deus Pai derramou o Espírito Santo em Jesus encarnado, o que vemos revelado nos evangelhos, pelo que Jesus fez coisas as quais nenhum outro homem jamais repetiu.

Jesus, tendo natureza divina, tem também autoridade divina que é eterna, mas esse texto atesta que a natureza humana de Cristo também foi exaltada acima de todas as coisas. Uma vez que as duas naturezas se interpenetram de tal forma que compõe uma única pessoa, Deus se humilhou ao assumir a natureza humana, tomando a forma de servo, mas quando Jesus voltou ao Seu estado de glória original, necessariamente a natureza humana teria que ser exaltada também.

I JOÃO 5.20

A parte final desse versículo diz: "no que é verdadeiro estamos, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna". Aqui pode haver o debate se quando João diz "este é o verdadeiro Deus" está se referindo a Jesus ou ao Pai. A favor da primeira interpretação está o fato de que "é a vida eterna" é mais propriamente atribuído a Jesus do que ao Pai, como o próprio João faz diversas vezes. Henry Alford menciona que muitos intérpretes entendem que a palavra "este" se aplica mais naturalmente ao último substantivo mencionado, Jesus Cristo, embora ele mesmo discorde dessa interpretação[12].

Além disso, duas vezes antes da frase "este é o verdadeiro Deus", João chama Jesus de "verdadeiro", no mesmo versículo, de modo que não é nenhum salto lógico crer que a terceira menção a "verdadeiro" se trata de Jesus. Aliás, várias vezes nos escritos joaninos Jesus é dito ser A Verdade (Jo 14.6), de modo que o Deus Verdadeiro só pode ser Jesus.

Segue-se no versículo 21 uma advertência contra a idolatria, pois se Jesus é o verdadeiro Deus e a verdadeira vida, aquele que crê em um Deus que não é o que encarnou em Jesus Cristo crê em um deus falso, um ídolo. Segue-se que se alguém não acredita na Trindade, essa pessoa não é apenas um cristão equivocado, ele é um idólatra e pagão, que não tem o conhecimento de Deus e a vida eterna.

ATOS 5.1-32

Um certo homem chamado Ananias, com Safira, sua mulher, vendeu uma propriedade e reteve parte do preço, levando o resto para os apóstolos, afirmando ser o valor todo propriedade. Disse-lhe Pedro: "Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, e retivesses parte do preço da herdade? (...) Não mentiste aos homens, mas a Deus" (v.3-4) E Ananias, ouvindo estas palavras, caiu morto. Essa passagem mostra duas verdades importantes sobre o Espírito Santo. Primeiro, que Ele é um ser pessoal, uma vez que não se pode mentir para uma "força ativa"; só é possível mentir para uma pessoa. Segundo, essa passagem nos revela que o Espírito Santo é Deus, pois Pedro chama aquele a quem Ananias mentiu de Deus.

Mais tarde Safira veio até Pedro e repetiu a mesma mentira do marido, pelo que Pedro disse: "Por que é que entre vós vos concertastes para tentar o Espírito do Senhor?" (v.9). Ora, não se pode tentar uma mera energia, o que prova que se o Espírito pode ser tentado, Ele é um ser pessoal. Depois disso Safira morreu também, e houve um grande temor em toda a igreja, e em todos os que ouviram estas coisas.

Tempos depois, nos versículos 30-32, Pedro diz em um discurso: "O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, (...) e nós somos testemunhas acerca destas palavras, nós e também o Espírito Santo, que Deus deu àqueles que lhe obedecem". Aqui vemos novamente Pai, Filho e Espírito Santo como pessoas distintas, mostrando que o Espírito é Deus, é um ser pessoal, não é o Pai e não é o Filho. Portanto, Ele é a terceira pessoa da Trindade.

LUCAS 22.42

No Getsêmani Jesus orou: "Pai, se queres, passa de mim este cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a tua". Isso significa que, durante a Encarnação, Jesus Cristo era submisso ao Pai. Gerald Bray, resenhando o livro “The Trinity And Subordinationism: The Doctrine Of God And The Contenpory Gender Debate”, de Kevin Giles[13], defende que, ao contrário do que Giles ensina, Jesus Cristo é ETERNAMENTE submisso ao Pai. Isso não implica inferioridade, mas uma subordinação funcional. O relacionamento servil do Filho com o Pai é voluntário de sua parte, não coagido, porque não há conflito interno, divisão ou diferença de vontade entre as pessoas divinas, e não há nenhuma permutabilidade das pessoas e suas relações.

Essa submissão se revelou na Encarnação, mas, segundo Giles, como o trabalho do Filho para a nossa salvação está enraizado na eternidade, essa submissão só pode ser eterna. Daí surge uma dúvida: Será que essa submissão eterna implica em possíveis conflitos entre a vontade do Pai e a vontade do Filho? Jesus mesmo não diz “não se faça a minha vontade, mas a tua”?

Contra isso, Deddo faz uma interessante defesa em seu artigo “The Trinity and Gender: Theological Reflections on the Differences of Divine and Human Persons”[14]. As premissas são as seguintes: (1) a diferenciação das pessoas da Trindade não é constituída por uma diferença de papéis; (2) não é constituída por uma diferença de funções; (3) e não há qualquer divisão dos vários atributos divinos, especialmente os de poder ou autoridade, na relação entre as pessoas divinas; (4) portanto, não há qualquer conflito interno ou divisão ou diferença de vontade entre as pessoas divinas.

Quanto a (1) e (2), ele afirma que a Igreja nunca utilizou a idéia da distinção de papéis ou funções para afirmar a diferença entre pessoas da Trindade. Isso porque esses papéis são funções relacionadas à Criação. Antes da Criação não poderia haver distinções de papeis. Se não havia distinção de papeis antes da Criação, mas já havia distinção de pessoas, logo a distinção entre pessoas não pode ser por causa da distinção de papeis. As quatro premissas apresentadas por Deddo nos conduzem a uma quinta: As diferenças interpessoais trinitárias constituem uma eterna não-permutabilidade das pessoas e suas relações.

Podemos usar como ponto de partida o Credo de Atanásio, quando este mostra qual é a distinção entre as pessoas da Trindade, nos artigos 20-22: “O Pai não foi feito de ninguém, nem criado, nem gerado. O Filho procede do Pai somente, nem feito, nem criado, mas gerado. O Espírito Santo procede do Pai e do Filho, não feito, nem criado, nem gerado, mas procedente”[15]. Ou seja, a única diferenciação eterna entre as pessoas da Trindade é essa relação de geração e procedência. O Pai é sempre o Pai e nunca o Filho, e o Filho é sempre o Filho e nunca o Pai ou o Espírito, essas pessoas não são nem intercambiáveis nem variáveis. Isso significa, portanto, que só há uma única vontade na Trindade.

Então o que significa Jesus dizer que Ele tinha uma vontade e o Pai outra? A resposta tradicional da Igreja é que uma vez que Jesus tem duas naturezas, Ele tem duas vontades, a vontade humana e a vontade divina. Jesus não seria plenamente humano se não tivesse uma vontade humana. Assim, o aparente conflito de vontades nesse versículo (aparente porque a vontade humana voluntariamente se submete à vontade divina) na verdade é um conflito de Jesus consigo mesmo.

[1] Salvo aviso contrário, todas as referências bíblicas da Almeida Revista e Corrigida. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/>

[2] Disponível em: <https://www.jw.org/pt/publicacoes/biblia/nwt/livros/>

[3] SANDAY, W. Ellicott's Commentary for English Readers. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/ellicott/romans/1.htm>

[4] WALLACE, D. Inerrancy and the Text of the New Testament: Assessing the Logic of the Agnostic View.

[5] JONGE, H. Erasmus and the Comma Johanneum. Ephemerides Theologicae Lovanienses, 1980, 56, fasc. 4.

[6] POSSET, Franz. John Bugenhagen and the Comma Johanneum. Concordia Theological Quarterly, Volume 49, Number 4.

[7] CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINTER. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm>

[8] NICOLL, Robertson. Expositor's Greek Testament. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/egt/>

[9] Tradução Almeida Revista e Atualizada.

[10] HENRY, Matthew. Commentary on the Whole Bible. Disponível em:<http://biblehub.com/commentaries/mhcw/>

[11] CREDO NICENO. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/credos/credoniceno.htm>

[12] ALFORD, Henry. Greek Testament Critical Exegetical Commentary. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/alford/>

[13] BRAY, Gerald. Review Article - The Trinity And Subordinationism: The Doctrine Of God And The Contenpory Gender Debate.

[14] DEDDO, Gary. The Trinity and Gender: Theological Reflections on the Differences of Divine and Human Persons. Priscilla Papers Academic Journal, Vol. 22, No. 4, Outono de 2008.

[15] CREDO DE ATANASIO In ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras. São Paulo: Os Puritanos, 1998. Pag. 180-182.