Bíblia sim, cristianismo não.
"A Bíblia é sagrada, não há dúvida. Por isso deve estar presente na escola. Ela é sagrada como documento antropológico. Não há como aprender ciências humanas e filosofia sem conhecer a Bíblia como um elemento antiquíssimo de valor intelectual antropológico riquíssimo, que fornece boa parte de nosso ethos ocidental.
A Bíblia é a parte judaica que se fundiu à parte greco-latina para forjar aquilo que nós somos enquanto ocidentais. Lemos a República de Platão, e a Ilíada e a Odisseia de Homero, então, também temos que ler a Bíblia para saber quem somos, como forjamos nossas cidades e instituições, nossos paladares, gestos e comportamentos gerais, incluindo, claro, nossa língua. O correto é que tenhamos um jovem que, ao sair do ensino médio, conheça essas duas partes e tenha certo trânsito nessas narrativas. Um jovem versado na arte de interpretar narrativas.
Do mesmo modo que tomamos distância da mitologia greco-romana e da filosofia platônica, devemos fazer o mesmo com a Bíblia. Não há que se procurar “contradições” na Bíblia, pois ela não é um tratado científico, é uma narrativa em forma de poema que propõe ensinamentos práticos ao povo judeu e que, por circunstâncias históricas, extrapolou os limites de uso desse povo. Trata-se de um livro universal. Um clássico dos clássicos. Não é um livro para ser apresentado na escola para formar teístas ou ateus. Não é um livro para ser lido literalmente.
O evolucionismo (darwiniano) é uma narrativa que obedece ao pensamento não-mágico, ou seja, aquele pensamento que segue razões e/ou relações causais. É matéria do campo da Biologia e da Filosofia. O criacionismo é uma doutrina mágica, que pensa que pode tratar o relato do “Gênesis” como uma narrativa descritiva (e não alegórica) da origem do mundo – é uma curiosidade que pode ser dada em uma só aula, para que os estudantes saibam como é o pensamento mágico nos dias de hoje. Claro que não se trata de tomá-lo como ensinamento de conteúdo, isso seria abrir espaço para uma ótica infantil. Aliás, a Bíblia é um poema sério, não um modelo científico de explicação do mundo. Se tomada assim, misturada ao criacionismo, se transforma em chacota de ateus incultos. Chacota inculta. O ateu culto não faz críticas à Bíblia.
No passado, aprendíamos a Bíblia na Igreja Católica, logo no início do primeiro ano escolar. Tomávamos o mito como verdade. Mas, uma vez na escola, continuando os estudos, logo começávamos a ver a Bíblia como um poema ético, de costumes, de regras de conduta etc. Alguns entre nós, permanecendo ou não cristãos, católicos, podiam então compreender o Evangelho em outro patamar e, assim, estudar as ciências sem confundir as narrativas. Os mais voltados para ciências humanas, ainda no ginásio e no colégio, tentavam aprender a distinguir as várias interpretações das passagens bíblicas, feitas por religiosos de várias épocas e também como base para uma introdução à antropologia.
Atualmente a Igreja Católica e a escola pouco ensinam. A Igreja Evangélica (ano menos no Brasil), ao entrar em meio a esse caos, não raro faz o desserviço de ensinar a ler a Bíblia literalmente. Pastores incultos guiam os jovens para se tornarem uma raça de limítrofes. E eis então que temos atualmente essa juventude aí, predisposta a não entender nada, nem mesmo o funcionamento da sociedade. Essa juventude é vítima fácil do pensamento reacionário e mágico. Ficam jovens infantilizados e crescem como adultos com dificuldades intelectuais imensas.
Uma juventude assim, dogmática e sem instrumentos interpretativos, aceita com facilidade o pensamento mais simplório. Na base desse pensamento, as soluções fáceis, mágicas, são as mais adotadas. Então, diminuir a maioridade penal resolve a violência. Tirar um presidente à força resolve os problemas políticos. Descartar um feto para uns ou uma mãe solteira para outros é uma forma justa de agir. Animais? Nem pensar em cuidá-los, o melhor é descartá-los como se deve fazer com os avós. Todo o tipo de desrespeito surge do modo simplório de pensar. E pior: gente assim, ao querer ser crítica, esboçam adesão fácil às teorias da conspiração, que é a forma “crítica” do pensamento infantil.
Esse modo de tentar pensar, simplório, advém de uma dificuldade da juventude de interpretar, algo posto na família, às vezes desprovida de ao menos um elemento capaz de ler narrativas sob vários ângulos. Interpretar a Bíblia, aprender o serviço hermenêutico na escola ao saber entrar em uma narrativa? Não, nessas famílias, jamais. E eis então que nossa incultura geral começa a fazer efeito. Temos visto isso, não temos? Sim, as redes sociais da Internet mostram isso, elas expõem levas e levas de adeptos da vida em fila de rebanho, pessoas que aderem às notícias sem pé ou cabeça, pessoas capazes de serem levadas por ódio ideológico e por pacotes de preconceito com uma facilidade incrível.
Vamos de mal a pior, e a cada dia encontramos mais gente nas universidades cujo material cerebral seria rejeitado pelo Dr. Hannibal Lecter que comia cérebros, sim, mas não aqueles com coliformes fecais".
Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo. Autor entre outros de Sócrates: pensador e educador (Cortez, 2015).