REENCARNAÇÃO?

REENCARNAÇÃO?
Miguel Carqueija



Que me desculpem os nossos irmãos espíritas kardecistas e outros, que creem na doutrina reencarnacionista. Sou obrigado a explicitar que não compartilho tal crença.
Costumo dizer que, em matéria de reencarnação, só acredito na da Sailor Moon que, estando no domínio da ficção, funciona. Porém na vida real essa doutrina choca frontalmente com o Cristianismo, entendido em sua ortodoxia. Sei que muitos católicos dizem crer na reencarnação, mas ao fazê-lo contrariam o princípio de identidade das coisas pelo qual uma cadeira é uma cadeira, um elétron é um elétron, George Sand é George Sand e o Catolicismo é o Catolicismo. Como de fato pode uma pessoa se declarar católica se nem crê na doutrina católica?
Explicando melhor: nós católicos, bem como os protestantes e ortodoxos, cremos que Jesus Cristo é Deus, é o Verbo Eterno (a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, ou seja, a Palavra Divina) unido a uma natureza humana e, de resto, tendo em si toda a divindade, o Pai e o Espírito Santo, pois Deus é um só e indivisível. E cremos que este Deus se encarnou para nos trazer a Revelação definitiva e, dando-se em sacrifício por nós, resgatou a culpa do pecado original e nos disponibilizou a salvação, só restando que cada um de nós a aceite.
Ora bem, pela doutrina espírita nós não nos salvamos pelo Sangue de Cristo, e sua Ressurreição, mas pelas reencarnações pois não há verdadeiro lugar para o perdão: se fez vai ter que pagar, voltando à Terra, ou migrando para outros planetas; pior, os entrechoques entre pessoas que se magoaram numa encarnação continuam nas seguintes. Isso funciona mais ou menos assim (ainda que espíritas possam contestar os detalhes pois estamos apenas usando aqui exemplos fictícios): você esfaqueou uma pessoa nesta encarnação? Não adianta você se arrepender ou até tornar-se um santo nesta vida: vai retornar, vai esbarrar com a mesma pessoa (estarão com nomes, aparências ou até sexos mudados) e esta pessoa vai te esfaquear, por causa da “lei do retorno”. Mesmo que não suceda exatamente assim, a ideia é que inimigos nesta vida, por antipatia mútua, em vida anterior se combateram, até de forma violenta. Narrativas encontradas em obras espíritas dão conta de tais círculos viciosos. No fim de contas serão necessárias centenas ou até milhares dessas transmigrações para que uma alma, finalmente evoluída e depurada, seja poupada de novas encarnações, a não ser que venha em missão como pretendem que fez Jesus Cristo, que assim não seria o Verbo mas apenas um espírito superior que aqui desceu para ensinar.
Mas, o que teria a dizer a própria escritura a esse respeito? Especialmente significativa é a história do “bom ladrão” a que a Tradição dá o nome de Dimas: em Lucas 23, 39-43 lemos:

“Um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!” Mas o outro repreendeu: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo; recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum.” E acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu reino!” Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo, hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.”

Como se vê, apesar dos crimes que cometeu, o “bom ladrão” se arrependeu tão profundamente que, ao que parece, nem no Purgatório teria de passar, a não ser talvez por pouquíssimo tempo, pois naquele mesmo dia estaria no Céu com Jesus! Não iria reencarnar 50 ou 500 vezes...
Será mesmo justo que uma pessoa — ao contrário do que Jesus ensinou — tenha de ser castigada por cada coisinha errada cometida, de nada adiantando o arrependimento, a fé e as boas obras? E nem os sacramentos? É a Lei de Talião levada à exacerbação, uma justiça cruel e impiedosa. Pior, você sofre a indução de se arrepender por coisas que supostamente tenha feito em vidas passadas, pois de nada se lembra. Conheci uma moça décadas atrás (depois perdi totalmente o contato) que era adepta não do espiritismo, mas de uma seita japonesa então em grande voga no Brasil, a chamada “Igreja Messiânica”, que tinha a reencarnação em sua doutrina. Pois essa pessoa, estando atravessando fase muito difícil na vida, disse-me que em outra encarnação devia ter sido uma pessoa terrível. Quer dizer, se você crê na reencarnação acabará sentindo remorso (e se torturando com ele) por pecados e crimes que imagina ter praticado em outras vidas.
É fazer pouco da misericórdia divina. Frei Boaventura Kopplenburg OFM, no magnífico livro “O reencarnacionismo no Brasil” (Editora Vozes, Petrópólis-RJ, 1961) classificou mesmo como “tirania” aquilo que nos querem impingir, essa interminável metempsicose.
Admito que a ideia da reencarnação tem seu lado aliciante porque as pessoas não querem morrer, deixar o mundo com seus prazeres e dores, no fundo esse deve ser o motor de tal crença. Mas não é isso a Esperança, uma das três virtudes teologais nas quais os católicos acreditam, nos promete. Pois o que nós queremos e esperamos é a Visão Beatífica, ou seja o contato direto com Deus numa felicidade eterna. Esta felicidade em comunhão com Deus nos é negada pelo espiritismo reencarnacionista (há uma linha do Espiritismo que não aceita a reencarnação, mas é pouco conhecida no Brasil), que inclusive conserva Deus sempre afastado, inacessível, já que Ele não se revela e mesmo nos “mundos superiores” relatados em obras doutrinais, Deus não aparece, é sempre somente um nome. Lembro que Dom Marcos Barbosa, numa de suas saudosas palestras radiofônicas, observou que Kardec “ousou” escrever que uma felicidade eterna com Deus seria uma felicidade “estúpida e monótona”.
Ora bem, é esta felicidade, obviamente nem estúpida e nem monótona, mas ainda fora do alcance de nosso entendimento, que nos aguarda, desde que correspondamos ao convite de Jesus Cristo. E não iremos reencarnar, mas ressuscitar no fim do mundo, e ressurreição é coisa totalmente diferente de reencarnação. A ressurreição significa que nosso corpo original nos será devolvido mas já agora imortal, para o destino definitivo. Lembrando que a dissolução do corpo morto e sua dispersão para outros corpos (vermes, terra, atmosfera e por aí afora) nada tem a ver com a ressurreição, pois a identidade do corpo não é pelas moléculas, mas pelo DNA que é um código matemático. Ou seja, qualquer matéria serve desde que se aplique a ela o DNA da pessoa. Assim voltará o mesmo corpo no Dia do Juízo Final.

Rio de Janeiro, 25 de maio de 2017.