Deus pode existir, o Diabo é pura bobagem.
"Platão sabia muito que alguém poderia lhe fazer mal. E como sabia! Foi vendido como escravo quando quis ajudar seu namorado num reino estrangeiro. Mas o que Platão não conhecia era o Mal. Ele sabia muito falar do Bem, e na ponta oposta da linha ontológica, ele punha as várias gradações do que era o menos excelente. Mas a figura do Mal, isso os gregos, e não só Platão, não era algo do vocabulário nem culto e nem popular. Essa conquista de ter O Mal adveio só com os monoteísmos. No Ocidente, só se tornou algo da nossa conversação por meio do espraiamento da cosmovisão judaico-cristã.
Agostinho foi quem deu o aval para a existência do mal oficialmente, do ponto de vista da filosofia. Ele se preocupou com “a questão do mal”. Nos nossos tempos, uma estudiosa de Agostinho, a filósofo judia Hannah Arendt, se preocupou então com a “banalidade do mal”. Entre Agostinho e Arendt, o senso comum personificou o mal na figura do Demônio, o anjo Lúcifer, o caído, o expulso. Platão nunca entenderia nada a respeito desse mundo, mesmo sendo uma das figuras mais inteligentes já existentes em nosso Planeta.
Quando no século XX todos os intelectuais se tornam marxistas ou mais ou menos marxistas, e quando essa doutrina, já completamente popularizada e não mais como filosofia, chegou ao senso comum e ao boteco, então foi fácil dizer que o que o marxismo combatia era algo quase que como o Demônio, o Capitalismo – escrito com maiúscula, assim, tal como o Demônio dos tempos medievais.
Hoje os intelectuais em geral não precisam mais ser marxistas. Claro, se não lerem Marx não serão intelectuais, e se ficarem caçando marxistas e ressuscitando macartismos serão menos ainda (acredite, há esse tipo de tonto ainda!). Todavia, ninguém hoje é levado a sério, ao menos nos meios mais sofisticados intelectualmente, se insistir em tentar fazer do Capitalismo algo como o Demônio. E o inverso é também verdadeiro, ainda que anacrônico. Quem achar que o Comunismo é o Demônio cai no ridículo. Na verdade, só as pessoas incultas levam a sério o Demônio, e mais tolos são os que acreditam que podem tratar doutrinas ou países ou pessoas como O Mal. Só uma cabeça meio desfalcada como a de Reagan podia inventar, e ser levado a sério por uns malucos, a frase sobre a URSS como o “Império do Mal” (projeto Guerra nas Estrelas!)
Lúcifer não é o Fidel Castro e nem mesmo o Hitler. Também não era o Xá da Pérsia e não é, agora, o governo do Irã ou todo o Irã. Não é a Globalização ou o neoliberalismo. Lúcifer não são os impostos em favor da social democracia. Lucífer não é o político corrupto. Nem o pedófilo que, hoje em dia, querem fazer acreditar que existe na alma de todo homem. Lúcifer é o que sobrou da Idade Média e que aparece nos templos caça-níqueis para tirar o dinheiro dos bobos de todas as épocas. E ás vezes Lúcifer é sim “O Mal”, algo que algum governante aponta como fonte de todos os problemas, de modo a unificar a nação toda em torno dele próprio, e se tornar aquilo que ele já é, um tirano. Todo governante em desespero faz isso, encontra um Diabo. Para uns é o “o Imperialismo Ianque!” Putz! O Hamaz diz isso. E há gente que faz do Hamas o Diabo, ainda que este, de fato, o Hamaz de vez em quando apareça mesmo de chifre e rabo.
A Igreja Católica, ao menos no alto clero, não dá bola nenhuma para Lucífer. Bergóglio é bom professor de filosofia, e está longe de não entender Platão. Ele é capaz de escrever “o Bem” assim, com letras maiúsculas, mas não “o mal”. Não intencionalmente. Quando Bergóglio pede “nova ordem mundial” e não a ordem “capitalista”, ele está apenas dizendo de uma maneira mais geral o que já expressou em termos específicos: o problema é a ideologia do descarte, este é o problema. Pode ser um mal, mas não é O Mal. Vivemos de males, mas não temos que dar bola para O Mal. O Mal é uma ideologia.
O filósofo trabalha para o bem. Um filósofo que despreza “o mundo melhor”, mesmo quando o despreza porque acha que isso é ideologia, não pode reivindicar a cátedra da filosofia. É que o filósofo é exatamente aquele que tem a dimensão de que o Mal é histórico, mas que o bem, em minúsculo, ainda que histórico, nem sempre é ideologia. Sem ele, nada é possível.
O Mal nasceu um dia, e já está na hora de sua morte. Vai morrer como o Diabo, por inanição. Mesmo uma sofisticada metafísica do mal, que possa encantar algum aprendiz de filosofia trágica, não cola mais. O que podemos tirar de uma metafísica do mal não é Lúcifer, mas apenas a ideia laica de que talvez o mundo não seja tão racional quanto Hegel quis. Só isso. Era só isso que dizia Schopenhauer, e também seu discípulo moderno Max Horkheimer. Não mais que isso".
Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.