A natureza de Deus

A NATUREZA DE DEUS
Miguel Carqueija


Causa-me espanto como algumas pessoas nutrem conceitos estranhíssimos a respeito de Deus. Por não atinarem um conceito correto muitas pessoas recusam-se a crer ou relaxam sua fé. No entanto a noção de Deus, sua natureza e atributos, é límpida e fácil de compreender, sem embargo de que nós não podemos com nossas fracas luzes abarcar em compreensão o Ser Infinito, já que a Ciência mais avançada não explica sequer uma célula.
Certa vez uma pessoa (e não lembro o que foi que eu disse que motivou tal observação) disse para mim ter pensado que Deus só havia começado a existir depois que Jesus veio ao mundo.
O que terá posto naquela cabeça uma ideia tão esquisita? Fiquei espantadíssimo mas procurei esclarecê-la com o óbvio: mas então quem criou o mundo? O mundo já existia muito antes de Jesus ter vindo. E o universo inteiro, quem criou?
Na discussão com ateus topei com outro estranho argumento que bem ilustra a “ignorância religiosa” de que falou Bento XVI: nós cristãos acreditaríamos num “velho de barba que fica flutuando lá por cima”. Horripilante esse erro. Ou seja, chegam a confundir teologia com iconografia. Como Deus é puro espirito, não tem corpo e portanto não tem uma forma física, a Cristandade forjou essa imagem de um ancião de longa túnica e longa barba branca, apenas para simbolizar poder, dignidade e sabedoria. Mas Deus, sendo o Criador, organizador e mantenedor do universo, é claro que não é um ancião de barba e não está portanto limitado no espaço e no tempo como os “deuses” das mitologias que representam grandes deturpações do conceito de divindade.
Os ateus também costumam vir com um argumento ridículo para contestar a crença no Ser Supremo, e que só demonstra a sua incompreensão do conceito: “E quem criou Deus?”
O ilustre Professor Felipe Aquino já respondeu brilhantemente essa pergunta tola: Deus só poderia ter sido criado por outro “deus”, e esse por outro, e assim por diante “ad infinitum”. Absurdo total. Ora, é preciso entender um pouco o conceito filosófico de eternidade, e que Deus é afinal, o “existente em essência” ou seja faz parte da essência divina o existir, ou seja Deus é o ser necessário enquanto nós outros somos contingentes. Existimos pela generosidade divina. Sobre isso recomento a leitura do excelente livro de Frei Sandro Grimani, “O invisível na harmonia lógica do cognoscível”.
Vejamos então o que, com nossas limitadas luzes humanas, podemos estabelecer sobre Deus. Vejam bem, aqui segue o conceito puro de divindade. Tudo o mais, inclusive a absurda idolatria (nos velhos tempos, e a Bíblia fala muito sobre isso, esculpiam-se estátuas que eram adoradas como se deuses fossem, não obstante não poderem falar ou se mexer) é deturpação do conceito.
Deus é o Ser Supremo, cuja existência é necessária já que o universo não pode dar suporte a si mesmo. É onisciente (conhece tudo), onipotente (seu poder é infinito), onipresente (está presente em toda parte), além de eterno e sumamente bom e perfeito. Sendo puro espírito, não é composto de partes. É o criador “de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Deus existe na Eternidade e por isso sua mente abarca o passado, o presente e o futuro.
Até aqui falamos de elementos que podem ser alcançados pela razão humana, e assim podem ser estabelecidos pelos filósofos. Já a Santíssima Trindade é algo que a simples razão humana não poderia saber, houve necessidade da Revelação. Mesmo assim, em sua essência a Trindade é um mistério insondável de Deus.
Conta-se que o grande Santo Agostinho, que foi bispo de Hipona, no norte da África, no começo da Idade Média (e um dos maiores escritores católicos de todos os tempos), certa ocasião caminhava pela praia, refletindo sobre o mistério da Santíssima Trindade e buscando entendê-lo e decifrá-lo, quando chamou sua atenção um garotinho que, acomodado no chão, ocupava-se em pegar água do mar com uma concha e jogá-la num buraco escavado na areia. Intrigado com aquela ocupação o santo achegou-se e indagou da criança o que ela estava fazendo.
— Eu vou jogar toda a água do mar nesse buraco — foi a resposta do menino.
Agostinho teve um momento de riso condescendente diante do que lhe pareceu a extrema ingenuidade de uma criança.
— Meu filho, não vês que é impossível toda a água do mar caber nesse buraquinho?
— Mais impossível ainda — foi a surpreendente resposta — seria tu entenderes o mistério da Santíssima Trindade!
Disse isso e desapareceu, pois era um anjo, ao que parece.
Não obstante essa admoestação celeste a teologia católica esclareceu alguma coisa sobre o dogma da Trindade, embora é claro nós não possamos realmente compreendê-lo da mesma forma como os mais geniais cientistas são impotentes para compreender a verdadeira natureza dos fenômenos físicos, da luz, da gravitação etc. São Tomás de Aquino, em seu excelente “Compêndio de Teologia”, nos orienta: o grande mestre explica que as Pessoas diferem entre si apenas por diferenças de relação.
Explicando melhor, temos no Pai o Ser Divino em sua essência criadora; ao criar e governar o universo Ele o faz mediante uma Palavra ou Verbo, que é a Segunda Pessoa. Conhecendo tudo de si e de sua Criação, Deus também ama, a si mesmo e à sua criação; este Amor divino é a Terceira Pessoa ou Espírito Santo. Ora, podemos entender que Deus não pode existir sem pensar e sem amar, e que todos esses atributos dele não fazem três deuses mas um só. Por que dizemos que o Filho procede do Pai? Porque para verbalizar Deus tem de existir; e em suma, o Espirito procede do Pai e do Filho porque para amar, tem de ter o objeto do amor, que no caso das criaturas espirituais e materiais precisa ser criado pelo Verbo. Esse Amor se dirige a si próprio (pois é evidente que Deus ama a si próprio, como nós próprios devemos ter nossa auto-estima) mas também se dirige previamente às criaturas, que mesmo criadas no tempo já se encontram nos decretos eternos do Criador.
Assim sendo Deus é Pai, Filho e Espírito Santo porque é Criador, Palavra e Amor. E sendo Deus eterno e onipotente esses atributos possuem nele tal força que constituem hipóstases, pessoas.
Nós também temos nossos atributos que se relacionam entre si, sem nos tornarem seres múltiplos. Eu por exemplo sou o Miguel mas no meu ser existem memória, vontade, sentimento, conhecimento, peso, densidade, idade, tamanho etc. No entanto eu sou um só.
Claro está que isso tudo somente arranha (ou nem isso, apenas tangencia) o mistério da Santíssima Trindade, até porque em nós os atributos não possuem tamanha força. Quanto a saber mais, lembrem-se de Santo Agostinho.
Um último detalhe: Deus não está no tempo mas na Eternidade que não é como uma linha mas um ponto sem dimensão. Assim, Ele pode descortinar de uma só vez o Tempo inteiro, e o futuro é conhecido por sua presciência. Assim também os mais íntimos dos nossos pensamentos não lhe podem ser ocultos. Não existe nada mais maravilhoso que o ser divino, nem maior generosidade que a do Todo Poderoso ao nos reservar (bastando apenas que de fato aceitemos esse convite) a eternidade em sua companhia, na Visão Beatífica.

Rio de Janeiro, 11 de junho de 2017.