VIRAR DA PÁGINA AO REAL ?
«A propósito da Ascensão 2017» - Réplica a uma dissertação preocupante:
Tese do Dr. Manuel Coelho:
“… Uma história das romarias da vida que não tem fim. Mas é quase sempre bom subir ao monte para ver de lá o vasto horizonte onde andamos a fazer das nossas vidas coisas belas e outras não… As romarias aos Senhores e às Marias ou Senhoras santas das tradicionais devoções, estão sendo cada vez mais etnografias teatrais do que outrora foram crenças reais… Turismo religioso e ocupação de tempos livres tomando a angústia do pecado e a ignorância das verdades mais humanas e terrenas, que todos somos. Vivemos um grande virar da página da religião” (e da história?)!
Frassino Machado:
Estimado amigo, depois da sua dissertação “de prego a fundo” sobre as «contingências da vida» a propósito da procissão do Senhor dos Aflitos, em Nespereira, com uma acentuada carga mística, quase metafísica… tenho a comentar o seguinte:
Turismo religioso? Nem pensar, nem nunca na vida! Eu direi, aqui sim, que estamos perante um fenómeno de profunda manifestação humanista, no que toca em última instância à real condição humana. O ser humano é mesmo isto: vagueia entre dois limites extremos: a abjecção do que se é (o que Raul Brandão apelida de “húmus”) e aquilo que se sonha ser (atracção pelo espanto, no dizer do mesmo autor). Ou seja, o relativismo do próprio ser (Dasein, segundo Heidegger) e a infinitude da consciência do mesmo ser (segundo Teilhard).
Daí que estamos perante a religiosidade das atitudes circunstanciais de que todo o ser humano é capaz: confrontando-se na eminência da culpa – vulgo o pecado – e ou o absurdo da existência. Aliás, ele jamais poderá passar sem esta duplicidade emotiva.
A psicoterapia – higiene da alma – necessita por vezes de subir ao tal monte, seja ele qual for, na expectativa justificável de um bálsamo para as suas maleitas e angústias. Agarra-se aos ventos/sentimentos da fé e sobe à montanha, indo ao encontro de um taumaturgo qualquer, que lhes cure as ditas.
E este é que é o «real» patenteado pelas peregrinações e romarias. A bem dizer, se se inquirir aleatoriamente qualquer romeiro acerca do sentido do seu gesto (não teatral) a resposta que lhes é genuína e espontânea é: - não sei porquê, mas acredito sempre que algo pode acontecer!
Portanto, não se trata de “turismo religioso” (que existe todavia à volta destas manifestações) mas tão só da realidade nua e crua da natureza humana!
Em nota final não posso deixar de me recordar que, em vista de tal fenómeno, tem havido desde sempre pensadores e mesmo cientistas que ousam afirmar peremptoriamente que a «subida à montanha» pode ser “condição suficiente” de um lenitivo para qualquer penitente: e o milagre, por vezes, acontece. Basta recordar a historicidade dos grandes líderes ou fundadores das diversas religiões da humanidade, para que esta dedução possa ter consistência.
E, antropologicamente, também se constata, em todas as partes do mundo o seguinte: ermidas, capelinhas, santuários, e outros locais de culto intensivo, encontram-se grosso modo no alto das colinas, dos montes ou das montanhas… não será, com toda a certeza, por estarem esses locais mais perto do céu!(?). Ou será? A expressão – a Voz Humana – no alto de um Monte é melhor ouvida por Deus e pelos Santos? A consciência ingénua do povo assim o crê.
Concluindo, estaremos na actualidade, num virar de página das religiões? Por mim creio que não. O REAL de todo o homem, que é o mesmo que dizer, da Vida, É MESMO ASSIM!
Frassino Machado
In PARA ALÉM DA POESIA