A TRANSMIGAÇÃO DE ALMAS
A doutrina da reencarnação, na Cabala, como já foi exposto, está estruturada em cima de outro conceito de difícil entendimento, que é a Transmigação de Almas. Esse conceito, geralmente chamado de Guilgul Neshamot, está fundamentado em interpretações abertas de trechos bíblicos, nas quais a Divindade promete uma eterna aliança entre ela e a descendência do profeta Abraão. Com essa promessa Deus teria estabelecido o povo de Israel como sendo o seu “povo eleito” na terra, ou seja, o povo através no qual toda a humanidade poderia se espelhar. A chamada descendência de Israel era, na verdade, toda a tribo, o clã, do qual Abraão era o líder. O nome Israel, por isso, resulta de uma fórmula cabalística aplicada ao nome de um dos netos de Abraão, o qual, depois de consagrado como líder da tribo, teve seu nome trocado de Jacó para Israel. O mesmo já havia acontecido com Abraão, que antes do contato com Jeová se chamava apenas Abrão. A aposição de um “a” no seu nome o fez “pai de uma multidão", da mesma forma que a mudança do nome Jacó para Israel fez do neto de Abraão o fundador de um povo. Por essa inferência se pode perceber que a tradição cabalística já era praticada nos tempos de Abraão, sendo verdadeira a tese segundo a qual essa já era uma prática utilizada pelos sacerdotes caldeus nas suas artes adivinhatórias. Isso porque, Abrão, antes de tornar-se o profeta de Jeová, (Abraão) provavelmente professava a religião caldaica e estava a par dessas tradições.[1]
Segundo o texto bíblico, Deus teria dito a Abraão: Quanto a ti, em paz irás para os teus pais, serás sepultado numa velhice feliz. É na quarta geração que eles voltarão para cá, porque até lá a falta (ou erro, ou delito) dos amorreus não terá sido pago”(Gênesis 15:15-16).
O cabalistas veem nessa promessa uma referência á Lei do Karma e o cumprimento da doutrina da reencarnação, pois segundo essa tese, Jeová era um Deus zeloso, que visitava a culpa dos pais sobre os filhos, na terceira e quarta geração daqueles que o odiavam, mas que também agia, com benevolência ou misericórdia por milhares de gerações sobre os que o amava e guardavam os seus mandamentos. [2]
Ao traduzir a promessa de Deus, os cabalistas substituem o têrmo gerações por encarnações, e assim justificam a sua tese segundo a qual Deus pode, por um desígnio seu, transferir culpa, ou mérito, de uma geração para outra, castigando ou premiando nos filhos a culpa ou mérito dos pais, ou vice-versa. Nasce, dessa forma, a teoria da reencarnação entre os judeus, justificando inclusive a Lei do Levirato, pois ao manter dentro do próprio clã a semente familiar, a corrente kármica, que na sua própria lógica conceitual, deve fluir como um rio, não se bifurca nem se perde no imenso cipoal genealógico em que a humanidade se transformaria. Tudo tem uma lógica dentro da Bíblia hebraica, e aqueles que só veem nela um conjunto de lendas sem respaldo na História pouco sabem da inteligência das cabeças dos homens que a redigiram.[3]
Todavia, é preciso explicar que os cabalistas não entendem literalmente as palavras da Bíblia, como sendo um preceito divino que estabelece a punição, ou a premiação das pessoas, nos seus filhos ou netos, como parece dar a entender o texto sagrado. Essa seria uma incoerência e um pressuposto bastante fácil de refutar, já que muitos pais e avôs sobrevivem por muitos anos, ás vezes, assistindo ao nascimento de cinco ou seis gerações. O que, na verdade, se quer dizer com isso é que o espírito de um pai pode renascer no seu filho, ou neto, ou qualquer outro descendente, dentro da mesma família, para pagar o mal que praticou, pois que o Karma de um indivíduo está profundamente ligado ao ambiente em que a ação é praticada, e onde a ação provocou o desequilíbrio é justamente o local onde ele deverá ser corrigido para que tudo volte ao normal. Jesus, que provavelmente tinha conhecimento de todas essas teses, expressou esse mesmo pensamento em um de seus mais interessantes ensinamentos: Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo. e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno. Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferta” (Mateus 5:22-24).
Nesse preceito se percebe claramente que toda ação que provoca reação negativa no ambiente exige uma reparação na mesma proporção. E enquanto essa reparação não é feita, o universo permanesce desequilibrado, e é numa conjuntura dessas que o vício prospera, o erro se acumula, a moral, a ética e a virtude são mitigadas.
Essa ideia é uma clara referência á lei da causa e do efeito, no sentido de que mostra que toda ação, quando é respondida por outra que segue a mesma tendência só consegue perpetuar o comportamento desencadeado. Por isso, na Cabala, o Karma é mostrado como sendo uma semente que se reproduz segundo a sua espécie, e que só tomando consciência desse fato é que nós podemos quebrar esse padrão, quando ele nos conduz a maus resultados. É nesse sentido que a teoria da reencarnação, da maneira como ela é vista pelos mestres cabalistas, acaba sendo uma ferramenta de aprendizado e libertação do ser, pois nos ensina que cada vida é uma oportunidade nova para eliminar o mal que fizemos ao mundo e a nós mesmos.Várias passagens do evangelho cristão mostram que Jesus tinha em mente ideias semelhantes a essa quando ensinava a sua doutrina. Uma dessas ideias está explícita no monólogo do Sermão da Montanha quando ele exorta os seus ouvintes a não responder ao mal com o mal, á violência com violência, pois se o ato maldoso, ou violento, desequilibra o sistema, não é respondendo da mesma forma que o equilíbrio vai ser recomposto. Ao contrário, é a resposta não violenta que vai quebrar esse padrão. Mahatma Gandi provou a verdade dessa tese ao derrotar a tirania do império inglês e conquistar a liberdade da Índia sem disparar um único tiro. Não é estranho que o melhor e mais vitorioso de todos os seguidores dessa tese tenha sido exatamente um hindu e não um judeu ou um cristão, pois o budismo defende ideias bem semelhantes a essas e não são poucos os estudiosos que veem na doutrina original de Jesus claros paralelos entre os os seus ensinamentos e aqueles que foram ministrados por Sidarta Gautama, o Buda.[4]
A doutrina da Transmigação das almas (Guilgul Neshamot), acrescenta á tese da reencarnação uma outra possibilidade de redenção, que é a associação da alma de um defunto com a alma de uma pessoa viva. Assim, um morto que foi mau durante sua vida pregressa, pode se associar á alma de um parente vivo, que seja virtuoso, para reparar as suas faltas passadas; no sentido inverso, a alma de uma pessoa virtuosa, que já faleceu, pode se associar á alma de um pessoa má, para ajudá-la a superar as suas dificuldades de aperfeiçoamento. Essa estranha fórmula, aperfeiçoada pelos rabinos modernos, já constava do Zhoar, onde se previa que a alma de um pai podia descer, ocasionamente, do céu para operar a redenção de um filho; e inversamente, que a alma de um filho podia transformar-se na alma de um pai.[5]
Dessa forma a alma de uma mulher poderia encarnar no corpo de um homem e vice-versa, tornando-se, ás mulheres em maridos e os maridos em mulheres. Não se trata, aqui de uma mudança de estado em relação á alma da pessoa que recebe a alma-irmã, mas sim de uma união, realizada no sentido de permitir á alma em dificuldade um possibilidade de redenção que ela, individualmente, não se mostra capaz de conseguir.
Essa noção de coabitação da alma de uma pessoa viva com a alma de uma pessoa morta no mesmo indivíduo é uma das originalidades da Cabala em relação a todas as demais doutrinas que acreditam na teoria da reencarnação. E ela só pode ser entendida a partir da crença cabalista que admite a existência de uma tríplice essência a formar a alma humana: essa tríplice essência é conhecida pelos nomes de Nefesh ( que é o espírito vital, a energia que nos suporta a vida), Ruah (sinônimo de mente, energia que é responsável pelos nossos pensamentos) e Neschama (a alma propriamente dita, energia, centelha divina que nos vem diretamente do Criador).[6]
(Continua)
Segundo o texto bíblico, Deus teria dito a Abraão: Quanto a ti, em paz irás para os teus pais, serás sepultado numa velhice feliz. É na quarta geração que eles voltarão para cá, porque até lá a falta (ou erro, ou delito) dos amorreus não terá sido pago”(Gênesis 15:15-16).
O cabalistas veem nessa promessa uma referência á Lei do Karma e o cumprimento da doutrina da reencarnação, pois segundo essa tese, Jeová era um Deus zeloso, que visitava a culpa dos pais sobre os filhos, na terceira e quarta geração daqueles que o odiavam, mas que também agia, com benevolência ou misericórdia por milhares de gerações sobre os que o amava e guardavam os seus mandamentos. [2]
Ao traduzir a promessa de Deus, os cabalistas substituem o têrmo gerações por encarnações, e assim justificam a sua tese segundo a qual Deus pode, por um desígnio seu, transferir culpa, ou mérito, de uma geração para outra, castigando ou premiando nos filhos a culpa ou mérito dos pais, ou vice-versa. Nasce, dessa forma, a teoria da reencarnação entre os judeus, justificando inclusive a Lei do Levirato, pois ao manter dentro do próprio clã a semente familiar, a corrente kármica, que na sua própria lógica conceitual, deve fluir como um rio, não se bifurca nem se perde no imenso cipoal genealógico em que a humanidade se transformaria. Tudo tem uma lógica dentro da Bíblia hebraica, e aqueles que só veem nela um conjunto de lendas sem respaldo na História pouco sabem da inteligência das cabeças dos homens que a redigiram.[3]
Todavia, é preciso explicar que os cabalistas não entendem literalmente as palavras da Bíblia, como sendo um preceito divino que estabelece a punição, ou a premiação das pessoas, nos seus filhos ou netos, como parece dar a entender o texto sagrado. Essa seria uma incoerência e um pressuposto bastante fácil de refutar, já que muitos pais e avôs sobrevivem por muitos anos, ás vezes, assistindo ao nascimento de cinco ou seis gerações. O que, na verdade, se quer dizer com isso é que o espírito de um pai pode renascer no seu filho, ou neto, ou qualquer outro descendente, dentro da mesma família, para pagar o mal que praticou, pois que o Karma de um indivíduo está profundamente ligado ao ambiente em que a ação é praticada, e onde a ação provocou o desequilíbrio é justamente o local onde ele deverá ser corrigido para que tudo volte ao normal. Jesus, que provavelmente tinha conhecimento de todas essas teses, expressou esse mesmo pensamento em um de seus mais interessantes ensinamentos: Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo. e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno. Portanto, se estiveres apresentando a tua oferta no altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai conciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferta” (Mateus 5:22-24).
Nesse preceito se percebe claramente que toda ação que provoca reação negativa no ambiente exige uma reparação na mesma proporção. E enquanto essa reparação não é feita, o universo permanesce desequilibrado, e é numa conjuntura dessas que o vício prospera, o erro se acumula, a moral, a ética e a virtude são mitigadas.
Essa ideia é uma clara referência á lei da causa e do efeito, no sentido de que mostra que toda ação, quando é respondida por outra que segue a mesma tendência só consegue perpetuar o comportamento desencadeado. Por isso, na Cabala, o Karma é mostrado como sendo uma semente que se reproduz segundo a sua espécie, e que só tomando consciência desse fato é que nós podemos quebrar esse padrão, quando ele nos conduz a maus resultados. É nesse sentido que a teoria da reencarnação, da maneira como ela é vista pelos mestres cabalistas, acaba sendo uma ferramenta de aprendizado e libertação do ser, pois nos ensina que cada vida é uma oportunidade nova para eliminar o mal que fizemos ao mundo e a nós mesmos.Várias passagens do evangelho cristão mostram que Jesus tinha em mente ideias semelhantes a essa quando ensinava a sua doutrina. Uma dessas ideias está explícita no monólogo do Sermão da Montanha quando ele exorta os seus ouvintes a não responder ao mal com o mal, á violência com violência, pois se o ato maldoso, ou violento, desequilibra o sistema, não é respondendo da mesma forma que o equilíbrio vai ser recomposto. Ao contrário, é a resposta não violenta que vai quebrar esse padrão. Mahatma Gandi provou a verdade dessa tese ao derrotar a tirania do império inglês e conquistar a liberdade da Índia sem disparar um único tiro. Não é estranho que o melhor e mais vitorioso de todos os seguidores dessa tese tenha sido exatamente um hindu e não um judeu ou um cristão, pois o budismo defende ideias bem semelhantes a essas e não são poucos os estudiosos que veem na doutrina original de Jesus claros paralelos entre os os seus ensinamentos e aqueles que foram ministrados por Sidarta Gautama, o Buda.[4]
A doutrina da Transmigação das almas (Guilgul Neshamot), acrescenta á tese da reencarnação uma outra possibilidade de redenção, que é a associação da alma de um defunto com a alma de uma pessoa viva. Assim, um morto que foi mau durante sua vida pregressa, pode se associar á alma de um parente vivo, que seja virtuoso, para reparar as suas faltas passadas; no sentido inverso, a alma de uma pessoa virtuosa, que já faleceu, pode se associar á alma de um pessoa má, para ajudá-la a superar as suas dificuldades de aperfeiçoamento. Essa estranha fórmula, aperfeiçoada pelos rabinos modernos, já constava do Zhoar, onde se previa que a alma de um pai podia descer, ocasionamente, do céu para operar a redenção de um filho; e inversamente, que a alma de um filho podia transformar-se na alma de um pai.[5]
Dessa forma a alma de uma mulher poderia encarnar no corpo de um homem e vice-versa, tornando-se, ás mulheres em maridos e os maridos em mulheres. Não se trata, aqui de uma mudança de estado em relação á alma da pessoa que recebe a alma-irmã, mas sim de uma união, realizada no sentido de permitir á alma em dificuldade um possibilidade de redenção que ela, individualmente, não se mostra capaz de conseguir.
Essa noção de coabitação da alma de uma pessoa viva com a alma de uma pessoa morta no mesmo indivíduo é uma das originalidades da Cabala em relação a todas as demais doutrinas que acreditam na teoria da reencarnação. E ela só pode ser entendida a partir da crença cabalista que admite a existência de uma tríplice essência a formar a alma humana: essa tríplice essência é conhecida pelos nomes de Nefesh ( que é o espírito vital, a energia que nos suporta a vida), Ruah (sinônimo de mente, energia que é responsável pelos nossos pensamentos) e Neschama (a alma propriamente dita, energia, centelha divina que nos vem diretamente do Criador).[6]
(Continua)
[1] Ver , na terceira parte deste trabalho, o capítulo referente a Abraão e sua influência nos temas maçônicos.
[2] Êxodo 20:5-6
[3] Históricamente pode ser que a Bíblia não tinha razão, como afirmam Finkelstein e Siberman ( A Bíblia Não Tinha Razão-Ed Girafa, 2003) mas ninguém pode negar que se trata de um monumento literário construído com começo, meio e fim, destinado a defender uma tese muito bem articulada. Nenhum outro povo antigo soube arquitetar tão bem uma tese e criar uma literatura épica tão fascinante, que ao espírito humano, por mais que se encontre razões para refutar, sempre deixa um desejo de, pelo menos acreditar que tudo isso seja verdadeiro.
[2] Êxodo 20:5-6
[3] Históricamente pode ser que a Bíblia não tinha razão, como afirmam Finkelstein e Siberman ( A Bíblia Não Tinha Razão-Ed Girafa, 2003) mas ninguém pode negar que se trata de um monumento literário construído com começo, meio e fim, destinado a defender uma tese muito bem articulada. Nenhum outro povo antigo soube arquitetar tão bem uma tese e criar uma literatura épica tão fascinante, que ao espírito humano, por mais que se encontre razões para refutar, sempre deixa um desejo de, pelo menos acreditar que tudo isso seja verdadeiro.
[4] “A vitória provoca o ódio; o vencido vive na angústia. O pacato vive feliz, não se preocupa com a vitória ou a derrota.” (Dhammapada 201- Teachings of Buddh- Bukio Dendo Kiokai. Nesse mesmo sentido temos o pressuposto ensinado pela PNL que nos ensina a não encarar nenhum acontecimento como sendo vitória ou derrota, mas simplesmente como resultados bons ou ruins, pois assim a nossa mente aprende a trabalhar com eles como planos que precisam ser revistos ou aperfeiçoados, e não como limitações para ações futuras.
[5] Sefer Há Zhoar, livro IV.
[6]Idem, Sefer Há Zhoar, op. Citado.