O Renovo

Os capítulos 1-6 do livro do profeta Zacarias narram oito visões que ele teve uma noite. Nesse artigo iremos analisar as seis últimas. A terceira visão começa em 2.1, quando o profeta vê um homem com um instrumento indo medir Jerusalém, conforme Deus já havia prometido em 1.16. Segundo Wesley[1], essa medição era a preparação operada pelo Senhor para que a cidade se tornasse capaz de receber a “multidão de homens e animais que haverá nela” (Zc 2.4).

O profeta vislumbra um futuro em que Jerusalém não teria muros, por duas razões: vai haver tanta gente e animais que não terá espaço para colocar todos dentro dos muros, e o Senhor mesmo será o protetor deles. Benson[2] une as duas idéias em uma só ao dizer que a razão pelo qual a cidade não precisava de muro era justamente a grande quantidade de pessoas que haveria ali, o que se tornaria uma defesa natural. Isso começou a se cumprir naquela época mesmo, mas Benson, Barnes[3] e Calvino[4] defendem que isso está se cumprindo principalmente na expansão da Igreja no mundo, que pacificamente vai crescer, acrescentar pessoas de outras nações ao povo de Deus e alcançar um terreno cada vez maior, até ter seu ápice na Jerusalém Celestial.

A impressão que o Espírito Santo pretendia causar nos judeus era de que Deus estava operando poderosamente na restauração da cidade santa. Aqueles que já haviam retornado do Exílio deveriam trabalhar zelosamente na reconstrução do templo, e os outros deveriam fazê-lo o quanto antes, sabendo que qualquer um que os ameaçasse estava tocando na menina dos olhos de Deus (2.8). Eles tinham prova disso no fato de que, como o Senhor havia prometido por meio de seus profetas, aquele império que os havia espalhado aos quatro ventos havia sido derrotado e eles estavam tendo a oportunidade de voltar para casa. O Deus que começou essa grande obra iria levá-la até o fim.

Em sua quarta visão, Zacarias vê o sumo sacerdote Josué, junto ao anjo do Senhor e Satanás à sua direita para se lhe opor (3.1). Essa figura, “anjo do Senhor”, aparece outras vezes na Bíblia de forma bastante peculiar. Há momentos que ele fala como se fosse o próprio Deus (Gn 31.11-13, Jz 2.1-3), e, pior, as pessoas também o tratam como Deus (Gn 16.11-13, Jz 13.21-22). Em outros textos, porém, é feita uma distinção entre o Senhor e o Anjo do Senhor (Jz 6.11-23; Gn 21.17-19, 22.11-17; Ex 3.1-6). Baseado nisso, alguns teólogos[5] entendem que ele é uma manifestação de Jesus Cristo pré-encarnado, o que pode ser aplicado a esse texto, pois, no capítulo 1, o Anjo do Senhor aparentemente tem autoridade sobre outros anjos (1.11) e intercede eficazmente pelos judeus (1.12).

Uma das lições principais dessa quarta visão é que a nossa luta é especialmente espiritual. Inimigos e recursos humanos podem ser visíveis a nós, mas é na esfera invisível que o principal da batalha se dá. Na visão de Zacarias, Satanás se opõe ao Reino de Deus, mas o Senhor o repreende (Zc 3.2). Então as roupas do sacerdote que estavam sujas são trocadas por vestes limpas. Segundo Clarke[6], essa mudança simboliza uma confirmação de Deus do sacerdócio de Josué. O versículo 7 indica isso, quando o Senhor lhe diz que de fato ele permaneceria em suas funções se perseverasse na obediência.

Segue-se que a maneira pela qual nós lutamos a batalha espiritual do Reino de Cristo é através da obediência aos preceitos do Senhor; mesmo que, humanamente, eles parecem não ser a melhor estratégia. Nem Satanás, nem nada que ele enviar contra nós, pode nos derrotar se andarmos em obediência. Não que nossa santidade seja a razão da nossa salvação, porquanto a causa dela é a intercessão do nosso Mediador; mas certamente ela é parte fundamental do processo de progresso espiritual e derrota dos poderes e autoridades espirituais malignos. A santificação é a apropriação na nossa vida daquilo que Jesus conquistou para nós pelo Seu sangue, a maneira pela qual nós conquistamos aquilo que Ele já nos deu e o método de expansão da Jerusalém espiritual.

No versículo 8 o Senhor promete que traria o Seu servo, o Renovo (um brotinho), que viria como uma pedra com sete olhos, por meio de quem Deus promete fazer três coisas. A primeira é lavrar “a sua escultura”, o que, segundo Clarke, significa escrever na rocha (significando perpetuidade) as promessas que Ele estava fazendo, enquanto para Gil[7] são escritos os nomes dos eleitos; já para os primeiros cristãos, a gravura sobre a pedra são as feridas de Jesus[8]. As três interpretações são possíveis se partimos do princípio que a pedra é o próprio Cristo, o que é confirmado pelo fato Dele ser representado como tendo sete olhos em Ap 5.6, símbolo de Sua onisciência.

Quando chegamos ao capítulo 4 de Zacarias, parece que o profeta “apaga” por um instante, mas o anjo do Senhor o desperta para a próxima visão. Ele vê uma menorá de ouro com suas sete velas e um vaso de azeite, produto usado para acender o candelabro. Para os judeus,[9] como a menorá é uma fonte de luz, ela representa sabedoria e inspiração divina. O anjo do Senhor começa a explicar essa visão dizendo que essa era mensagem do Senhor: “Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos” (Zc 4.6), que ele iria concluir a construção do templo. Segundo o Comentário da Bíblia Jamieson-Fausset-Brown[10], o candelabro representa o povo de Deus, o que é plenamente possível porque nós somos chamados de luz do mundo em vários momentos (e.g. Mt 5.14), e a igreja é comparada com sete candelabros em Ap 1.20.

As sete lâmpadas também podem significar a mesma coisa dos sete olhos da visão anterior, a onisciência de Jesus, visto que em Ap 4.5 e 5.6 os sete espíritos, sete tochas e sete olhos são apresentados como sinônimos. Para confirmar isso, Zc 4.10 diz que os “sete olhos são os olhos do SENHOR, que percorrem toda a terra”, mostrando que essa visão está associada à anterior da pedra com sete olhos, e os olhos percorrem toda a terra como os sete espíritos de Ap 5.6. A conclusão disso tudo é que assim como Zorobabel começou o templo do Senhor ele iria vê-lo acabado (Zc 4.9), não por causa da sua própria capacidade, mas pelo poder de Deus e Sua capacidade de vigiar todos os adversários de Judá, inclusive Satanás, para impedi-los antes mesmo de eles começarem a executar seus planos.

Na próxima visão, no capítulo 5, Zacarias vê um pergaminho voador com nove metros de comprimento e 4,5 de largura. O anjo logo explica que isso é uma maldição que vai cair sobre aqueles que quebram o oitavo e o nono mandamentos (Ex 20.15-16). O princípio é que aquele que quebra a Lei do Senhor será amaldiçoado, algo óbvio em toda a Bíblia. O sucesso de Judá como nação não implicaria na tranqüilidade plena de todos os indivíduos que compõe o povo, pois aqueles que pecassem ainda seriam alvos da ira de Deus.

Os sete olhos que vigiam os inimigos também vigiavam o povo. Mesmo o interior do nosso coração não está seguro ao perscrutar de Deus. Segue-se que não devemos achar que estamos seguros da punição de divina só porque estamos junto ao povo visível de Deus, porque participamos de uma Igreja local; se não estivermos sob a proteção do Renovo, Satanás vai nos devorar como um leão faminto.

A seguir Zacarias vê um efa. Essa palavra designa uma medida de grãos equivalente a aproximadamente 22 litros, mas também pode ser usada como um recipiente de grãos de qualquer tamanho. Esse efa tinha uma tampa de chumbo, designada como kikkar, que indica que o recipiente tem uma forma arredonda. Havia uma mulher sentada dentro dele, que representa a iniqüidade de toda a terra (Zc 5.6-8). Então surgem duas mulheres aladas que levam o efa para Sinar, terra de localização incerta que está dentro ou é idêntica à Babilônia[11]. Se a visão do pergaminho relembra as maldições destinadas aos judeus que quebrassem a Lei, essa relembra que o exílio babilônico foi a aplicação nacional dessa maldição a Judá. Segue-se que, se eles obedecessem a Deus de todo o coração e guardassem a Lei, poderiam ter plena certeza da sua permanência na terra santa, porque a razão por que eles foram removidos de lá não era outra senão o próprio pecado deles.

Na visão final desse ciclo, que se assemelha à primeira no capítulo 1, o profeta vê quatro carruagens que saem dentre dois montes de bronze e percorrem toda a terra, indo cada um por um lado. Cada carruagem tem cavalos de uma cor: vermelhos, brancos, pretos e baios. Segundo o anjo, essas carruagens são os quatro ruot hashshamayim, os ventos que vêm dos céus. A mesma idéia aparece em Zc 2.6, em que é dito que os judeus foram espalhados como os quatro ventos (Norte, Sul, Leste e Oeste) que vêm dos céus. Em Daniel 7, vemos os quatro ventos lutando contra quatro grandes animais, que representam quatro impérios, mas a visão de Zacarias parece ter um sentido mais geral, significando a ação de Deus contra todas as nações ímpias.

Ao invés de quatro ventos, Calvino interpreta ruot como significando espíritos (outro significado possível do termo), e dá à palavra o sentido de “impulsos” de Deus, “aqueles movimentos secretos que procedem do eterno conselho e providência de Deus”. Para ele, a ênfase do profeta está na soberana providência do Senhor, o que é visto nos montes de bronze (significando a imutabilidade dos desígnios do Senhor), no fato dos cavaleiros serem quatro (mostrando que a Providência alcança todas as quatro partes da terra) e no fato dos ruot virem do céu (indicando que não há outra causa primária para as ações dos ruot que não o beneplácito de Deus).

O significado das cores dos cavalos é bastante discutido, sendo apenas o vermelho mais claro, uma referência ao derramamento de sangue, como na primeira visão. O preto pode significar luto (Jr 4.28) ou fome (Ap 6.5-6); o branco vitória e alegria (Ec 9.8, Ap 6.2, Ap 19.11). O oitavo versículo explica que as carruagens de cavalos pretos, que foi para o norte, fizeram repousar o ruach (vento/espírito) do Senhor na terra do Norte, a Babilônia (cf. Zc 2.6, Sf 2.13). Para Lange[12] e Calvino, essa é uma visita do Espírito de Deus para punição. O Senhor o revela aos judeus para que eles ficassem certos de que os males que caíram sobre aqueles que os espalhou pelos quatro cantos da terra não eram obra do acaso, mas da Divina Providência. A expressão “fazem repousar o meu Espírito” provavelmente significa a satisfação da ira de Deus.

Na conclusão das oito visões (Zc 6.9-15), o Senhor ordena Zacarias a receber prata e ouro, fazer coroas, colocá-las na cabeça do sumo sacerdote Josué e dizer que ele era o Renovo, que iria edificar o templo do Senhor e assentar-se no trono para reinar, fazendo em si mesmo a perfeita união dos ofícios de sacerdote e rei. Um intérprete descuidado poderia pensar que o Renovo que aparece aqui e no capítulo 3 sejam referências ao próprio Josué; mas faz muito mais sentido dizer que Josué apenas representa o verdadeiro Renovo. O argumento é muito simples: Josué nunca foi rei de Israel, e nem podia, porque não é descendente de Judá. O único que cumprirá as exigências para ser sumo sacerdote e rei de Israel será o Messias.

Alguns poderiam perguntar: como o Renovo pode ser sumo sacerdote se ele é descendente de Davi, e não de Arão? A resposta se encontra no Salmo 110: O Messias não é sumo sacerdote segundo a ordem de Levi, mas segundo a ordem de Melquisedeque. Josué era apenas uma representação, uma sombra: Jesus Cristo é o renovo, aquele que edifica o verdadeiro templo de Deus, domina sobre a terra e os céus e é o perfeito sacerdote-rei. Desse modo, o objetivo primário das oito visões é incentivar o povo a terminar a construção do templo de Jerusalém porque ele era um passo necessário na agenda de Deus para criar o glorioso Reino que os profetas vinham prometendo há séculos.

***

[1] WESLEY, John. Wesley's Notes on the Bible. Disponível em: < http://biblehub.com/commentaries/wes/zechariah/2.htm>

[2] BENSON, Joseph. Commentary Of The Old And New Testaments. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/benson/>

[3] BARNES, Albert. Barnes Notes. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/barnes/>

[4] CALVIN, John. Bible Commentary – Prophets. Disponível em:

<http://biblehub.com/commentaries/calvin/>

[5] Como Jefté Alves de Assis, Gerard Van Groningen e H. C. Leupold.

[6] CLARKE, Adam. Clarke's Commentary. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/clarke>

[7] GILL, John. Gill's Exposition. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/gill/>

[8] Segundo o Guzik Bible Commentary.

[9] UNITED WITH ISRAEL. “Light Your Fire: What Does the Menorah Symbolize?” Disponível em: <https://unitedwithisrael.org/what-does-the-menorah-symbolize/>

[10] Jamieson-Fausset-Brown Bible Commentary. Disponível em:

<http://biblehub.com/commentaries/jfb>

[11] BARTON, G; Hirsch, E. Shinar. Disponível em:

<http://www.jewishencyclopedia.com/articles/13582-shinar>

[12] LANGE, John. Commentary on the Holy Scriptures: Critical, Doctrinal, and Homiletical. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/lange/genesis/1.htm>