A Grande Tragédia da Vida!

Que tal falarmos um pouco sobre a desgraça? Isso mesmo, desgraça! Por que não? Não é um assunto interessante? Conjecturo que sim, que seja muito interessante refletir sobre a desgraça. E por que seria interessante? Ora, justamente porque se trata de um assunto renegado, um tema desterrado, banido das nossas interlocuções correntes, das nossas narrativas corriqueiras, dos nossos discursos e até do nosso pensamento, embora ela mesma, a desgraça, se faça tão presente em nossas vidas. Por algum motivo oculto, a desgraça é um tabu na nossa sociedade ocidental, ninguém gosta de falar sobre ela. Mas, talvez por isso mesmo seja importante que aceitemos o desafio de lançar um olhar mais acurado sobre a tragédia humana. Afinal, do que estamos nos esquivando? Por que não tentamos desmascarar essa nossa fuga desesperada de uma realidade tão evidente?

No oriente, diferentemente de nós, os budistas olham para a vida e constatam, de plano, que “tudo é sofrimento”. Esse é o ponto de partida para a sua doutrina, a constatação da tragédia da vida. Todavia, para eles, o remédio contra o sofrimento é o desapego de tudo e uma vida virtuosa, na retidão. Bem, essa constatação inicial me parece bastante salutar, mas a “solução” para o problema, que passa pela eliminação de todos os desejos, nem tanto. Nem tanto, no meu ponto de vista, porque não seria apropriada diante da lógica da nossa civilização ocidental pluralista e secularizada, já que propõe o enfrentamento dessa tragédia por meio de uma evasão espiritual do mundo. Desse modo, a solução contra a grande tragédia da vida que Gautama prega no oriente não me parece a mais conveniente para o nosso caso. Cumpre-nos, então, buscar uma alternativa mais satisfatória à nossa sociedade.

Com esse entendimento, resolvi me atrever a refletir um pouco sobre esse assunto: a desgraça. Porém, ao tentar pensar um pouco sobre ela, me deparei imediatamente no primeiro obstáculo. Percebi que, embora a tragédia seja tão evidente, não seria fácil encontrar dentro de mim “conteúdos” necessários para clarificar o nosso objeto de reflexão. Muito pelo contrário, quase tudo que encontro pretende embotar ou sabotar o radicalismo extremo da sua força. Como afirmei anteriormente sobre o tabu que lançamos sobre a desgraça, a consequência disso é que a primeira dificuldade desta jornada reflexiva está mesmo na carência da “formação” que recebemos no ocidente, ou seja, no silêncio que nos é impingido no processo de nossa educação formal e não formal. Afinal, onde discutimos ou somos instruídos sobre a desgraça? Pelo que eu saiba, em lugar nenhum. Pelo contrário, essa palavra – desgraça – tem sido tomada sempre como uma abominação. O caminho, então, se quisermos falar sobre a desgraça, é deixar de lado tantos discursos que desfilam por aí, e olhar mais diretamente para a vida, porque talvez a vida tenha muito mais de desgraça a nos dizer do que sejamos capazes de perceber.

Outra dificuldade que podemos antever na tratativa desse assunto, mas não distante da primeira, está no preconceito que possivelmente vamos encontrar no interlocutor. Falar sobre a desgraça pode ser considerado uma heresia, porque toda a nossa cultura parece ter sido construída, desde Platão, para negar a desgraça, a grande tragédia humana. Ora, afinal, o que é a desgraça senão a feiúra, o caos, a injustiça e a morte. E o que a nossa cultura, com as suas teorias esquizofrênicas sobre a realidade, pretendeu criar (ou mascarar) no lugar desse quadro dantesco? Exatamente o contrário: a beleza, a ordem, a justiça e a eternidade. Ou seja, para a nossa cultura somos governados pela ordem (cosmo), pela justiça universal etc, e tudo que vemos de horroroso e inconcebível diante de nossos olhos, não passa de meras aparências que nada têm a ver com a realidade real, linda, perfeita, gloriosa e eterna.

Sabemos que o platonismo está incorporado na doutrina cristã, de modo que, falar sobre a desgraça, desnudando a dura realidade das máscaras obsessivas da beleza, da ordem, da justiça, pode ser considerado, como afirmamos, uma heresia. Afinal, toda nudez deve ser castigada e toda feiúra deve ser maquiada. Nossa cultura parece ser feita de remendos, tentando esconder defeitos aqui, problemas ali, e as contradições não param de se avolumar, mas estas, as contradições, também devem ser suprimidas, porque, afinal, somos regidos pela ordem. Pelo menos neste aspecto o reconhecimento da desgraça se mostra bastante confortável, é um verdadeiro descanso, pois não exige esforço intelectual para camuflar nada.

Cumpre alertar, todavia, que não pretendemos aqui militar em favor do ateísmo, mas, pelo contrário, dissemos que iríamos buscar uma alternativa mais satisfatória à nossa sociedade. Logicamente, nesse caso, precisamos respeitar a pluralidade de visões instaladas no nosso meio. Estamos falando aqui é da grande contradição entre a realidade que está posta diante dos nossos olhos e a realidade que foi plantada na nossa cabeça por nossa cultura milenar. E se estamos tratando de uma cultura que é milenar, é justamente por isso não podemos exigir que as pessoas se “convertam” em algo que elas não são substancialmente, e pior ainda numa identidade que estaria totalmente fora dessa dita cultura. Pouquíssimos suportariam e suportam tão virulenta metamorfose.

Desse modo, a questão a que nos propomos é simplesmente falar sobre a grande tragédia humana, mas se descobrimos nela algum potencial terapêutico ou emancipador, cabe a cada um aquilatar com que medida pode fazer uso desse referencial como azimute da sua caminhada.

Alegamos existir uma grande contradição entre duas “realidades”. Vamos, então, tentar clarificar mais um pouco que realidade é essa que chamamos de tragédia. Já dissemos que a tragédia é o caos, que efetivamente está comprovado no lugar do cosmo grego; que ela é a injustiça, e cuja justiça perfeita só existe realmente se for no além; ela é a feiúra que se encontra na assimetria de todas as coisas (embora este tópico seja mais subjetivo); e na mortalidade do corpo, que a cultura opõe com a imortalidade da alma. Mas além disso, podemos complementar com mais um aspecto da grande tragédia, o fato dela não ser “racional”, de não fazer nenhum sentido para nós. Isto se traduz pelo curso da vida, que apesar de todos as alegrias e tristezas, desafios e vitórias, seguimos dia após dia rumo à decrepitude e à morte. Não vamos ficar floreando ou “dourando a pílula”, se olharmos para a nossa vida do ponto de vista meramente objetivo, concluiremos que ela não tem nenhum sentido, pois o destino de tudo, tudo, tudo o que fazemos aqui é o fim e a morte. Esse fato, por si só, faz da existência uma indubitável tragédia.

Pois bem, nesse estrito sentido lógico-objetivo, não temos como fugir desta premissa: a de que a vida é uma tragédia. Mas se por um lado, do ponto de vista objetivo, esta constatação é tão inexorável, do outro, do subjetivo, não somos nada “conformados” com essa realidade absurda. Então tratamos de torná-la compreensível, tratamos de racionalizá-la, de amenizá-la, de torná-la palatável às nossas expectativas humanas. Nossa reação é esquizofrênica, se não encontramos no mundo a realidade que gostaríamos de ver, então inventamos a realidade que queremos na esfera metafísica. Nossa cultura não teve a lucidez suficiente para encarar a dura realidade como ela é. Sabemos que, fenomenologicamente falando, a realidade é um processo de construção que funde os pólos objetivo e subjetivo. Mas, no caso em questão, verificamos que a nossa cultura nasce tentando se afastar ao máximo da objetividade (o mundo é uma mera aparência), e vai, no curso da história, dolorosamente (com muito sangue e sofrimento) voltando o eixo para o pólo objetivo. Só que talvez ainda não tenhamos chegado onde deveríamos, e os resquícios dessa esquizofrenia continuam por aí. Falta-nos, ainda, um tanto de sanidade e de honestidade intelectual para rechaçarmos as ilusões e as fantasias que perambulam por aí totalmente desvinculadas de qualquer verossimilhança em relação à nossa existência frágil e efêmera neste mundinho ínfimo e perdido na imensidão do universo.

Assim, de um modo geral, ainda não queremos admitir a tragédia da nossa existência, isto é, no imaginário coletivo que sustentamos sobre a realidade ainda constatamos que o idealismo se sobrepõe à realidade objetiva. E é em função desse idealismo que a palavra desgraça, como dissemos, é um tabu e não pode ser pronunciada.

Vale perguntar: estamos falando de que idealismo e quais as consequências dele dominar o nosso pensamento sobre a realidade? Ora, estamos falando das diversas formas metafísicas de compreensão sobre a vida, que tentam dar explicações sobre o que é a nossa realidade, de onde viemos e para onde vamos; em especial as múltiplas perspectivas platônico-cristãs, que de um modo geral sustentam a existência de um ente superior, justo e bom, que governa e ordena todas as coisas, e bem assim a possibilidade de “salvação” do homem, que se traduz na esperança de uma vida no além de eterna beatitude. (Volto a alertar, não estamos defendendo o ateísmo, vamos nos explicar logo mais)

Quais são as consequências dessa visão idealista da realidade? De um ponto de vista mais favorável, percebe-se a efetivação de um consolo existencial perante a tragédia da existência com a satisfação psicológica por um “sentido maior da vida”. Mas, no contraponto dessa perspectiva, não se pode negar que ela proporciona ou pelo menos auxilia a produção de um controle social massivo em conformação a uma determinada ordem superior.

Sabemos que essa visão idealista sofreu sérios abalos, já que o processo histórico de secularização da sociedade, sobretudo nos últimos dois séculos, veio demonstrando que é sim possível manter o povo politicamente unido sem o artifício de uma ordem transcendente, o problema é que essa nova ordem instituída, a ordem burguesa, não rompeu de uma forma tão contundente – como pretendia – com os preceitos da configuração político-social anterior, da idade média. Claro que o absolutismo feudal se extinguiu, mas a verdadeira cidadania propalada não se consolidou e os processos de dominação e exploração econômica (e religiosa) continuaram.

Apesar da secularização, parece que pouca coisa mudou na intimidade dos sujeitos em relação à concepção sobre a vida, de modo tal que a tragédia continua varrida para debaixo do tapete. Aliás, agora muito mais que na idade média, porque naquela época a vida era de fato encarada como uma tragédia, pelo menos para o camponês, e ele só tinha um único consolo: a perspectiva de morrer e ir para o paraíso. Neste ponto, pode-se dizer que com a modernidade a nossa visão agora piorou, porque no nosso tempo nós achamos que podemos ser felizes tanto no além como aqui mesmo. Então, não existe mais tragédia ou desgraça em lugar nenhum! É proibido falar em desgraça! No máximo, admitimos algumas tribulações passageiras, que estão aí para serem superadas ou problemas sociais graves, mas que poderiam ser solucionados com alguma política pública ou que, por fim, serão resolvidos pela justiça divina.

Sem embargo, a Tragédia a qual eu estou tentando evidenciar, com “T” maiúsculo, vai além daquela que os camponeses medievais sentiam na pele em função de sua vida atroz. Porque, apesar de tudo, algo ainda fazia sentido para eles. Na sua firme esperança, o fim de tudo seria coroado pela recompensa eterna, conquistada por uma vida inteira de servidão. Mas, a Tragédia a que me refiro é pior do que isso, pois é a ausência total de muletas, de consolo metafísico, de algo ou alguém que no futuro fará justiça por nós. Pois, imagine se além de passar toda a vida na submissão e no sofrimento ainda não houvesse qualquer esperança de recompensa no paraíso. Essa sim seria uma Tragédia com “T” maiúsculo.

Mas, neste caso, certamente você afirmaria: “Ora, mas se eles não tivessem fé em qualquer sentido existencial maior e não supusessem qualquer socorro futuro do além, certamente não se submeteriam a tamanha humilhação e flagelo.” Certo! É isso mesmo! Uma coisa está ligada à outra. Se o camponês medieval não tivesse uma só esperança em que pudesse apoiar o seu conformismo, certamente se rebelaria contra todo o sistema que produzia a sua desgraça.

Do exposto, parece correto afirmar, então, que a tragédia – encarada de frente – tem seu lado salutar. Se por um lado, o indivíduo perde o refrigério psicológico de pertencimento a uma justiça universal superior que proporciona toda uma identidade encantada e resignada a um sentido existencial maior, eterno e glorioso; por outro, ele, se sentindo completamente sozinho no universo, abandonado a si mesmo, toma ou pelo menos tenta tomar com mais energia as rédeas da sua própria existência, resistindo indignado contra as forças adversas que o assolam. Em suma: parece que a tragédia, ou a sua percepção sem fantasias, tem o condão de jogar o peso total da responsabilidade sobre aquilo que nós somos e o modo como vivemos nas nossas próprias costas. Em outras palavras, a percepção da grande tragédia da vida pode minorar as nossas desgraças diárias!

Mas aí nos deparamos com um problema sério. Quer dizer que a única forma de “libertação” do sujeito estaria na defesa do ateísmo? Já dissemos que não, sabemos que ninguém vai abandonar suas crenças, então chegou a hora de nos explicarmos. Nesse caso, teremos que fazer outra pergunta. É possível usar o potencial libertador da tragédia sem prejuízo da visão consoladora das religiões? A resposta parece bastante complexa. Acho que isso depende de cada doutrina e também de cada pessoa. Em todo caso, penso que a responsabilidade sempre pode ser deslocada um pouco pra cá, ampliando iniciativa dos homens, ou pra lá, esperando mais da intervenção do poder transcendente. Mas, se chegarmos a esse consenso, que a nossa responsabilidade pode ser ampliada, e realmente quisermos apostar num pouco mais da autonomia humana – isso vai de cada um – como podemos fazer uso do tal potencial da tragédia?

Para responder essa última pergunta, acho que não existe nenhum manual sobre isso. Eu poderia propor um duplo exercício. Primeiramente, tentaríamos que olhar para vida de um modo estritamente focado. Focado em situações particulares. O exercício seria pinçar cada uma dessas situações, principalmente aquelas que mais nos incomodam, tentando perceber aquilo que se mostra efetivamente para nós, no plano da razão e do sentimento.

Como podemos descobrir mais facilmente que questões seriam essas? Acredito que um exercício imaginativo interessante seria partir de um ponto de vista mais extremo, ou seja, tentando suspender momentaneamente as nossas convicções, e fazendo a seguinte pergunta: “se eu não pudesse contar com nenhuma intervenção superior e tudo o que existe no mundo dependesse exclusivamente do homem, o que eu faria de minha vida? Continuaria a viver exatamente do mesmo jeito de sempre ou mudaria alguma coisa?” Se alguma coisa seria mudada, talvez ela mereça mais atenção. Veja bem, reitero que isso é só um exercício, e com a finalidade estrita de localizar algum incômodo.

Pois bem, a par desta situação ou destas situações, a segunda parte do exercício consistiria em examinar qual seria o “conceito”, ou a “concepção” que racionalmente nos prende a cada situação. Ou seja, “há algo que eu poderia fazer para viver melhor, e se houver, o que me impede de fazê-lo?”

Em suma, o exercício seria examinar caso a caso cada uma das situações que nos incomodam, e refletir se os fundamentos das concepções que nos prendem a essas situações são mesmo inexoráveis. Em alguns casos, talvez, a conversão do nosso agir de uma postura acanhada e restrita para uma forma mais livre e autônoma, pode depender do modo como encaramos, não exatamente as “verdades” superiores que tanto primamos, mas aquilo que elas exigem de nós. Isto é, será que nossas verdades dogmáticas exigem mesmo, vistas em cada caso particular, o nosso silêncio e a nossa passividade totais? O desfecho pode ser surpreendente...

Portanto, a proposta de exercício que sai da nossa análise, pode bem ser comparada a uma engenharia reversa na nossa vida. A engenharia reversa é aquela que desmonta os sistemas aos seus componentes mais básicos para entender como cada um deles funciona. Nesse nosso caso, a engenharia seria um processo reflexivo de “desmonte” do nosso pensamento, para que possamos examinar bem especificamente aquilo que comanda o nosso comportamento. A chave mestra que torna possível essa engenharia de desmonte, sem dúvida, é a tragédia, porque a tragédia expõe a nossa existência a mais pura nudez, devolve nossa vida ao estado bruto, natural, e retira da nossa humanidade os seus maravilhosos disfarces metafísicos.

Enfim, de uma coisa eu fiquei convencido com essa despretensiosa e ingênua reflexão... num trocadilho: a maior tragédia da nossa vida é a tragédia de negarmos a tragédia da nossa vida. Ou, em outras palavras, no lugar da visão idealista-platônica, se fosse a visão trágica que comandasse a nossa cultura, impelindo-nos, não à solução dos budistas, mas, a uma postura muito mais combativa e diligente em relação à nossa vida, acho que teríamos um mundo muito melhor e com muito menos desgraças em todos as áreas, política, econômica, social...